segunda-feira, 30 de março de 2009

Feias, sujas e malvadas...

[Henlein Nazi Rally.
Czechoslovakia,
1938. Margaret
Bourke-White, Life]


José L. Szwako

Curitiba, mais uma vez, teve de encarar seus monstros. Semana passada, a Câmara Municipal de Vereadores negou o Título de Utilidade Pública à Associação Paranaense da Parada da Diversidade, APPAD. Os dois lados da peleja, contra ou favor do reconhecimento público da organização, tiveram em comum as referências à Cidade: os contrários empunhavam a ‘família curitibana’, com a prosápia dos ‘bons costumes’ e, de quebra, alegavam que eventos assim ‘não acrescentam nada à nossa cidade’. Do outro lado, aqueles que se colocaram a favor da APPAD não hesitaram em dizer que aquele era ‘um dia para envergonhar os curitibanos’.

As escassas coberturas jornalísticas enfatizaram o clima de ‘tensão’ no dia da votação e também o fato de que esse tipo de reconhecimento nunca havia sido objeto de discussão tão calorosa naquela casa. A descrição da distribuição das pessoas nas bancadas era clara: de um lado, feias, sujas e malvadas, estavam as travestis, as bichas, as lésbicas, ... De outro lado, os evangélicos e, pasmem, as crianças. Essa descrição acompanha a auto-imagem das pessoas veiculada pelos argumentos na internet: tudo se passa como se não existissem intersecções. Ou você é um, ou é Outro, afinal, não existem travestis evangélicas e sequer evangélicos gays. (E isso deixa a argumentação muito mais fácil para o lado progressista da peleja.) Mas, pior: “Como seria seu filho ou filha aderindo a isto?” – questionou um leitor. Ora, as nossas crianças não serão imundas, assim como essa gente estranha que, tendo nascido já adulta, não é (e alguns se desesperam, ‘essa gente não pode ser !‘) curitibana, como ‘nós’.

No olho do furacão conservador, estava a pergunta que não quer calar: Porque cargas d’água o Estado – e não é qualquer Estado, é a Câmara-de-Vereadores-de-Curitiba – deveria reconhecer um grupo tão estranho de pessoas? Ou, como vi no site de um jornal tradicional: "QUAL O INTERESSE PÚBLICO RELEVANTE NA REALIZAÇÃO DESTA PARADA?" Ironia das ironias, coube a essa minoria imaginária a hercúlea tarefa de publicizar para um público mais amplo o fato de que a Cidade é habitada por múltiplas cidades. Por meio da luta por reconhecimento, com ou sem sucesso imediato, o grupo mobilizado em torno da APPAD torna público que existe um tipo de opressão baseada em supostas ‘opções sexuais’, civiliza o público curitibano e o convida à democratização de seu imaginário – tudo isso, de graça.

José L. Szwako é doutorando em Ciência Sociais na Unicamp.

Saindo de cena: parlamentares que desistem da disputa eleitoral


[Former Governor "Alfalfa Bill" Murray, a veteran of Oklahoma politics, resting up for a speech at a political rally. 1942, Alfred Eisenstaedt. Life]

Renata Florentino

Cansados ou excluídos? O texto mapeia perfis de políticos que tendem mais freqüentemente a abandonar a carreira eleitoral. A pesquisa abarca as eleições legislativas de 1990 a 2006, observando o perfil de deputados e senadores que recusaram a condição de "candidatos natos" e optaram por não disputar a reeleição e nem concorrer a cargos considerados mais altos. São incluídos na análise também os políticos os que disputaram cargos considerados de menor prestígio do que os anteriormente exercidos, de modo a evidenciar trajetórias mal-sucedidas e compará-las com os casos em que a desistência do mandato é total. Esse grupo de parlamentares constituiria, à primeira vista, a exceção da conhecida formulação de que os políticos são progressivamente ambiciosos. Em linhas gerais, observou-se que os políticos que recuam na disputa eleitoral, seja permanentemente, seja com pequenas estratégias de continuação, pertencem a grupos que 1) já esgotaram de alguma forma sua participação e influência no jogo político (exposição em escândalos, idade avançada, participação em grupos sociais em decadência) ou que 2) ainda não conseguiram penetrar no campo político com a mesma desenvoltura de seus pares (mulheres, estreantes de primeiro mandato ou suplentes e parlamentares de bancadas muito pequenas).

[...]

Percebe-se que aqueles políticos que recuam na disputa eleitoral, seja permanentemente ou com pequenas estratégias de continuidade, pertencem a grupos ou que já esgotaram de alguma forma sua participação e influência no jogo político (por exposição em escândalos, idade avançada ou por grupo em decadência, seja um partido ou um perfil sócio-ocupacional) ou de grupos que ainda não conseguem penetrar no campo com a mesma desenvoltura de seus pares (mulheres, estreantes de primeiro mandato-suplentes e parlamentares de bancadas muito pequenas).

Se políticos envolvidos em escândalos tendem mais freqüentemente a desistir de disputar um novo mandato, muitos comentadores políticos podem respirar aliviados, com a sensação de missão cumprida. Se mulheres desistem mais freqüentemente, por não conseguirem se adaptar e se inserir no campo político, vários ativistas da área de gênero precisam tomar um pouco mais de fôlego e recomeçar sua jornada de trabalhos sociais, pois significa que ainda há muito a ser feito. Se políticos que iniciaram sua carreira na Arena da ditadura militar já não possuem o poder de antigamente e se sentem marginalizados nas atuais esferas de poder, desistindo de se candidatar, os historiadores podem se animar em testemunhar passos importantes na consolidação da democracia no país. Se os empresários estão desistindo de se candidatar, mas continuam em cena como os principais financiadores das campanhas políticas, é necessário não só estudar mais o fenômeno, mas se preocupar em transformar as regras do jogo eleitoral no país. Enfim, o presente trabalho só faz sentido se considerado juntamente com outras questões de nosso tempo, não sendo uma questão acadêmica.

FLORENTINO, Renata. Saindo de cena: parlamentares que desistem da disputa eleitoral (1990-2006). Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 16, n. 30, jun. 2008.

leia o texto completo aqui

segunda-feira, 23 de março de 2009

O céu cinza do Partido Verde

[Bot Tree Various
Wooland Forest. Life]

Luiz Domingos Costa

O caso parece mais episódio de novela. O vereador de Curitiba Professor Galdino (ex-PV) foi expluso do Partido Verde. A cúpula do partido alegou suspeita de caixa 2 na campanha e assédio sexual a uma funcionária do partido. O vereador disse que não fez nem um, nem outro. O partido não esperou provas, não exigiu apuração, nada. Expulsou o vereador do partido e recorreu à direção da Câmara Municipal para que o mandato fosse entregue ao suplente (Paulo Salamuni do PV).

Por trás das suspeitas escolhidas pela direção da legenda, há dois fatos importantes. Primeiro, o vereador Galdino se aproximou do prefeito Beto Richa, mostrando aquele comum ecletismo dos políticos sem laços partidárias fortes, o que irritou ao comando do PV que apóia o governador Requião. Segundo, Galdino mandou embora dois funcionários de comissão indicados pelo partido porque eles não apareciam no gabinete. O presidente estadual dos verdes, Melo Viana, achou que ele contestou uma ordem do comando do partido, que defende que burocratas partidários devem ser mantidos com dinheiro público.

É uma esquisitice sem tamanho? Não, é tudo peça de novela já conhecida. O PV é um partido pequeno com carapaça de "ideológico", defende valores abrangentes (para não dizer vagos ou cambiantes) e não tem organização interna, sem mecanismos de consulta às bases (que bases?) e por aí vai. Na verdade, o PV figura como uma grande promessa de agregar a "agenda ambientalista" para a arena eleitoral, elegendo representantes comprometidos com a mesma. Mas nunca deixou de ser promessa, provavelmente porque não tem bases internas, não tem apoio de militantes ambientalistas e não tem um projeto político organizado de fato. Se o tivesse, teria demonstrado um lento e gradual crescimento, o que não ocorreu.

Além de tudo, o caso do PV do Paraná aponta para uma questão de fundo mais importante, que diz respeito ao dilema do pertencimento dos mandatos (se pertencem aos partidos ou aos políticos eleitos). Porque neste caso o professor não migrou de partido, foi expulso. Se o professor Galdino provar sua inocência no caso de assédio e caixa 2, o partido teria realmente o direito de expulsá-lo e, principalmente, direito ao seu cargo? Aliás, o partido deve ter direito ao cargo eletivo de qualquer membro que divirja internamente de suas normas, por mais absurdas que sejam?

Partidos políticos: sugestões para uma agenda de análise


Bruno Bolognesi

No rumo da agenda que os editores deste blog se propuseram, este post breve tenta esclarecer em linhas gerais o que são, de fato, partidos políticos no Brasil. A imprensa, os intelectuais e o senso comum partilham de uma visão apriorística dos partidos, cabendo a este blog uma definição conceitual e conjuntural do que sejam as legendas brasileiras.

A literatura sobre política e a ciência política que tratou os partidos brasileiros, teve, até a década de 90, uma análise pessimista dos mesmos, baseada nas experiências históricas por quais a política e a cultura brasileira passaram. O clientelismo, o coronelismo, o personalismo e os partidos de aluguel são figuras recorrentes quanto se pintam os partidos no Brasil e no resto do mundo. Não se trata de dizer que tais fenômenos não ocorrem ou deixaram de existir, mas simplesmente de verificar na prática como funcionam os porões da política.

É certo que os dirigentes de partido conduzem seus partidos com grande liberdade, justamente pelos partidos não dotarem de base sólida que possa servir de anteparo às decisões deliberadas. É certo também que grande parte das agremiações políticas não serve como exemplo para um estudo sobre uma organização, muitas vezes servem apenas para tratar da ascensão política de pessoas específicas e/ou pequenos grupos.


[Pres. Eisenhower with the Pres. Kubitschek. Brasil, 1960. Paul Schutzer. Life]

Mesmo nestas circunstâncias, parece impossível imaginar que essa quantidade grande de partidos que o Brasil possui seja completamente equivalente entre si e opere de forma igual diante dos marcos legais e institucionais estabelecidos. Num comparativo próximo e de fácil inteligibilidade, vemos que, por exemplo, o DEM segue um padrão ideológico diferenciado do PT. Isso não se deve aos ocupantes dos altos cargos do partido, mas ao mote com que o partido surgiu, quem eram as pessoas no surgimento da legenda. Os seja, os partidos experimentam profundamente sua origem ao longo de sua história. Incorre num erro os que pensam que partidos são meros grupos de interesse ou ainda são instituições teleológicas. Não é por acaso que o PT apresenta um quadro de membros de origem social e profissional tão diversa quanto o DEM ou o PSDB. Nem é novidade que o PMDB apresente entre seus quadros indivíduos que vão desde professores universitários, funcionários públicos e trabalhadores até grandes empresários e políticos de carreira.

É de se esperar também que as legendas de aluguel perdurem, elas surgem para este fim, como coadjuvantes de um processo onde poucos partidos têm controle efetivo. De outro lado, não podemos imaginar nossa democracia sem os pequenos partidos ideologicamente orientados. São expressões pontuais de uma dinâmica que não tem envolvimento estrito com o poder ou com o Estado, mas possuem suas energias voltadas para um eleitorado que não está preocupado com o jogo do poder. O que ocorre não é uma generalização de práticas degenerativas da política partidária brasileira, mas um equilíbrio fino entre alguns poucos que mantém o status de privilégios ativo e outros que tentam fazer dos partidos políticos o que são: organizações.

Justiça militar e governo civil


[Gen. Pedro Aurelio Goes Montiero,
Chief of Staff of Brazilian military, 1939. Life]

Folha de S. Paulo, domingo, 22 de março de 2009

Especialista defende reforma de lei militar

Para cientista político, mais importante que discutir existência de TJMs é assegurar adequação de código penal das Forças à democracia Segundo Jorge Zaverucha, Brasil ainda segue o Código Penal Militar de 1969; com o fim da ditadura, Argentina e Chile mudaram lei militar

ANA FLOR
DA REPORTAGEM LOCAL

Mais importante do que a existência ou não de tribunais militares é assegurar que os códigos penais militares estejam em conformidade com um Estado democrático. A opinião é do cientista político Jorge Zaverucha, especialista na relação entre militares e civis e autor do livro "FHC, Forças Armadas e Polícia: entre o Autoritarismo e a Democracia, 1999-2002".
Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e pós-doutor pela Universidade do Texas, em Austin, com passagem pela Universidade Hebraica de Jerusalém, o atual coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco diz que a jurisdição militar hoje no país faz do Brasil uma "semidemocracia".



FOLHA - Justiças militares são necessárias em tempos de paz?
JORGE ZAVERUCHA - O problema fundamental não é existir ou não uma Justiça militar. A questão está na definição de o que é crime propriamente e impropriamente militar. A Justiça militar, em tempos de paz, deve contemplar crimes propriamente militares, que só um militar pode cometer -como dormir na guarda do quartel.

FOLHA - O que é um crime impropriamente militar?
ZAVERUCHA - Pichar ou fazer grafites em muros de instalações militares, por exemplo.

FOLHA - O Brasil evoluiu em relação a outros países?
ZAVERUCHA - A definição de crime militar no Brasil em 2009 é praticamente a mesma do regime militar. O Brasil ainda segue o Código Penal Militar de 1969. Os EUA e a Inglaterra, entre outros países democráticos, têm tribunais militares, mas que não julgam civis. Na Noruega, na Áustria, na Alemanha, entre outros, só há Justiça militar em época de guerra. Com o fim do regime autoritário, Chile, Uruguai e Argentina mudaram seus códigos penais militares. A Argentina está indo mais além e se prepara para extinguir a Justiça militar. Mas o Brasil está na contramão.

FOLHA - É ruim para o Brasil seguir um Código Penal Militar feito durante a ditadura?
ZAVERUCHA - Nos regimes autoritários, você alarga a definição de o que é crime militar. Nas democracias, diminui-se o escopo. Também nas democracias, eles não julgam civis, ao contrário do Brasil. Portanto, isso é um enclave autoritário politicamente aceito pela elite política. Por quê? Ainda convém aos civis manterem alianças com os militares.

FOLHA - O senhor cita outros erros que seriam nocivos à democracia.
ZAVERUCHA - Um erro grave é a Justiça militar fazer parte do Poder Judiciário. Nos EUA, por exemplo, faz parte do próprio Exército. No STM, os juízes militares brasileiros são antes militares, depois juízes. Via de regra, não são togados. A corte é muito mais uma extensão do quartel do que uma organização que procura fazer justiça. O curioso é que o STJ analisa recursos de militares estaduais, enquanto que os de militares federais [das Forças Armadas] são julgados pelo STM.

FOLHA - Que mudanças o senhor sugere?
ZAVERUCHA - O primeiro passo é mudar o Código Penal Militar. Não se explica que, numa "semidemocracia", se tenha um código de 69, ápice do regime militar. Nenhuma democracia, que mereça esse nome, segue o padrão brasileiro.

FOLHA - Já houve alguma tentativa de mudança?
ZAVERUCHA - O governo Fernando Henrique tentou criar uma comissão para fazer mudanças [no Código Penal Militar], mas ela foi logo abortada. Desde então não se toca no assunto. Os militares têm força política muito grande.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2203200913.htm

domingo, 22 de março de 2009

Igreja católica, sexualidade e política

[Ex-jazz saxaphonist Boyce Brown walking in monastery after becoming Brother Matthew. Francis Miller, 1956. Life]

"No reino da contradição"
Kenneth Serbin
Folha de S. Paulo +mais!
domingo, 22 de março de 2009

EXCOMUNHÃO DA EQUIPE QUE REALIZOU ABORTO EM MENINA VIOLENTADA EM PERNAMBUCO REDUZ AUTORIDADE MORAL DA IGREJA BRASILEIRA

KENNETH SERBIN*

A excomunhão de profissionais de saúde que ajudaram a menina de nove anos de Pernambuco que sofreu abuso sexual a se submeter a um aborto de fetos gêmeos, realizado no dia 4 passado, revelou a contradição da Igreja Católica ao tentar orientar o mundo nas questões sexuais e reprodutivas.
Quando enfatizou publicamente a exclusão automática dos profissionais de saúde sob a lei canônica, dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife, foi completamente contra os sentimentos cristãos de compaixão expressos pelos brasileiros, desde os cidadãos comuns até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Poderes de Roma
E finalmente confirmados pelo próprio Vaticano, que raramente critica seus bispos de maneira tão direta quanto o fez na edição de 14/3 de "L'Osservatore Romano".
Mas a questão é que o Vaticano permitiu e até instigou muitos outros atos semelhantes de insensibilidade de dom José desde que ele chegou a Olinda e Recife em 1985.
Os poderes de Roma o escolheram expressamente para desmantelar o trabalho e combater as ideias do maior e mais amado bispo moderno do Brasil, dom Hélder Câmara [1909-99], fundador da Igreja dos Pobres [movimento lançado por religiosos participantes do Concílio Vaticano 2º, em 1962] e um líder de grande sensibilidade em relação aos oprimidos.
Dom José sobreviveu no cargo em meio a rumores de sua demissão e avaliações de muitos na igreja brasileira de que era inadequado para o posto -um simples burocrata jurídico que havia subido na instituição por causa de sua lealdade à hierarquia.
Ironicamente, as declarações de Cardoso Sobrinho sobre o aborto vieram no rastro das comemorações do centésimo aniversário do nascimento de dom Hélder.
Por um lado, o episódio ilustra como a igreja defende a vida em todas as frentes, opondo-se a guerras injustas, tortura, pena de morte, assassinato, eutanásia, pesquisa de células-tronco e aborto.

Memória da pedofilia
Por outro, demonstra grande inflexibilidade baseada na lógica do poder em uma imensa instituição dirigida por (pelo menos nominalmente) homens solteiros incapazes de compreender visceralmente os desafios e as responsabilidades de uma família.
Nas trincheiras da vida cotidiana no Brasil e na ausência de reformas, mulheres de todas as idades e origens continuarão fazendo aborto pelas inúmeras razões que levaram as mulheres a praticá-lo em todas as eras.
Mesmo nos Estados Unidos, onde o acesso à educação sexual e ao controle natal e as rendas são maiores, as mulheres continuam abortando em altos índices.
Uma contradição ainda mais profunda ficou aparente nas reações de dom José e da hierarquia ao fato de que a menina de Pernambuco foi vítima de um padrasto pedófilo que abusava dela desde os seis anos.
A igreja brasileira encobriu sua própria história de tolerância a padres pedófilos e outros incidentes de abuso sexual clerical.
Mais uma vez os bispos do Brasil falharam em admitir essa realidade, em contraste com a igreja americana, que pagou bilhões de dólares em indenizações às vítimas e estabeleceu programas especiais para combater o problema. Essa atitude reduz a autoridade moral da igreja brasileira sobre o aborto e sobre outras questões.
Com o tema "Fraternidade e Segurança Pública", a Campanha da Fraternidade [da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB] deste ano menciona o problema dos pedófilos não religiosos no Brasil, mas não entra em detalhes.
De fato, quando viajei ao Brasil em agosto passado para o lançamento de meu livro "Padres, Celibato e Conflito Social" (Companhia das Letras), que detalha o problema de sacerdotes que cometem abusos sexuais, não pude apresentar meu trabalho na sede da CNBB, em Brasília, por causa da excessiva sensibilidade que cerca a questão sexual.
E isso apesar de que um dos objetivos do meu livro fosse ajudar a igreja a refletir sobre o problema de maneira histórica e objetiva.

Silêncio conspícuo
Resta ver como a igreja brasileira irá reagir a essa última manifestação da questão do aborto.
É interessante notar que, como maior país católico do mundo, o Brasil poderia ter um papel central na busca de soluções criativas para o problema. Depois de iniciar o segundo governo Lula com um apelo histórico para o debate sobre o aborto e insistindo no tema durante a visita do papa Bento 16, em 2007, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, havia estado conspicuamente silencioso até sua repreensão pública a dom José.
Lula e Temporão poderiam usar a indignação moral sentida por muitos brasileiros nesse incidente para relançar a ideia de um diálogo nacional sobre o aborto.

Liderança
No diálogo com a igreja e outros grupos religiosos -desde organizações de adoção até a Igreja Universal do Reino de Deus, que defende o direito da mulher a escolher-, o Brasil poderia criar uma legislação e programas únicos e assumir uma posição de liderança na América Latina e no mundo.
Todos, incluindo dom José e os demais bispos brasileiros, poderiam começar assistindo a um filme da jovem diretora brasileira Carla Gallo ["O Aborto dos Outros", 2008], que retrata o caso de uma adolescente que engravida em consequência de um estupro e decide recorrer ao aborto legal.
Como o caso da menina de Pernambuco, o filme demonstra que a realidade está longe das páginas da lei canônica e como é terrível a decisão de abortar.

*KENNETH SERBIN é professor de história na Universidade de San Diego (Califórnia) e pesquisa a história do aborto no Brasil.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2203200910.htm

sexta-feira, 20 de março de 2009

A agenda continua

[Frank Scherschel, 1950. Life]

Uma agenda [lançada aqui] contra o mau uso de idéias e sobretudo contra as explicações baseadas em complexos nacionais (seja do Zé Carioca, do Homem Cordial ou da Casa Grande e Senzala) está em andamento neste blog.

Ela consiste em apresentar ao leitor textos introdutórios sobre o sistema político brasileiro baseados em achados básicos da Ciência Política.

E ela não se define em função de colorações políticas, mas é perpassada por algumas divergências (políticas e/ou teóricas) entre os colaboradores, o que pode ser interessante para fomentar o debate.

Abaixo a lista dos textos que compõem esse "cavalo de batalha" deste veículo:

Alternativas políticas e configuração do bloco no poder na última conjuntura eleitoral brasileira. O que fazer? - Sérgio Soares Braga

Prévias, mitos e lendas - Bruno Bolognesi

Partidos Políticos: sugestões para uma agenda de análise - Bruno Bolognesi

Os partidos políticos brasileiros têm ideologia? - Celso Roma

A crise financeira e o Estado - Lucas Massimo

O que é o presidencialismo de coalizão? - Adriano Codato e Luiz Domingos Costa


A competência política - Adriano Codato

Classes sociais e processo decisório - Adriano Codato

Princípios de visão e princípios de divisão do mundo político - Adriano Codato

quarta-feira, 18 de março de 2009

Partidos políticos e ideologia na Câmara dos Deputados


[Gov. of Guanabara State, Carlos Lacerda after crisis following the forced step down of Brazilian Pres. Joao Goulart. 1964. John Loengard, Life]

Luiz Domingos Costa

A discussão em torno da existência ou não de partidos 'ideológicos' no Brasil não é uma tentativa otimista de espantar os problemas e falhas das instituições políticas (partidos, legislativo, governos). Entretanto, deixá-la de lado serve, no mínimo, à despoilização do debate sobre um país no qual há, gostemos ou não, partidos que merecem essa designação, no qual as ideologias existem e no qual a política não é puramente uma invenção do Marquês de Pombal e explicada pela noção de 'homem cordial'.

Em primeiro lugar, analisar a ideologia partidária requer separá-la de uma série de práticas (corrupção, clientelismo, etc) comuns aos diversos agentes políticos. Requer isolá-la de fenômenos similares (certa ideologia embutida em um programa governamental mais amplo) e analisá-los separadamente.Infelizmente, isolar certos fenômenos é um princípio científico básico.

O cientista político Celso Roma deu uma contribuição resumida aqui no blog, baseado-se em enquetes com os parlamentares entre 1987 e 2001 e afirmou ser possível identificar opiniões políticas definidas de acordo com as posições dos principais partidos no eixo ideológico esquerda-centro-direita. Trata-se de uma apresentação bastante sumária de uma pesquisa ampla sobre o assunto, sem a densidade necessária para quem queira se aprofundar no assunto (as enquentes versam sobre 107 assuntos de economia, política, sociedade) e sem as evidências necessárias para a comprovação do argumento (de que os partidos têm ideologia e são diferentes sob o prisma das posições políticas clássicas). Assim, o texto completo com os dados está disponível abaixo.

Ideologia e coesão dos partidos políticos na Câmara dos Deputados:
evidências de enquetes com os parlamentares (1987/2001) - Celso Roma
(trabalho apresentado no "Seminário Internacional Legislativo Brasileiro em Perspectiva Comparada", Brasília, 15 de maio de 2008)

Resumo:
De acordo com a visão tradicional sobre a política brasileira, os principais partidos não
têm ideário e atraem políticos motivados por interesses outros que não os vinculados ao
seu programa. Este artigo, no entanto, mostra que os deputados federais marcam
posição em torno das agendas políticas, situando as siglas partidárias num contínuo
ideológico e revelando uma unidade de crenças entre seus filiados. Os dados que
atestam essas afirmativas são procedentes de questionários aplicados aos parlamentares
pelo instituto Datafolha. Os resultados da análise indicam que o nível de consenso
intrapartidário e de dissenso interpartidário é mais alto do que se supõe.
Palavras-chave: partido político; coesão; ideologia; Câmara dos Deputados.
(download em PDF do texto completo)

terça-feira, 17 de março de 2009

A crise financeira e o Estado

[TIME cover 02-15-1999 Federal Reserve Board chmn. Alan Greenspan (C) flanked by Treasury Secy. Robert Rubin & Deputy Treasury Secy. Lawrence Summers
Date taken: February 15, 1999
Photographer: Michael O'Neill]


Lucas Massimo

As considerações que seguem pretendem compreender a atual crise financeira no tema do Estado, especificamente, na sua organização institucional.

De saída, parte-se da premissa que o neoliberalismo é uma forma concreta assumida pelo modo de produção capitalista desde o final dos anos 1970. Nessa década o mundo capitalista assistiu a três grandes transformações no plano macro-econômico: a crise na oferta de petróleo, e o aumento do custo da energia; a suspensão unilateral da conversibilidade direta do dólar em ouro, substituindo um sistema monetário internacional tutelado pelo câmbio flutuante; e finalmente o aumento da taxa de juros pelo FED em 1979, na gestão do democrata Paul Volcker. Esses três fenômenos modificaram a disposição das classes sociais no plano internacional, e o arranjo resultante privilegiaria a remuneração do capital financeiro em detrimento às demais classes e frações de classe.

Isso significa que o ritmo de inovação tecnológica e o crescimento relativo da taxa de lucro foram exponencialmente maiores no circuito capital financeiro do que as transformações experimentadas no circuito capital-trabalho, sejam elas referentes à produção industrial, ao setor de serviços, ou ao mundo rural.

Vale dizer ainda que esta concepção geral é inócua sem a referência à disposição das classes em situações históricas concretas, isto é, há que se identificar em unidades nacionais dadas as condições políticas da luta de classes. Só assim o objeto de análise “neoliberalismo” é pertinente, enquanto uma categoria de explicação do mundo social. Ora, as condições políticas da luta de classes, os termos de sua disputa são definidas em cada país por determinadas instituições, normas, códigos e procedimentos. Ao conjunto dessas instituições chama-se Estado.

Sintetizando as duas proposições: se o neoliberalismo é “definido” no plano internacional como um fenômeno econômico, sua realização política no plano nacional passa necessariamente pelo Estado.

Esse é um primeiro nexo da compreensão do neoliberalismo pela abordagem estatal.

O segundo é mais abstrato, e diz respeito à própria organização dos negócios nas sociedades capitalistas. O crescimento econômico supõe um ambiente mais ou menos estéril, preferencialmente previsível para o andamento regular das atividades capitalistas. Em momentos de crise social, aberta ou latente, a organização política deve suplantar as divergências privadas em função de um pretenso “bem comum”. Ordinariamente, portanto, a autoridade política deve se responsabilizar pelas normas e pelos regulamentos, enquanto que os agentes privados se ocupam da distribuição dos recursos. A intervenção da autoridade política na oferta de bens e serviços, segundo essa estória, é fonte inequívoca de distorções de preços, desperdícios.

Esse é, grosso modo, o núcleo duro do discurso neoliberal; porém, e esse é um ponto importante, conceber esse discurso como ideológico é esclarecedor: ao requerer uma presença constante do Estado, o neoliberalismo é em si um construto político. Em outros termos, a implantação do neoliberalismo numa dada formação capitalista passa pelos aparelhos econômicos do Estado.

E aqui chegamos ao ponto central do argumento aqui esboçado: a reprodução regular do arranjo de classes que privilegia o capital financeiro supõe um consenso quanto ao modelo [neoliberal] de desenvolvimento capitalista; esse consenso é produzido pelos aparelhos econômicos dos Estados nacionais; a realização desse esquema produz um desenho institucional, em cujo topo se encontram as instituições de política econômica.

Utilizando esse argumento, podemos afirmar que:
- o encaminhamento das respostas à crise financeira é um assunto dos homens de negócio do Estado;
- essas respostas serão tão mais eficazes quanto capazes forem os aparelhos econômicos dos Estados centrais.

A crise econômica atual coloca no centro do debate a relação que se estabeleceu entre os dispositivos de regulamentação e controle e os agentes do capital financeiro. Essa relação, que no contexto de crise se revelou espúria, foi produzida paulatinamente pelo desmonte das instituições reguladoras elaboradas ainda nos acordos de Breton Woods. Esse ordenamento institucional regulador foi substituído por uma ordem favorável à liberalização e ao afrouxamento das normas reguladoras das atividades financeiras em escala global.

A retomada das políticas keynesianas aparece como alternativa exclusiva no médio e longo prazo – o problema é que os Estados nacionas não dispõem mais das tradicionais ferramentas de intervenção econômica. Nos últimos 30 anos a participação do Estado nas economias foi marcada pela seguinte movimento: reforço nos instrumentos de estabilização monetária e desmonte do aparato de crescimento econômico. Ao longo dos últimos 30 anos a função “reserva de valor” da moeda prevaleceu sob a função “meio de pagamento” – e o que me parece essencial, esse deslocamento se materializou em um ordenamento institucional muito específico.

Em artigo publicado no NYT, em 17/03/2009, Paul Krugman questiona a agilidade da resposta européia à crise, e faz uma reflexão que toca no ponto central do meu argumento:
“Essa é uma importante razão para a falta de ação fiscal: não há governo em uma posição de assumir a responsabilidade pela economia européia como um todo. O que a Europa tem, em vez disso, são governos nacionais, cada um relutante em incorrer em grandes dívidas para financiar um estímulo que vai transmitir muitos de seus benefícios, se não a maior parte, a eleitores em outros países.”

No artigo o economista contrapõe a potência do Banco Central Europeu à impotência do correlato governo europeu – no caso a comissão européia – e de fato, as atribuições da CE são muito mais orientadas para questões aduaneiras, por exemplo. Já o BCE possui uma série de prerrogativas para assegurar a saúde da moeda comum ao bloco, o Euro, mas esses instrumentos são sempre orientados para sua preservar a moeda na sua função de reserva de valor.

O problema de fundo aqui é bem nítido: o Estado, enquanto forma política, ou seja, enquanto um sistema de instituições hierárquicas deve ser capacitado, dotado de ferramentas adequadas para dar respostas que, até o momento, parecem todas de inspiração keynesiana.

Em síntese, o desenrolar da crise financeira deve trazer o Estado de volta ao centro do debate público; seja como arena de disputa de projetos de desenvolvimento, seja como ator político chave na liderança desse desenvolvimento. De um jeito ou de outro, e para desagravo dos entusiastas da ordem pós-nacional, pós-capital, pós-pós-pós, tudo indica que o retorno do Estado ao proscênio deve acontecer de forma bastante convencional.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Resultado da última enquete

[Operators working at the new
automatic post office.
Washington, DC, 1959.
Hank Walker. Life]


Resultado da enquete realizada neste blog em fevereiro de 2009.

Pergunta: Você é a favor da reforma política?

Resultados:

74% - Sim, o voto em lista, a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais fortalecerão os partidos e irão melhorar o funcionamento do sistema.

18% - Não, pois as principais alterações na legislação transferem poder excessivo para as cúpulas partidárias.

8% - Sou indiferente, já que este tipo de mudança é apenas formal e não altera a distribuição de poder nas democracias capitalistas.

A enquete contou com 179 votos.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Os partidos políticos brasileiros têm ideologia?*

[A sign on the Avenida Atlantica
proclaiming the Brigadeiro Gomes
as pretty. Rio de Janeiro, 1946.
Thomas D. Mcavoy. Life]


Celso Roma**


De acordo com o senso comum, os partidos da atualidade – assim como do passado – são pragmáticos por excelência: em vez de ideias, têm interesses; em vez de recrutarem filiados tendo por critério a adesão às bandeiras, facilitam a entrada indiscriminada em seus quadros; em vez de implantarem o seu programa, preocupam-se antes em preencher cargos e em receber verbas do governo. Essa percepção sobre nossos partidos é transmitida por gerações como uma verdade inquestionável. Mas ela pode ser facilmente questionada.

Longe de serem baluartes do bem comum, os partidos têm desempenho positivo o suficiente para serem reconhecidos como tais. O mais importante quesito que eles atendem se refere à ideologia. Como grupos políticos, os partidos têm sistemas de ideias que os diferenciam quanto aos assuntos da economia, política e sociedade. Tal afirmativa pode ser corroborada pelas enquetes realizadas na Câmara dos Deputados entre 1987 e 2001**.

No Congresso Constituinte de 1986 a 1988 configurou-se uma clivagem ideológica entre os partidos. Em que pese o caráter incipiente dos partidos da época, devido ao retorno do pluripartidarismo sete anos antes, é possível identificar uma esquerda (PT, PDT, PCB, PCdoB), um centro (PMDB) e uma direita parlamentar (PTB, PFL, PDS, PDC, PL, PSC). O Centro Democrático – ou Centrão – foi constituído por parlamentares de centro e direita, que rivalizou com um bloco formado por partidos de esquerda. Mais: os deputados federais se revelaram capazes de se posicionarem uns aos outros no espectro da ideologia.


Congresso Constituinte (1987-1988)
E S P E C T R O I D E O L Ó G I C O
esquerda centro direita
PT PDT PCdoB PCB PSB PMDB PDS PDC PTB PFL PL PSC


As divergências mais significativas entre os partidos ocorreram em torno do perfil das instituições democráticas em construção. Enquanto a direita, cujo bloco era composto pelo PDS, PFL, PTB, PDC, PL e PSC, procurava restringir o grau de abertura democrática das novas instituições políticas – por exemplo, defendendo que o papel das Forças Armadas continuasse a abranger também a ordem interna –, a esquerda, constituída pelo PT, PDT, PCdoB, PCB e PSB, tentava expandi-lo, seja ampliando o direito de voto ou defendendo que o texto fosse submetido a referendo antes de entrar em vigor. Além de criticarem o presidencialismo, que contava com o apoio majoritário apenas pelo PDT e PTB, os esquerdistas apoiavam outras mudanças, como a instituição do voto facultativo, a ampliação do direito ao voto aos cidadãos com idade entre 16 e 18 anos e a adoção de um Poder Legislativo unicameral. No entanto, um centro político já podia ser observado, através do consenso em torno de propostas menos polêmicas, como o direito de voto à baixa oficialidade das Forças Armadas, ou mesmo ao parlamentarismo, mais aceito entre os congressistas que no interior da sociedade. O PMDB encampou esse centro parlamentar.

Na nova ordem constitucional, marcada pelo surgimento e fusão entre as legendas, o espectro ideológico foi levemente alterado. O ano de 1993, previsto para a Revisão Constitucional ensaiou uma ampla discussão sobre a economia, que, num primeiro momento, sinalizou a liberalização do papel do Estado e do mercado. Nessa ocasião se iniciou uma virada decisiva na conjuntura política do país, apoiada por uma coalizão de centro-direita montada para a disputa das eleições presidenciais de 1994 e a formação do governo Fernando Henrique Cardoso em dois mandatos consecutivos.

Essa agenda opôs os partidos, criando blocos parlamentares de esquerda e centro-direita. O PT e os pequenos de esquerda rejeitavam a possibilidade de aprovar uma emenda para permitir a reeleição dos mandatários do Poder Executivo. Em 1993, PMDB e PFL conseguiram criar um consenso mínimo em torno dessa proposta, enquanto o PSDB se manteve dividido ao meio, aderindo a ela apenas em 1995. PT, PDT e os pequenos partidos de esquerda defendiam a garantia dos direitos dos trabalhadores à aposentadoria pelos critérios definidos. PFL, PSDB, PPB e PMDB propunham mudanças na aposentadoria, embora discordassem sobre a fórmula a ser empregada. PT e seus aliados defendiam o direito irrestrito à greve, inclusive para os funcionários públicos, a unificação do salário mínimo e a manutenção do tamanho das terras indígenas. Os demais partidos aceitavam restringir o direito de greve, principalmente dos setores essenciais, quebrar a estabilidade no serviço público em alguns setores, regionalizar o salário mínimo e alterar o critério para demarcar as terras indígenas. De um lado, o PSDB e o PMDB apoiavam a quebra do monopólio da Telebrás. A contenda entre os partidos envolveu também a entrada de capital estrangeiro no setor do petróleo, embora a esquerda tenha se dividido quando o setor em debate era o de telecomunicações. PFL, PSDB, PPB e PMDB propunham modificar ou retirar a definição de empresa de capital nacional da Constituição, contrastando com os partidos de esquerda, que defendiam mantê-la.


Nova ordem constitucional (1989-2002)
E S P E C T R O I D E O L Ó G I C O
esquerda centro-direita
PT PDT PCdoB PCB PSB PMDB PPR/PPB PSDB PTB PFL PL


Em linhas gerais, os partidos brasileiros assim se diferenciaram em termos de ideologia em dois momentos marcantes da política: a feitura da Constituição Federal de 1988 e os primeiros treze anos de atividade legislativa sob a nova ordem constitucional.

* Esta análise recobre apenas o período 1987-2001. O autor informa que ainda não dispõe dos dados necessários para a análise do período do Governo Lula.

**Para baixar o paper que embase esta análise (com as evidências e recursos utilizados) em formato PDF, clique aqui.

** Celso Roma é cientista político pela USP.

sábado, 7 de março de 2009

A indignação seletiva de Gilmar Mendes


[Lawyer Bill Justice. April 1951. George Silk, Life]

Renato M. Perissinotto*

Sempre que posso, insisto numa tese: se há algo que pode ser realmente calamitoso para uma sociedade e desesperador para os seus membros, mais do que crises econômicas e problemas políticos conjunturais, é um sistema judiciário incapaz de fornecer aos cidadãos, sobretudo aos desprovidos de recursos sociais, econômicos e simbólicos, proteção e defesa contra abusos de qualquer espécie.

O Judiciário brasileiro, é trivial dizer, tem enormes problemas: morosidade, corrupção, falta de recursos humanos, excessivo formalismo. Muitos deles escapam inteiramente ao controle de seus integrantes, quase todos funcionários diligentes de uma estrutura pública perpassada por dificuldades e muita pressão social. Há, no entanto, um tipo de problema cuja solução (ou agravamento) depende, ao menos em parte, da postura dos membros do Poder Judiciário. Refiro-me à crise de legitimidade por que passa esse Poder na medida em que os índices de desconfiança da população em relação à Justiça brasileira são altos.

Não pretendemos, evidentemente, generalizar, mas há alguns membros impolutos do Judiciário brasileiro que contribuem ativamente para aumentar a sensação, amplamente presente na população mais pobre, de que, no Brasil, nem adianta recorrer à Justiça porque ela só beneficia aos mais ricos. O campeão dessa atitude é, certamente, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes.

Duas intervenções recentes desse senhor são particularmente notáveis: a sua defesa do Estado de Direito a partir das algemas colocadas no respeitável empresário Daniel Dantas e a sua crítica às supostas ações violentas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, dizendo que o financiamento público desse movimento deve ser discutido já que “é de morte de pessoas de que estamos falando”, conforme declarou a um importante telejornal. Que fique claro desde já: o autor deste artigo não defende transformar sentimentos de vingança (pessoal ou social) em Justiça nem que se matem pessoas pelo simples fato de elas trabalharem para os adversários. Portanto, se um indivíduo tem o direito de não ser algemado e execrado em público, que se garanta a ele esse direito, e se é preciso resolver o problema agrário por meio de ações contundentes, que se cuide para preservar a vida de quem quer que seja.

No entanto, o Ministro Gilmar Mendes é o mais bem acabado exemplar do caráter seletivo da indignação de nossas elites e do seu cinismo irritante. Com relação ao problema das algemas, há década que milhares de pessoas, pobres e negras, vêm sendo humilhadas em público em programas policiais Brasil afora sem que esse senhor tenha se dignado a mobilizar a sua respeitável figura para fazer uma intervenção pública a respeito do assunto. Sabemos que há leis que impedem tais procedimentos e que a justiça brasileira garante direitos básicos a todos os cidadãos. O problema é que, efetivamente (e o advérbio é importante para funcionar como antídoto contra a mentalidade formalista de advogados e juízes), esses direitos são sistematicamente desrespeitados. Tal desrespeito, porém, só mobiliza politicamente o Ministro (e alguns intelectuais) quando cometido contra um membro das classes dominantes (sim, isso ainda existe!). O cinismo de vir a público defender o “Estado de Direito” somente quando um tipo como Daniel Dantas é ofendido e quando sabemos que ele, o Estado de Direito, simplesmente não existe de fato para grande parte da população, é de deixar furioso qualquer um minimamente comprometido com os mais básicos princípios do ideal republicano.

O que falar então da humanitária preocupação do Ministro com a vida das pessoas supostamente (mais uma vez o advérbio é importante, pois o Ministro fala como se o caso já estivesse resolvido) mortas pelo MST? Há quanto tempo trabalhadores são assassinados por esse país, tanto por grandes fazendeiros como por agências do Estado que seriam responsáveis por “proteger a vida humana”? Alguém se lembra de alguma manifestação pública (e política, pois qualquer manifestação pública do Presidente do Supremo é, ao mesmo tempo, política) em relação a essas outras mortes? Por que se indignar apenas agora e somente em relação a esses pontos?

Por essas e por outras é que a impressão que se tem da Justiça brasileira não é nada boa. Gente como Gilmar Mendes torna pouco crível a idéia de que somos todos iguais perante a lei. Esse senhor é astuto porque assume sempre a estratégia de apresentar a defesa dos dominantes como se fosse defesa do Estado de Direito, bastando para isso vir a público falar das maravilhas desse Estado somente quando os dominantes são prejudicados. Ao assumir posturas ativas e públicas em defesa dos dominantes, o Ministro contribui enormemente até mesmo para o aumento da violência, tanto individual quanto aquela supostamente perpetrada pelos movimentos sociais. Afinal, de que adianta recorrer a uma Justiça cujo máximo representante se esforça em mostrar à população que ela, a Justiça, só se mexe mesmo quando a movimentação dos de baixo ameaça os de cima? Não seria a violência uma reação racional ao caráter seletivo da Justiça brasileira?

Renato M. Perissinotto é cientista político e professor da UFPR.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Bloco no poder na última eleição presidencial brasileira

[Business men sitting around a table, test tasting coffee. Santos, 1939. John Phillips]

O Grupo de Análise de Conjuntura existe desde 2006. Uma das primeiras atividades do grupo foi a realização de um simpósio de análise da conjuntura pós-eleições daquele ano.
O texto preparado pelo professor Sérgio Soares Braga para a ocasião é um modelo bastante acabado de uma análise de conjuntura ampla e desmistificadora, tendo em vista os 4 anos do primeiro governo Lula e as perspectivas seguintes. Sua validade do ponto de vista metodológico faz com que mereça ser lido ao lado do texto do professor Sebastião Velasco e Cruz, pois consiste num esforço para diferenciar a análise de conjuntura da mera crônica jornalística dos fatos políticos do dia-a-dia. Os textos convergem no "espírito", embora Braga efetivamente ponha em prática o modelo que propõe ao analisar o governo Lula e as eleições de 2006 no Brasil, lançando pistas para o desenrolar dos momentos seguintes. Por isso, ambos estão disponíveis no menu à direita.

Alternativas políticas e configuração do bloco no poder na última conjuntura eleitoral brasileira. O que fazer?
Conferência de encerramento do primeiro simpósio de análise de conjuntura do GAC da UFPR.
Sérgio Soares Braga

" [...] Gostaríamos de sublinhar inicialmente a importância de esforços de reflexão dessa natureza para a profissionalização (sem aspas) do cientista político, que lhes possibilite uma intervenção mais qualificada e, eventualmente, prescritiva no debate público, de natureza análoga a que fazem as já mencionadas disciplinas co-irmãs dos demais ramos das ciências sociais, cujos profissionais são razoavelmente treinados na feitura de análise de conjunturas, elaboração de cenários e recomendações prescritivas para os diversos atores sociais participantes do chamado processo de “escolha pública [...]

[...] Como já observamos, o governo Lula não é um governo “neoliberal associado” como os governos FHC, mas a expressão de um fenômeno político-ideológico mais profundo, que atinge a esquerda em âmbito internacional, que é a existência de uma orgânica corrente social-liberal (BRESSER PEREIRA, 2005), que adere aos valores do “livre mercado” com mais intensidade, e recua na ambição de suas políticas distributivas pela via do intervencionismo estatal centralizado. Uma das características dessa corrente reside na maior ênfase na "estabilidade” do desenvolvimento econômico capitalista (com respeito aos “contratos”, especialmente os firmados por governos anteriores com o sistema financeiro) e na implementação de políticas “compensatórias” para segmentos “excluídos”, embora longe de instaurar um Welfare State. De resto, a natureza das políticas sociais do governo Lula explica em parte a desilusão causada por seu governo em correntes partidárias (especialmente vinculadas ao chamado “socialismo cristão” e ao funcionalismo público) que alimentavam a expectativa de que ele fosse instaurar um modelo radicalmente social-democrata (menos ajuste fiscal e mais gasto público para assegurar direitos sociais para setores da classe média e classe operária organizada), ou mesmo alguma variante do neodesenvolvimentismo nacionalista, como ocorre em algumas esferas subnacionais de governo, como é o caso de Roberto Requião no estado do Paraná. [...]"

Para ler mais, o PDF está aqui.

Uma agenda contra a bestialização de idéias e termos

[Portrait of US boxer Duane Bobick with his boxing
gloves on. 1972. Co Rentmeester. Life]


Luiz Domingos Costa

Os anos do governo Lula, sob o impacto do “mensalão”, caixa 2 e outras práticas corruptas fez a imprensa acreditar como nunca que o Brasil é uma calamidade quando se trata de política. Tornou-se sinônimo falar em “governabilidade”, clientelismo, fisiologismo, patrimonialismo, caixa 2, toma lá dá cá, PMDB. Nesse sentido, a imprensa presta um enorme desserviço à democracia e ao esclarecimento público. Porque são coisas diferentes, porque tentar associar tantos e díspares conceitos e fatos de forma mecânica é errado e contraproducente para o debate.

Embora 80% das colunas sirvam a esse diagnóstico simplista, o texto mais acabado dessa visão eu encontrei na coluna de José Nêumanne do Estadão de 4-03-2009. Acredito que seja o supra-sumo da inépcia analítica, da falsa erudição e da mistura bestial de idéias e termos que não são adjetivos, mas substantivos ou conceitos.

É fato que diversos analistas escapam a esse derrame de palavras vazias e outros que evitam misturar tanto assunto na mesma coluna. Mas o sumo que sobra do acompanhamento dos comentários políticos é uma espiral ilógica: tradição política + cultura política pouco cívica = instituições viciadas, legislação permissiva, partidos fracos, políticos fisiologistas, corruptos e o fim da história. Ou melhor, os itens à direita da equação retroalimentam o lado esquerdo dela. Enfim, um caso clássico de barbárie.

Não vivemos uma democracia escandinava, nem desfrutamos de uma democracia que dê conta de satisfazer os critérios marshallianos (de direitos civis, políticos e sociais). Analisar de forma mais crítica a ausência de direitos civis e sociais seria, aliás, um caminho mais útil para criticar o “sistema político”. Enfim, não se trata de louvar nada nem defender nada do que aí está. Trata-se apenas de separar certos pontos que não são sinônimos e não são causa e efeito uns dos outros necessariamente. Os problemas existem, a corrupção é endêmica e o sistema político tem diversos problemas a serem discutidos. Mas a discussão desses assuntos requer uma extensa discussão sobre pontos que, quando interligados, não podem ser falsamente colocados uns a frente dos outros para fórmulas que servem apenas à retórica e ao fanatismo político-partidário.

Esse blog irá apresentar uma série de artigos destinados a esse debate. Com textos sobre o sistema político, sobre os partidos políticos (suas semelhanças, diferenças e, no limite, sua efetividade), a existência de certas práticas recorrentes (fisiologismo, por exemplo) e a relação destes com outros tantos aspectos da política nacional, corrupção, caixa 2 e assim por diante.

O primeiro deles já é velho no arquivo do blog. Define e discute o "presidencialismo de coalizão" termo que define o formato de relação entre o executivo e o legislativo no Brasil. Acesse-o aqui.

Outro texto sobre o assunto é o de Sérgio Abranches, que trata do presidencialismo no Brasil e nos seus vizinhos latino-americanos, disponível aqui - Veja on-line.

Para comentar, favor utilizar o espaço do blog do GAC.