As considerações que seguem pretendem compreender a atual crise financeira no tema do Estado, especificamente, na sua organização institucional.
De saída, parte-se da premissa que o neoliberalismo é uma forma concreta assumida pelo modo de produção capitalista desde o final dos anos 1970. Nessa década o mundo capitalista assistiu a três grandes transformações no plano macro-econômico: a crise na oferta de petróleo, e o aumento do custo da energia; a suspensão unilateral da conversibilidade direta do dólar em ouro, substituindo um sistema monetário internacional tutelado pelo câmbio flutuante; e finalmente o aumento da taxa de juros pelo FED em 1979, na gestão do democrata Paul Volcker. Esses três fenômenos modificaram a disposição das classes sociais no plano internacional, e o arranjo resultante privilegiaria a remuneração do capital financeiro em detrimento às demais classes e frações de classe.
Isso significa que o ritmo de inovação tecnológica e o crescimento relativo da taxa de lucro foram exponencialmente maiores no circuito capital financeiro do que as transformações experimentadas no circuito capital-trabalho, sejam elas referentes à produção industrial, ao setor de serviços, ou ao mundo rural.
Vale dizer ainda que esta concepção geral é inócua sem a referência à disposição das classes em situações históricas concretas, isto é, há que se identificar em unidades nacionais dadas as condições políticas da luta de classes. Só assim o objeto de análise “neoliberalismo” é pertinente, enquanto uma categoria de explicação do mundo social. Ora, as condições políticas da luta de classes, os termos de sua disputa são definidas em cada país por determinadas instituições, normas, códigos e procedimentos. Ao conjunto dessas instituições chama-se Estado.
Sintetizando as duas proposições: se o neoliberalismo é “definido” no plano internacional como um fenômeno econômico, sua realização política no plano nacional passa necessariamente pelo Estado.
Esse é um primeiro nexo da compreensão do neoliberalismo pela abordagem estatal.
O segundo é mais abstrato, e diz respeito à própria organização dos negócios nas sociedades capitalistas. O crescimento econômico supõe um ambiente mais ou menos estéril, preferencialmente previsível para o andamento regular das atividades capitalistas. Em momentos de crise social, aberta ou latente, a organização política deve suplantar as divergências privadas em função de um pretenso “bem comum”. Ordinariamente, portanto, a autoridade política deve se responsabilizar pelas normas e pelos regulamentos, enquanto que os agentes privados se ocupam da distribuição dos recursos. A intervenção da autoridade política na oferta de bens e serviços, segundo essa estória, é fonte inequívoca de distorções de preços, desperdícios.
Esse é, grosso modo, o núcleo duro do discurso neoliberal; porém, e esse é um ponto importante, conceber esse discurso como ideológico é esclarecedor: ao requerer uma presença constante do Estado, o neoliberalismo é em si um construto político. Em outros termos, a implantação do neoliberalismo numa dada formação capitalista passa pelos aparelhos econômicos do Estado.
E aqui chegamos ao ponto central do argumento aqui esboçado: a reprodução regular do arranjo de classes que privilegia o capital financeiro supõe um consenso quanto ao modelo [neoliberal] de desenvolvimento capitalista; esse consenso é produzido pelos aparelhos econômicos dos Estados nacionais; a realização desse esquema produz um desenho institucional, em cujo topo se encontram as instituições de política econômica.
Utilizando esse argumento, podemos afirmar que:
- o encaminhamento das respostas à crise financeira é um assunto dos homens de negócio do Estado;
- essas respostas serão tão mais eficazes quanto capazes forem os aparelhos econômicos dos Estados centrais.
A crise econômica atual coloca no centro do debate a relação que se estabeleceu entre os dispositivos de regulamentação e controle e os agentes do capital financeiro. Essa relação, que no contexto de crise se revelou espúria, foi produzida paulatinamente pelo desmonte das instituições reguladoras elaboradas ainda nos acordos de Breton Woods. Esse ordenamento institucional regulador foi substituído por uma ordem favorável à liberalização e ao afrouxamento das normas reguladoras das atividades financeiras em escala global.
A retomada das políticas keynesianas aparece como alternativa exclusiva no médio e longo prazo – o problema é que os Estados nacionas não dispõem mais das tradicionais ferramentas de intervenção econômica. Nos últimos 30 anos a participação do Estado nas economias foi marcada pela seguinte movimento: reforço nos instrumentos de estabilização monetária e desmonte do aparato de crescimento econômico. Ao longo dos últimos 30 anos a função “reserva de valor” da moeda prevaleceu sob a função “meio de pagamento” – e o que me parece essencial, esse deslocamento se materializou em um ordenamento institucional muito específico.
Em artigo publicado no NYT, em 17/03/2009, Paul Krugman questiona a agilidade da resposta européia à crise, e faz uma reflexão que toca no ponto central do meu argumento:
“Essa é uma importante razão para a falta de ação fiscal: não há governo em uma posição de assumir a responsabilidade pela economia européia como um todo. O que a Europa tem, em vez disso, são governos nacionais, cada um relutante em incorrer em grandes dívidas para financiar um estímulo que vai transmitir muitos de seus benefícios, se não a maior parte, a eleitores em outros países.”
No artigo o economista contrapõe a potência do Banco Central Europeu à impotência do correlato governo europeu – no caso a comissão européia – e de fato, as atribuições da CE são muito mais orientadas para questões aduaneiras, por exemplo. Já o BCE possui uma série de prerrogativas para assegurar a saúde da moeda comum ao bloco, o Euro, mas esses instrumentos são sempre orientados para sua preservar a moeda na sua função de reserva de valor.
O problema de fundo aqui é bem nítido: o Estado, enquanto forma política, ou seja, enquanto um sistema de instituições hierárquicas deve ser capacitado, dotado de ferramentas adequadas para dar respostas que, até o momento, parecem todas de inspiração keynesiana.
Em síntese, o desenrolar da crise financeira deve trazer o Estado de volta ao centro do debate público; seja como arena de disputa de projetos de desenvolvimento, seja como ator político chave na liderança desse desenvolvimento. De um jeito ou de outro, e para desagravo dos entusiastas da ordem pós-nacional, pós-capital, pós-pós-pós, tudo indica que o retorno do Estado ao proscênio deve acontecer de forma bastante convencional.