quinta-feira, 10 de maio de 2007

A usurpação do Poder Legislativo

ARNALDO MADEIRA
EDSON APARECIDO
EMANUEL FERNANDES
JOSÉ ANÍBAL


A cooptação, explícita e amoral do Executivo, só funciona porque parcela expressiva de parlamentares é com ela conivente


A RELAÇÃO entre os Poderes Executivo e Legislativo passa por um período de tensão crescente. O governo federal, embalado por uma política escancarada de troca de favores, avança sobre as prerrogativas do Congresso Nacional, na tentativa de minar sua autonomia e estabelecer a prática ditatorial de submissão das atividades legislativas aos desmandos do poder central.
No limite, essa relação conflituosa e desrespeitosa poderá ainda desembocar em crise institucional. A popularidade do presidente cresce na proporção inversa do desgaste do Poder Legislativo, para o qual ele, o presidente, é quem mais contribui.
Completamos hoje cem dias de trabalho da atual legislatura. Nesse período, o país assistiu a um negativo recorde de edição de medidas provisórias. De 1º de janeiro a 27 de abril de 2007, o governo Lula editou um total de 24 MPs. Uma média de 6,21 por mês. Essa prática abusiva é uma constante na gestão petista. No seu primeiro mandato, o presidente Lula editou 240 MPs -cinco por mês.
Somando todo o período em que está na Presidência da República, o governo petista acumula a média de 5,09 MPs/mês. Só para efeito de comparação, a média mensal de MPs nos oito anos da gestão Fernando Henrique Cardoso foi de 3,8.
O mais grave é que não houve nem há temas relevantes que justifiquem a enxurrada de medidas provisórias. A maioria delas trata de temas menores, como concessões de créditos extraordinários. Seu principal efeito prático é o trancamento da pauta, que passou a ser atribuição de assessores e tecnocratas palacianos.
Na sua visão distorcida dos valores republicanos, o governo Lula usurpa as funções legislativas de um Congresso Nacional eleito pelo povo para outorgá-las a assessores encastelados nos cargos públicos por nomeação do governo petista.
Os números das votações já realizadas neste ano evidenciam a gravidade da situação. Das 58 proposições votadas pela Câmara dos Deputados entre os dias 2 de fevereiro e 27 de abril, 28 são MPs e 51 (87,93%) são originárias do Poder Executivo. Apenas sete matérias votadas (12,07%) são de iniciativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal.
Graças ao rolo compressor montado com as benesses que só o Poder Executivo pode distribuir, o governo Lula conseguiu o que, a rigor, parece ser mesmo seu maior intento: paralisar o Poder Legislativo.
Quando não consegue monopolizar a pauta com as proposições do Executivo, a base governista no Congresso Nacional apela para a obstrução. Essa é uma ferramenta típica da minoria, já que, teoricamente, a maioria tem votos suficientes para aprovar ou rejeitar as matérias.
Esse contra-senso também pode ser traduzido em números absurdos: de fevereiro a abril deste ano, sob a presidência do deputado federal Arlindo Chinaglia, a pauta da Câmara foi obstruída por medidas provisórias, na média, em 67,24% das sessões. Essa situação se repete no Senado.
A base do governo na Câmara dos Deputados e no Senado Federal atua única e exclusivamente com o objetivo de acentuar ainda mais a partilha de cargos que é feita no Executivo.
Em troca de nomeações e verbas públicas, o bloco situacionista comete absurdos, como no episódio em que a Comissão de Constituição e Justiça e o plenário da Câmara tomaram a decisão inconstitucional de arquivar o pedido de CPI para investigação do caos aéreo. Coube ao Poder Judiciário restabelecer a ordem jurídica.
Essa prática -nociva à democracia- provoca danos incalculáveis ao país. Privado de suas prerrogativas, o Congresso Nacional se vê impedido de tratar de temas urgentes e relevantes, como a regulamentação de investimentos em infra-estrutura, a agenda previdenciária, a legislação trabalhista e a reforma política, a qual os governistas querem transformar numa mera discussão sobre o instituto da reeleição, por se tratar de tema de interesse do presidente Lula.
Deixados em plano secundário por causa da avalanche de MPs e das obstruções feitas pela base governista, dezenas de projetos de lei, inclusive de iniciativa dos Poderes Executivo e Judiciário, esperam análise e deliberação dos parlamentares, como o conjunto de propostas de combate à criminalidade e os projetos que tratam da exploração do gás e dos marcos regulatórios das agências reguladoras.
Que fique claro, no entanto: a cooptação -explícita e amoral do Executivo- só funciona porque uma parcela expressiva de parlamentares é com ela conivente -ou porque não tem noção do papel institucional que lhe cabe, ou porque se sente devidamente gratificada pela paga recebida em troca de apoio incondicional ao governo. Resistir é preciso. Legislativo manietado é caminho certo para o autoritarismo.
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ARNALDO MADEIRA, 67, sociólogo, EDSON APARECIDO, 49, historiador, EMANUEL FERNANDES, 51, engenheiro agrônomo, e JOSÉ ANÍBAL, 60, economista, são deputados federais pelo PSDB-SP.

FDSP, Opinião, 10 de maio de 2007.

terça-feira, 8 de maio de 2007

O que esperar da crise?

ARTIGO - Octaciano Nogueira

Estarrecida com as dimensões da crise ética que infesta o Congresso e com a profusão de delitos nas mais diversas esferas do poder, a sociedade tem indagado o que está se passando com o Brasil. A extensão do fenômeno causa estupor, por seu ineditismo. Mas a doença já se manifestou em vários países, em outras épocas. No começo do século 20 o russo Moisei Yakolevitch Ostrogorsky ganhou fama com o livro Democracia e a organização dos partidos políticos, publicado em Londres em 1902. No 1o volume, ele analisou os partidos políticos americanos e ingleses. O 2o foi dedicado ao mais famoso partido europeu, o social-democrata da Alemanha, em que se inspirou o autor italiano nascido na Alemanha, Robert Michels, para formular sua conhecida “lei de bronze das organizações”.
A tese de Ostrogorsky era a de que a ordem social e política do século 19 vinha sendo mantida graças a uma sociedade tradicionalmente estratificada e que o individualismo a tinha erodido. Por essa razão, a política já não era o resultado das opções dos cidadãos informados e livres, mas sim o produto da organização mecânica do sistema político, dominado pelos políticos profissionais e pelos aparatos partidários. Para ele, organização era a palavra-chave, pois indicava a corrupção essencial das sociedades da época.
Enquanto para Michels a organização era danosa porque levava necessariamente à oligarquização das instituições, para o autor russo era prejudicial, porque impedia a política de caminhar no sentido desejável, na medida em que substituía a ação individual, livre e fruto da meditação, pelas reações manipuladas das massas. As eleições, segundo ele, não representavam o resultado do pensamento ilustrado dos cidadãos responsáveis, mas sim a simples ordenação do consentimento. A opinião era sepultada pelas liturgias da campanha, que cativavam os eleitores pelo espetáculo e pela emoção. A organização, escreveu, havia corrompido a vida política, mas isso era o resultado da corrupção das idéias que formavam a cultura política daquela época. Obviamente, qualquer semelhança com a quadra que estamos vivendo, não é mera coincidência. O francês Maurice Duverger, autor do famoso manual Os partidos políticos, deixou sugerida em seu livro a razão do pessimismo de Ostrogorsky, mas se vale de sua tese para explicar como aspectos negativos da política podem contribuir para aprimorá-la. Escreveu ele: “A darmos crédito a Ostrogorsky, a corrupção teria ocupado lugar assaz importante no desenvolvimento dos grupos parlamentares britânicos. Por muito tempo, os ministros ingleses asseguravam a si sólidas maiorias mediante a compra de votos, senão da consciência dos deputados. A coisa era oficiosa: havia na própria Câmara um guichê onde os parlamentares iam receber o prêmio de seu voto, na ocasião das votações.
Em 1714 foi criado o posto de secretário político da tesouraria, a fim de assumir os encargos dessas operações financeiras; o secretário foi logo, aliás, intitulado o “secretário patrocinador”, porque dispunha da nomeação dos cargos do governo, a título de corrupção. Distribuindo assim as benesses governamentais aos deputados da maioria, o secretário patrocinador fiscalizava muito de perto os seus votos e discursos: tornou-se desse modo, para eles, o homem do whip (chicote, em inglês). “Instaurou-se assim, progressivamente, uma severa disciplina no partido majoritário. Posteriormente, com o gradativo apuro dos costumes parlamentares, a estrutura dos partidos, com sua vigorosa organização e a autoridade dos seus whips, sobreviveu às razões que a haviam feito nascer.” Duverger conclui: “Seria interessante verificar se o sistema britânico não foi empregado em outros países, e se a corrupção parlamentar não engendrou, seja pela ação, seja pela reação, um fortalecimento da organização interior dos grupos de deputados. Sabe-se da importância que esses fenômenos de corrupção assumem numa certa fase do desenvolvimento democrático, como meio de o governo resistir a uma pressão crescente das Assembléias”.
Duverger esteve em Brasília em 1981. Se fosse hoje, poderia verificar que, aqui, essa prática também ocorre. Só que com sinal trocado. Não foi o instrumento a que recorreu o governo para resistir à pressão da Assembléia. Foi a forma de o governo dobrar a Assembléia a seus caprichos e conveniências, levando-a à desmoralização. Resta saber se, como na Inglaterra, esses métodos vão, um dia, contribuir para regenerar nossa vida pública. Oxalá assim seja.

Octaciano Nogueira
Historiador e cientista político


Fonte: http://www.senado.gov.br/