sexta-feira, 29 de junho de 2007

[Contraponto] Voto distrital e lista fechada: as vantagens em relação ao modelo atual

Por André Barsch Ziegmann*

A reforma política está em debate, mais uma vez. Quarta-feira (27/07/2007), o plenário da Câmara dos Deputados rejeitou, com larga vantagem, a lista preordenada. Os pequenos partidos juntaram-se a congressistas das grandes legendas e acabaram com uma ótima oportunidade de tornar as eleições legislativas mais inteligíveis e menos corruptas. Fazer o quê, é difícil esperar mudanças profundas daqueles que se alimentam do sistema. Agora é torcer pelo voto distrital, puro, que certamente é melhor que o modelo vigente, contudo esse, com sorte, deve ser apenas debatido, mencionado!

Nesse texto pretendo discorrer sobre as vantagens do voto distrital e do proporcional de lista fechada sobre o modelo em voga, que pelo jeito vai perdurar por muito tempo. Vou destacar sempre dois pontos, a facilidade do eleitor entender o processo de eleição e a chances de diminuir um pouco a corrupção.

Voto distrital, funcionamento e vantagens

Vamos começar pelo distrital. Como o nome já diz, se esse modelo fosse implantado o Brasil seria dividido em 513 distritos, nos atendo apenas para a eleição da Câmara. Cada um deles teria aproximadamente 244 mil eleitores (divisão, por cima, do número de eleitores pelo de cadeiras). Assim ficaria mais fácil para o cidadão entender como funciona o mecanismo de escolha. O seu município, ou o seu bairro, junto com outros municípios e bairros, escolherá um deputado que os represente na Câmara Federal. No modelo vigente o eleitor vota num candidato que faz 80 mil votos (muitas vezes de sua região) que não se elege e vê outros com 40 mil (de outras e distantes regiões) sendo eleitos. Facilidade também em saber quem é o representante da região, de cobrar promessas, e porque não, de reconhecer uma oposição ao congressista, até porque o eleitor não vai se deparar com milhares de candidatos pedindo seu voto, alguns deles, de lugares tão longínquos, que não fazem a mínima idéia das necessidades específicas do distrito. Os gastos de campanha também seriam menores. Ao invés de concorrer em todo estado, o candidato disputa uma eleição mais “barata”, com menos oponentes e num espaço geográfico reduzido. Por exemplo, no caso do Paraná, ao invés de lutar, em todo o estado, com uma concorrência gigantesca e por um eleitorado de mais de 7 milhões de votos, a embate vai ser circunscrito aos 244 mil eleitores do distrito e a poucos municípios e bairros. Boa parte dos deputados são eleitos com grandes votações em regiões bem definidas, muitos enfatizam na campanha que são os candidatos de suas regiões. Contudo, vários opositores, sem nenhum enraizamento regional, e com base apenas no poderia econômico “invadem” o distrito e muitas vezes tiram a possibilidade da eleição de um político, que possui uma forte base e é reconhecido por algum trabalho que prestou ou presta a comunidade. Há cenários piores, quando políticos, apenas com base no dinheiro, aproveitam-se de vácuos de lideranças regionais e alçam vôo aos legislativos com grandes votações (algumas vezes até desnecessárias, pois já têm os votos suficientes) em regiões onde são nada ou quase nada conhecidos, onde não prestaram nenhum grande serviço. Fica difícil a cobrança, pois o político apareceu no “distrito” apenas na eleição, montou um forte esquema de campanha com vereadores e prefeitos (formadores de opinião/cabos eleitorais), elegeu-se e sumiu! E pode fazer isso, porque têm votos em outros lugares que dão segurança a sua tentativa de reeleição.

Problemas e críticas ao voto distrital

Contudo como não existe forma perfeita, o voto distrital tem suas críticas e dificuldades. Uma delas é de caráter técnico. Imagine dividir o Brasil em distritos federais, estaduais e municipais. Seria necessário aumentar o número de representantes em algumas Assembléias Estaduais, pois o ideal seria dividir o distrito federal em dois estaduais, para manter a proporção de representação exata. É de se esperar que um bairro ou município faça parte de um distrito integralmente (seja ele qual for, federal, municipal ou estadual) e não repartido entre vários do mesmo nível de governo (imagine um município ou bairro dividido entre vários distritos federais, o processo sem dúvida ficaria muito confuso). Outra dificuldade, que com certeza inviabiliza a implantação do modelo puro é a deformação na representação dos Estados. Roraima elege 1,55% (da Câmara) quando têm apenas 0,2 % do eleitorado; é como se o roraimense votasse oito vezes para deputado federal. Esse estado, se a desproporção não for corrigida, seria dividido em distritos de 26,8 mil eleitores. Já o Estado de São Paulo elege apenas 60% da representação a que tem direito, totalizando 70 deputados (deveria eleger 114). Caso o Estado fosse dividido por esse número, os distritos teriam 386 mil eleitores cada. Dessas contas concluímos que um eleitor de Roraima vale 14,4 eleitores de São Paulo.

Outras críticas são referentes à deformação na representação partidária e conseqüente diminuição da competição. A primeira acontece porque a cadeira é conquistada apenas com a vitória no distrito – não adianta fazer 20% dos votos totais e não ganhar em nenhuma região. Tal argumento, muito utilizado pelos críticos do voto distrital, pode ser rebatido por aqueles que olham a eleição distrital por um outro prisma. O deputado é eleito pela região, por mais que o cidadão tenha votado no candidato que perdeu ele será representado por alguém. Ou seja, se por um lado tal modelo pode deformar a representação das legendas, por outro vai garantir que todas as regiões de um território estejam representadas no legislativo. Por esse prisma podemos acusar o voto proporcional de deformar a representação regional. A diminuição da competição partidária acontece justamente porque é mais difícil eleger um parlamentar, reduzindo o estímulo a formação de novos partidos. A organização será atraente para as lideranças se tiver uma forte penetração territorial, uma considerável bancada pré-existente nos legislativos e proporcionar as bases e recursos políticos necessários para uma candidatura bem sucedida.

Lista fechada: prós e contras

E a lista fechada? Ao votarmos nos partidos os milhares de candidatos que disputam os votos dos eleitores vão sumir. Toda aquela poluição causada por santinhos e adesivos vai diminuir. As eternas e repetitivas promessas de campanha por trabalho, segurança, educação e saúde vão ter der ser mais bem elaboradas, pois para atrair os eleitores os partidos terão que demonstrar diferenças entre si. O processo vai se tornar literalmente mais limpo, mais inteligível e mais passivo de cobrança por parte do eleitor. Esse modelo seria um golpe duro na corrupção. No modelo atual os candidatos gastam muito dinheiro para serem conhecidos em todo estado, diante de um gigantesco e heterogêneo eleitorado e enfrentam uma concorrência absurda (vale lembrar que o partido ou coligação pode lançar uma vez e meia o número de cadeiras em disputa). O poderio econômico assume uma importância muito grande, o que sem dúvida estimula o crime eleitoral. Com os recursos centralizados nas campanhas dos partidos, os gastos tendem a diminuir, pois se apenas o partido tem que tornar sua legenda conhecida, a concorrência (o modelo atual é tão sem lógica, que os membros do mesmo partido concorrem entre si) vai cair drasticamente (ao invés de milhares de candidatos, dezenas de partidos). A lista fechada também poderá reprimir candidaturas aventureiras, pois candidatos acabam se elegendo com votações absurdas e “puxando” candidatos inexpressivos. Em 2002, devido ao fenômeno “Enéas” tivemos em São Paulo candidatos eleitos com 200 votos e outros que fizeram mais de 100 mil ficaram de fora. Esse só um dos exemplos da bizarrice em que se constitui a lista aberta. Muitos críticos acreditam que a lista fechada dará muito poder as direções partidárias. Primeiro, direções poderosas existem seja lá qual for o modelo. As listas podem ser escolhidas através de convenções ou prévias, como acontece no Paraguai por exemplo. Nesse país os filiados dos partidos votam em qual lista deve ser apresentada pela legenda nas eleições. No atual modelo as direções (já fortes), têm poder sim sobre quem será ou não candidato e ainda podem privilegiar certas candidaturas. Esse modelo poderia, assim como o distrital, racionalizar o sistema partidário, sem contudo polarizar a eleição em duas ou três legendas, e manteria uma competição política aceitável para um regime democrático.

Evidente que nenhum modelo é perfeito, e tais mudanças não irão eliminar por completo o fisiologismo, o clientelismo e a corrupção. Contudo o modelo atual potencializa todos esses fenômenos negativos da política. O único país do mundo que tem um modelo igual ao do Brasil é a Finlândia (e não cabe comparações). Mais uma vez, nossos deputados estão certos, e o resto do mundo está errado.

André Barsch Ziegmann é mestrando em Ciência Política pela Unicamp e editor do Boletim de Análise de Conjuntura do GAC.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

[Pesquisa] Maioria dos brasileiros não conhece ou não acompanha a reforma política...

...Foi o que mostrou a última pesquisa do Instituto CNT/Sensus. De acordo com a 89ª rodada da sua pesquisa de opinião pública nacional, 51,5% dos entrevistados não ouviu falar ou nem acompanha a reforma política. Entre os 46,8% dos que afirmaram saber da reforma, somente 19,8% disseram acompanhar as discussões, ao passo que 27% afirmaram que “ouviram falar”. Até aqui, nada de muito inesperado, visto que a mídia televisiva não cobre como deveria uma questão desta natureza e a relação do brasileiro com a política é compreensivelmente entediada. Contudo, o dado mais curioso está na quantidade de entrevistados (que sabem da reforma) contra a fidelidade partidária: 40,7%, quase metade. Há que se considerar, nesta e em outras questões da pesquisa, uma incrível capacidade para complicar as perguntas, colocando-as de formas confusas, quando não enviesadas. Ainda assim, é um dado que gera curiosidade. Como ser contra a fidelidade partidária? Mais uma questão que merece ser aprofundada por pesquisas de opinião pública, procurando os motivos e as razões desta posição.

As demais perguntas voltadas para a reforma política não parecem apontar novidades. Os entrevistados se mostram céticos e contrários aos principais pontos da reforma. Parecem preferir que o sistema eleitoral permaneça como está. Vejamos os dados:



Em pergunta que estimula os entrevistados a optarem por um partido (em caso de aprovação da lista fechada), o PT continua a apresentar os maiores índices de voto partidário: 21,4%, ficando perto daqueles que responderam “nenhum partido”, 22%. O PMDB teria voto de 10% dos eleitores, o PSDB, de 7,7% e todos os demais partidos ficariam abaixo dos 5%.

Uma questão de ênfase: muitas questões (da pesquisa toda) parecem ser um ataque ao bom senso. Têm formulações erradas, confusas ou claramente tendenciosas, comprometendo a interpretação dos dados – algo que já foi observado por outros sites e colunistas...

Enfim, para comprovar, aqui está o relatório completo da 89ª Rodada da pesquisa de opinião pública SNT/Sensus. Pode-se averiguar a avaliação do governo, da economia, da “crise aérea”, sobre a censura na TV, violência e outros. O Instituto também disponibiliza os dados das rodadas anteriores.

terça-feira, 26 de junho de 2007

[Pesquisa] O que pensam os deputados estaduais do PR sobre a reforma política

O jornal Gazeta do Povo inquiriu os deputados estaduais do Paraná a respeito dos pontos presentes na proposta de reforma política. Segundo os dados publicados na edição impressa de 25/06/07 (assinantes podem acessar a matéria na íntegra), a maioria dos parlamentares já mudou de partido, mas acredita que o ponto mais importante da reforma seja a fidelidade partidária. Como atestam os gráficos.

Observação: os valores são os números de deputados (e não a porcentagem).


Além disto, a maioria crê que a reforma seja benéfica para a melhoria da democracia brasileira. Dentre os otimistas, uma parcela significativa acredita que mudanças institucionais possam contribuir para mudanças nos valores da classe política. Seria algo como uma espiral na qual novas regras e procedimentos, ao se repetirem ao longo do tempo, criam valores e crenças favoráveis que podem consolidar ainda mais as instituições.

Chama atenção que 27 dos 51 parlamentares entrevistados se posicionaram a favor do sistema eleitoral misto (parte distrital e parte proporcional). Porém, a opção do sistema misto está descartada da proposta de reforma que tramita no Congresso.
Finalmente, a pergunta que mais divide as opiniões dos parlamentares é a que indaga sobre a adoção da lista fechada. Provavelmente uma pequena amostra daquilo que se passa em âmbito federal.

Bela iniciativa. Uma pesquisa assim sobre os deputados federais, cruzando dados sobre partidos políticos, base aliada, oposição, região, seria interessante para mensurar as posições daqueles que irão votar o projeto de reforma.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

[Pesquisa] PSDB e DEM investigam opiniões dos brasileiros

Recentemente, dois dos maiores partidos do Brasil realizaram pesquisas nacionais para examinar os sentimentos e opiniões da população com relação à política nacional: avaliações do presidente Lula, dos partidos, o grau de conhecimento dos potenciais candidatos a presidente, posições quanto a políticas públicas chave etc. Uma delas, a do PSDB, ainda não foi divulgada, aparecendo apenas em um artigo do Blog do Josias e que tráz informações desafiadoras para um partido que quer adquirir identidade junto à classe média e força nas próximas eleições. A outra, do DEM, já foi minimamente divulgada e tráz dados interessantes sobre o autoposicionamento ideológico (esquerda-centro-direita) e socioeconômico, além de subgrupos de idade. O prefeito do Rio, Cesar Maia (DEM), analisa estes dados de forma bastante sintética em um artigo, apresentando alguns cruzamentos entre perfis sociais e opiniões sobre questões-chave, tais como aborto, diminuição da maioridade penal e outras.

Como sempre, as pesquisas aparentam estar muito além (em riqueza de informações) daquilo que chega à imprensa. Infelizmente.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

OAB rejeita lista fechada na reforma


A Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio de seu Conselho Federal, vem de uns tempos para cá emitindo uma série de opinões acerca do desenho institucional da democracia brasileira. Entre as propostas mais propagadas pela instituição é a do aprofundamento da democracia direta por meio do que elas chamaram de "plebiscito revogatório", uma espécie de recall quando o governante comete atos de improbidade comprovada, vindo a perder seu mandato eletivo. Quanto a rejeição pelo Conselho Federal da sistemática da lista fechada, a argumentação deve ir nesse mesmo sentido: a adoção da lista fechada não contribui para o aprofundamento da democracia direta, o que pode ser, em verdade, equivocado.

Os estudos de cultura política mais recentes demonstram que a participação política da população brasileira não pode ser chamada exatamente de participativa. Enganam-se os doutos, primeiramente, de que seria possível criar em um ambiente social arenoso, participação política apenas e somente pela edição de leis (pois se assim o fosse, nosso país não teria problemas, sabe isso quem já folheou a Constituição da República).

Esse ambiente instituicional voltado a participação seria um primeiro passo e poderia ajudar fomentar o aumento de uma cultura política participante. E a lista fechada, dependendo como for implantada teria sim esse condão: a discussão de uma agenda política, um projeto de governo, a participação partidária, com a adoção de primárias com a participação de militantes e filiados, todos esses pontos fomentariam a participação popular, pois modificariam a relação de clientelismo existente ente a classe política e a população, tornando-se uma relação institucional, entre o eleitor e o partido.

Lucas Castro

“O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil rejeitou o item lista fechada na Reforma Política, que determina ao eleitor votar no partido e não mais no candidato. O relator da reforma política na Câmara, deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), e conselheiros federais da OAB debateram o assunto.

O conselheiro pelo Mato Grosso, Almino Afonso Fernandes, propôs a aprovação prévia de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) pelo plenário, contra o sistema de lista fechada. A ação poderá ser apresentada ao Supremo Tribunal Federal caso o Congresso aprove e o presidente da República sancione o sistema de lista fechada.

Pelo projeto, nas eleições para deputado federal, estadual e vereador o eleitor dará seu voto a um partido – e ele próprio vai elaborar lista com aqueles que devem ser eleitos de acordo com o número de vagas nas Câmaras federal, estadual ou de vereadores.

Publicado em: 21/06/2007 – no site do Jornal de Brasília”

quarta-feira, 20 de junho de 2007

A reforma política e o eleitor

Publicado na Gazeta do Povo de 19/06/2007

A reforma política e o eleitor

por LUCIANA VEIGA

Há vários aspectos relacionados à reforma política, particularmente ao sistema eleitoral, que merecem ser amplamente debatidos. Entre eles, dois parecem chamar mais a atenção: o ajuste entre o sistema eleitoral e a cultura política do eleitor e a relação entre o sistema eleitoral e a eficiência e estabilidade da democracia. Aqui, o foco vai estar no primeiro ponto.

O aspecto da reforma política mais em evidência se refere ao tipo de lista a ser adotado. Em questão estão três opções: as listas aberta, fechada e flexível. O sistema proporcional de lista aberta vem sendo adotado no Brasil desde 1945. De acordo com esse sistema, cada partido apresenta uma lista de candidatos sem ordenar nomes e o eleitor vota em uma das opções. Ou seja, o eleitor tem a total liberdade de escolher o seu candidato. O lado ruim dessa lista é que ela tende a personalizar a escolha eleitoral e aumentar a disputa dentro do partido. A potencialização da disputa leva a problemas como o oportunismo típico da infidelidade partidária, a necessidade de grandes financiamentos de campanha entre outros vícios da política.

Em um clima marcado por críticas como essas, foi votada na semana passada o projeto que propunha a alteração da lista aberta para a fechada. No modelo proposto, os partidos decidem antes das eleições a ordem em que os candidatos aparecerão na lista. O eleitor vota em um partido e não pode expressar preferência por um determinado candidato. As cadeiras que cada partido receber serão ocupadas pelos primeiros nomes da lista. A principal desvantagem da lista fechada é a impossibilidade de os eleitores influenciarem a escolha de seus representantes individuais. Considerando a cultura política do brasileiro, abrir mão de tal possibilidade não seria pouca coisa.

Enfim, a proposta foi reprovada e discute-se agora a lista flexível, que oferece ao eleitor a possibilidade de intervir no ordenamento dos candidatos feito pelos partidos antes das eleições. Trata-se de um paliativo, de acordo com o segmento derrotado na última semana.

Para discutir a adequação do sistema eleitoral à cultura política do eleitor – propósito deste artigo –, vale a pena abordar o trabalho de Robert Putnam, professor da Universidade de Harvard, “Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna”. O objetivo de Putnam com a obra foi entender por que na Itália do Norte as instituições democráticas funcionam melhor que na Itália do Sul. Negando-se terminantemente a reduzir a explicação à diferença entre o desempenho econômico das duas regiões, o cientista político buscou analisar a cultura política dos moradores do Sul e do Norte. O trabalho de Putnam refere-se às décadas de 70 e 80.

Putnam apresenta uma discussão interessante sobre a relação entre voto pessoal (em contraposição ao voto partidário) e clientelismo. Nas eleições italianas estudadas pelo professor, os votantes escolhiam uma única chapa partidária e as cadeiras do Legislativo eram distribuídas de maneira proporcional. No entanto, aqueles eleitores que quisessem poderiam indicar a sua preferência por algum candidato. Era o voto preferencial.

Os cientistas políticos italianos logo identificaram que a incidência do voto preferencial era reconhecidamente um indicador de personalismo e clientelismo. Putnam, corroborando tal interpretação, constatou que a participação política nas regiões menos cívicas era induzida pela prática do clientelismo personalista e não por compromissos programáticos com as questões públicas. Nas regiões menos cívicas, Putnam constatou que os moradores freqüentavam de maneira mais assídua os gabinetes dos políticos em busca de favores pessoais do que em regiões mais cívicas. E eram em tais regiões que o índice de votos preferenciais era mais alto.

Podemos constatar que a cultura política brasileira tem algo em comum com a cultura política do sul da Itália. No Brasil, a tolerância e a aceitação do clientelismo ainda atingem pontos relevantes. Pesquisa realizada no Estudos Eleitorais Brasileiros (Eseb) pela Universidade Campinas e outras instituições logo após a eleição de 2002 atestam que 86,1% dos brasileiros acreditam que uma família com fome, ao ser abordada por um candidato que lhe ofereça uma cesta básica, irá aceitar a oferta e votar no candidato.

Quem já teve a oportunidade de percorrer os corredores de uma Assembléia Legislativa (em qualquer estado) pode constatar com que freqüência pessoas esperam em filas nos gabinetes por um contato para resolver um problema individual.

A partir de um trabalho realizado pelo Núcleo de Comunicação Política da UFPR, sobre a escolha do eleitor para deputado estadual nas últimas eleições, foi possível constatar que para um segmento da população, o momento do pleito é a hora do ajuste de contas. Eles tendem a premiar os deputados que fizeram e a punir os que não fizeram, e o critério de avaliação nesse caso tende mais para práticas clientelistas do que para universalistas.

Por fim, dados da pesquisa Eseb ainda apontam que apenas 7,5% da população brasileira vêem o partido como o principal aspecto a ser considerado na hora da decisão do voto para deputado federal e 7,9% têm tal postura em relação à escolha para deputado estadual.

Diante da realidade cultural, podemos pensar que com a adoção da lista flexível possivelmente um grande segmento dos eleitores continuarão a votar nos indivíduos. A cultura do apego a programas programáticos partidários ainda não é uma realidade para a grande maioria da população. Mas a pergunta que deve ser feita nesse momento é onde se quer chegar. O objetivo é optar por um sistema de lista aberto afinado com a cultura política – clientelista e personalista – ainda que esse venha reforçar antigos vícios ou aceita-se passar por um momento de transição que pode deixar o eleitor um pouco confuso a princípio, mas que pode atenuar certos vícios políticos? A lista flexível está entre uma coisa e outra, podendo ser adequada para a transição cultural.

Luciana Fernandes Veiga é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR.

Regras do jogo e rotina institucional

Luiz Domingos Costa

Alguns autores enfocam as reformas políticas como o “jogo das regras”. Ou seja, trata-se de entender como os atores políticos definem as regras do jogo político, ou melhor, como jogam em relação às regras do próprio jogo. O uso desta teoria dos jogos é interessante para enfatizar a interação específica no momento de negociação sobre inovações institucionais. É o que fica claro ao avaliarmos as dificuldades de se estabelecer algum consenso em torno do pacote de reformas políticas em tramitação na Câmara dos Deputados. No que tange a um dos pontos fundamentais da reforma – a adoção da lista fechada – não há nenhum sinal de qualquer acordo que garanta a sua aprovação. Neste sentido, as novas regras (suas restrições e seus incentivos) não agradam a uma maioria de jogadores suficiente para a sua aprovação. E isto por uma razão simples: não garante a eles que permaneçam no jogo com chances de sucesso, vale dizer, coloca sérias dificuldades para uma série de partidos menos conhecidos em âmbito nacional, ofuscando projetos eleitorais de curto prazo.

Este aspecto conjuntural não é, contudo, algo que seja decisivo para o debate em torno das alterações propostas no projeto de lei que tramita na CD. Há que se discutir mais a fundo os aspectos normativos e as possíveis conseqüências deste ou daquele mecanismo para aquilo que se quer mudar. O voto em lista fechada irá proporcionar maior poder e maiores prerrogativas para as direções partidárias. Pode ser que contribua, a médio e longo prazo, para o fortalecimento dos partidos no Brasil, enquanto organizações e enquanto máquinas eleitorais distintas e programáticas. Mas como diversos estudos apontam o personalismo e o clientelismo dos eleitores brasileiros, isto deverá ter um tempo de maturação de algumas eleições, e disso não depende apenas normas e regras eleitorais, depende do comportamento dos eleitores.

Entretanto, os aspectos históricos de nossa legislação partidária e eleitoral não têm sido debatidos. Olhando bem, são muitas inovações (mini-reformas) em uma democracia que tem duas décadas de existência. Após o fim do Regime Militar, as regras para registro e funcionamento dos partidos já mudaram diversas vezes; houve a emenda da reeleição; a verticalização das eleições criou uma disputa jurídica caótica; a cláusula de barreira veio e voltou e etc. A profusão com que isto tem ocorrido, a despeito de ajustar ou não os pontos enfocados, contribuí com efeitos perversos para o médio e longo prazo. Especificamente, mudanças aqui e acolá no sistema eleitoral e partidário que visam o aprimoramento da “governabilidade” podem significar um empecilho à progressão da democracia. Editar, revogar e reeditar regras políticas prejudica a maturação das instituições porque desregula a sua rotina, dificultando a sua inteligibilidade, tanto por parte dos políticos de ofício como por parte dos eleitores.

Do ponto de vista da estabilidade das instituições, é sabido que reformas políticas são tanto menos prováveis quanto maior é o tempo de funcionamento do modelo prévio. Além disso, quando adotadas, têm suas margens de inovação limitadas pelas regras estabelecidas no modelo anterior. Sucessivas mudanças criam ainda uma sensação de ausência de normas, pois quanto maior o volume de reformulações das regras do jogo político, maior a propensão dos atores em não seguir ou respeitar as mudanças, abonados pela confusão legal advindos dessa fluidez institucional. Por exemplo, a conhecida cláusula de desempenho já estava presente na Emenda Constitucional nº 11 de 1978 e graças ao seu descumprimento, PT, PDT e PTB conseguiram sobreviver após as eleições de 1982, pois nenhum destes conseguiu atingir a taxa de 5% dos votos para a Câmara dos Deputados, com o mínimo de 3% em nove estados da federação. Re-introduzida na Lei dos Partidos Políticos de 1995 e só no ano passado levada a sério pelo TSE, seria facilmente driblada por boa parte das legendas que já negociavam fusões, o que não foi preciso após o STF tê-la derrubado. Do ponto de vista dos eleitores, um quadro assim dificulta aprendizado e a internalização dos procedimentos relativos ao processo eleitoral. A descontinuidade de certas regras em curtos intervalos de tempo – verticalização das coligações, por exemplo – coloca os cidadãos em descompasso com as mudanças empregadas, aumenta os custos de sua informação e dificulta a sedimentação do aprendizado político ao longo do tempo.

Provavelmente, com o pacote de reformas em tramitação na Câmara dos Deputados não será diferente. Este projeto retoma, por exemplo, o ponto das cotas para a representação feminina nos parlamentos, regulamentado desde 1998 e que não foi respeitado por quase nenhum partido, salvo raras exceções. Agora, a nova lei afirma que pelo menos 30% das listas partidárias deverão ser compostas por candidatas mulheres. Ainda que o sistema de lista fechada seja mais propício para a implementação das cotas, é difícil ter certeza de que o partido que não cumprir esta medida venha a sofrer algum tipo de sanção, pois a história recente de nossa legislação eleitoral é uma demonstração de incertezas, desvios e diversas revisões jurídicas.

Luiz Domingos Costa é mestrando em Ciência Política na UNICAMP e coordenador do GAC – Grupo de Análise de Conjuntura da UFPR.

O Fortalecimento dos Partidos e da Democracia: o caso da Lista Fechada.

Lucas Fernando de Castro*

Observa-se que os debates acerca do tema “lista fechada” afloraram acaloradas discussões na Câmara dos Deputados. O PL nº. 1210/2007, de proposição do Deputado Regis de Oliveira (PSC/SP), cuja relatoria está com Ronaldo Caiado (DEM/GO) tinha sido colocado na pauta da semana passada, mas como os líderes partidários não chegaram a um denominador comum, foi postergada mais uma vez, e iniciar-se-ão, hoje, novamente as discussões.

O referido PL trata de uma série de modificações na estrutura político-eleitoral brasileira, como, por exemplo, a adoção da lista fechada, o financiamento público das campanhas, a abolição das coligações para eleições proporcionais (Deputados Estaduais, Federais e Vereadores), criação de federações de partidos em substituição às coligações, enfim. Nesse artigo, tratar-se-á do ponto mais polêmico, até agora pelo menos: a adoção da lista fechada.

A lista aberta, adotada no Brasil, em meados de 1945, é um sistema que permite o eleitor escolher diretamente seu candidato ou, como em raras exceções, votar na legenda partidária. A título de ilustração, o Partido dos Trabalhadores, obteve em 2006, nas votações para eleição dos Deputados Federais, em torno de 15% de seus votos oriundos de voto na legenda, enquanto que o PMDB e o PSDB, os três dos maiores partidos do país, obtiveram apenas 5,4% e 13,7%, respectivamente. Isso indica que a esmagadora maioria da população vota em um candidato específico, não dando a devida importância à votação partidária.

Segundo NICOLAU (2006), pode-se formular as seguintes críticas ao sistema de lista aberta: os candidatos, durante o período eleitoral e mesmo durante o mandato, criam estratégias de ação que privilegiam quase que unicamente, seus próprios interesses, e quando assim procedem, acabam enfraquecendo a campanha partidária e a com ela, a própria agremiação política.

O enfraquecimento dos partidos políticos ocasiona, em verdade, uma série de problemas de cunho programático e na seara da arena política e na arena eleitoral.

As agremiações não conseguem formular projetos e planos de governo de maneira clara de modo a informar a população quais seriam suas principais propostas a serem implementadas enquanto ocupantes de cargos eletivos. Programas de governo claros e elucidativos, quando ocorrem, estão sempre voltados a candidatos a cargos no Poder Executivo, e quase nunca a candidatos do Poder Legislativo. Tem-se que ter claro que mesmo que um candidato ao Poder Legislativo tenha uma plataforma de ação bem definida, dentro do Congresso Nacional e dentro das Casas Legislativas estaduais, pouco pode fazer de forma isolada. Necessita do apoio de seu partido e de outros parlamentares que formam ou a base do governo ou da oposição.

Isso fica claro quando entramos na seara das votações durante as Sessões Legislativas, em que a disciplina partidária, dentro da Casa Legislativa Federal (LIMONGI, 1999) é altíssima (em torno de 89,4% de chance de um parlamentar votar com sua bancada; isso durante os dois governos do Presidente Fernando Henrique Cardoso). Esse estudo permite pensar que um parlamentar isolado não consegue produzir determinada política pública para seus eleitores, mas sim o vota de acordo com o entendimento do partido. De outra forma, não consegue nem funcionar como parlamentar.

No que tange a sistemática da lista fechada pura, o eleitor somente escolhe o partido, sendo que os candidatos a ocuparem os cargos em disputa são, igualmente como na lista aberta, escolhidos pelos partidos. A diferença é que se elabora uma lista ordenada com os nomes dos candidatos e à medida que partido consegue determinado número de cadeiras, os primeiros da lista vão ocupando os cargos até que se esgote o número de cadeiras conseguidas pelo determinado partido.

Algumas particularidades do sistema de lista fechada proposto pelo PL 1210/2007: a lista deve ser elaborada de forma a respeitar a proporção 30/70 para os gêneros, no mínimo; os parlamentares de cada partido devem comunicar sua intenção de concorrer ao mesmo cargo (com antecedência mínima) e quando o fizerem irão ocupar o topo da lista, ordenados pelo número de votos que obtiveram na eleição passada.

Antes de entrar nas críticas específicas ao PL analisado, existem críticas claras ao sistema fechado. Citar-se-á apenas três, a saber: a lista fechada reduz a opção de voto do eleitor, obrigando o eleitor a escolher apenas entre os partidos sem poder manifestar-se acerca de qual candidato ocupará a cadeira; oligarquizaria os partidos, tornando-os instâncias de mera reprodução de seus caciques, pois esses sempre indicariam seus correligionários/amigos para assim, manter-se sempre no poder; ausência de prestação de contas (accountability) individualizada por parte do parlamentar a seu eleitorado (por exemplo, o que fez durante o mandato, se ocupou cargos, quais proposições legais deu início, enfim), pois o parlamentar não teria interesse na prestação de contas, pois sua principal preocupação é o trabalho partidário.

Apesar de impedir o eleitor de votar no candidato, o sistema de lista fechada não representa uma novidade, tendo em vista que o processo de recrutamento do candidato já é dominando quase que inteiramente pelo partido político. O eleitor já escolhe seu candidato com base em uma lista preparada pelas agremiações. Além disso, existência do mecanismo de coligações acaba distribuindo os votos para os partidos que a compõem, fazendo com que o eleitor ajude, ou mesmo a eleja alguém em que ele não votou. O sistema de lista fechado, quando comparado com atual sistema, não parece reduzir a opção de voto do eleitor da forma como propugnam seus detratores, mas sim, tornaria mais transparente, pois você saberia quem estaria elegendo, exatamente aqueles candidatos da lista, obrigatoriamente. A obrigatoriedade do voto em um partido político requer uma aproximação maior e uma busca de informações para a realização do sufrágio e, isso isoladamente já deveria causar um aumento na cultura política participativa da população, sedimentando a democracia.

Quanto à oligarquização dos partidos, existem pesquisas (MATLAND; STUDLAR, 2004) que, primeiramente, apontam que não há relação entre o sistema eleitoral e a taxa de renovação partidária. Mais ainda, não existem nem mesmo evidências de que a adoção de lista fechada contribuiu para a diminuição do status democrático. Mais ainda, podemos afirmar que o mecanismo de formação das listas pode ser um motor para a democratização do partido, ou seja, com a instituição de primárias, convenções mais disputadas, diminuindo assim a oligarquização dessas instituições. A proporção na formação das listas em termos de gênero (no mínimo 30/70) é, por exemplo, um mecanismo muito eficaz, já utilizado na Argentina, para ajudar na inclusão das mulheres na arena parlamentar, democratizando o acesso aos altos cargos da hierarquia política.

A diminuição de prestação de contas mais individualizada perde o sentido quando da instituição da lista fechada. Um argumento contra o sistema vigente é que apenas 44% dos eleitores lembra em quem votou, passados apenas dois meses das eleições (NICOLAU, 2006). O parlamentar vota em grande parte das vezes conforme a indicação do líder partidário, não sendo necessário o acompanhamento individualizado de cada parlamentar, mas sim no partido como um todo. Mais ainda, a grande vantagem, sob essa ótica, é que a relação do eleitor passa a ser com a instituição partido político, e não com o parlamentar, de uma relação pessoa – pessoa (eleitor-candidato) a uma relação pessoa – instituição (eleitor – partido). Isso, talvez, seria uma das variáveis que poderia ajudar a criar uma cultura política mais participativa e democrática em nosso país.

A adoção da lista fechada no sistema eleitoral brasileiro pode ajudar a consolidar e enraizar na cultura política brasileira a importância dos partidos políticos, tornando-se instituições fortes que tenham programas claros e precisos para o futuro do país, impulsionando a participação popular. Isso, sem sombra de dúvida, somente trará benefícios para a já institucionalizada democracia brasileira.

*Lucas Fernando de Castro, é advogado, graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, é membro do GAC – Grupo de Análise de Conjuntura do NUSP.

Referências.

FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. 1999. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro, Ed. FGV.

MATLAND, RICHARD E.; STUDLAR, DONLEY T. 2004. Determinants of Legislative Turnover: A Cross-National Analysis. British Journal of Political Science (2004), 34: 87-108 Cambridge University Press

NICOULAU, J. 2006. Lista Aberta – Lista Fechada. in Reforma política no Brasil. Leonardo Avritzer, Fátima Anastasia (organizadores). – Belo Horizonte: Editora UFMG.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Reforma Política em negociação na CD


A discussão no Plenário da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei da reforma política (acesse na íntegra o projeto no Blog do Josias), de autoria do deputado Regis de Oliveira (PSC-SP), começou e não terminou. A polêmica em torno do primeiro item – voto em lista fechada – fez com que a proposta passasse para a próxima semana. O pacote de propõe grandes mudanças em nossa vida eleitoral e partidária, incidindo basicamente sobre os seguintes pontos:

Justificação

“[...] a) a deturpação do sistema eleitoral causada pelas coligações partidárias nas eleições proporcionais;

b) a extrema personalização do voto nas eleições proporcionais, da qual resulta o enfraquecimento das agremiações partidárias;

c) os crescentes custos das campanhas eleitorais, que tornam o seu financiamento dependente do poder econômico;

d) a excessiva fragmentação do quadro partidário;

e) as intensas migrações entre as legendas, cujas bancadas no Legislativo oscilam substancialmente ao longo das legislaturas [...]”

Observação: A justificação para a nova lei (que pode ser acessada juntamente com o texto do Projeto no link acima) é bastante esclarecedora no tocante aos aspectos históricos da legislação partidária brasileira, às causas e problemas que a lei deseja reparar, bem como uma análise dos demais projetos que tramitaram ou ainda estão envolvidos no tema.

O debate sobre a reforma será feito neste Blog, ao longo da semana que vem. Confiram.


terça-feira, 5 de junho de 2007

Caminhos incertos

BORIS FAUSTO

Refiro-me à convicção de que práticas corruptoras são um tema algo secundário, que deve ceder terreno ao combate às injustiças sociaisQUANDO A onda do "mensalão" e de outras práticas delituosas veio à tona, a barragem de fogo contra os fortes indícios ou as claras evidências deu margem a um leque de estranhos argumentos. Hoje, alguns nem merecem atenção, como a "tese" da conspiração das elites -que, aliás, vão muito bem, obrigado- contra o governo e o PT. Outros devem ser relembrados nesta conjuntura em que as operações da Polícia Federal vêm desvendando esquemas de corrupção multipartidários, atingindo, em grau variável, as diversas instâncias de poder. Esses argumentos são os que desqualificaram as denúncias como uma "ofensiva moralista", desfechada pelos principais órgãos da imprensa e por um ou outro aguerrido profissional de televisão. O moralismo devia ser denunciado -dizia-se- porque seu objetivo, a serviço da "direita", era obscurecer os avanços sociais promovidos pelo atual governo, promovendo, como lastro, uma histeria da classe média. Se essa afirmação é hoje risível diante das características da delinqüência desvendada nos dias que correm, vale a pena insistir, tomando o fio da meada, na visão de uma certa "esquerda" sobre o chamado moralismo. Quero me referir à convicção de que práticas corruptoras, mesmo generalizadas, são um tema relativamente secundário, que deve ceder terreno preferencial ao combate verbal e prático -às vezes, mais verbal do que prático- às inegáveis injustiças de nossa sociedade. Essa concepção ganhou ares de verdade ao longo dos últimos 70 anos, lançando a pecha de insensível, de elitista, em quem se aventurasse a refutá-la. Desse modo, muitos preferiram não só fechar os olhos à corrupção público-privada mas também aos males dos regimes autoritários ao adotar uma atitude sintetizada numa frase atribuída a Getúlio Vargas: "voto não enche barriga". O lastimável quadro atual pelo menos abre um espaço maior à crítica a esse tipo de raciocínio. Em poucas palavras, não se constrói um regime social mais justo sem respeitar os princípios básicos da democracia: a livre escolha dos governantes, a transparência da ação dos agentes públicos e dos negócios dos empreendedores privados, a ampla liberdade dos meios de comunicação, o direito à informação, a aplicação uniforme da justiça, sem privilégios de classe ou de posição social, a consolidação de uma atitude ética na sociedade e no mundo político. Alguns caminhos para atingir os dois objetivos por último enunciados estão claros à nossa frente. Eles se compõem de uma combinação de medidas repressivas, reformas institucionais e algo bem mais difícil de alcançar -uma transformação da cultura, no sentido amplo da expressão. O país avançou no primeiro desses caminhos. O exemplo mais relevante encontra-se na ação positiva da Polícia Federal, ao desvendar mais e mais os tentáculos da corrupção, ao enquadrar peixes graúdos de toda espécie, despertando protestos que evidenciam ainda mais a importância de sua atividade. Isso não significa que o órgão, internamente, esteja isento da praga corruptora, que concordemos com alguns lances cinematográficos dispensáveis ou que deixemos de sentir um travo pela inapetência por apurar o caso da armação de dossiês destinados a prejudicar o então candidato ao governo de São Paulo José Serra. Bem mais devagar seguimos no percurso de outros caminhos, aqueles que dizem respeito a reformas institucionais. Em todo caso, a pressão da opinião pública e da fragilizada oposição -apesar de tudo, elas existem- vem forçando os Poderes da República a cogitar de medidas moralizadoras, como a revisão das normas de elaboração dos Orçamentos, suprimindo as emendas individuais, ou o maior controle do processo de licitação. Mas, aqui, uma boa dose de ceticismo não faria mal. Em matéria de Orçamento, por exemplo, giramos em falso desde os tempos dos "anões", hoje esquecidos. E é de se perguntar se um Congresso Nacional tão corporativo, cujos membros são tão propensos aos arranjos "intra corporis", pode promover reformas administrativas com seriedade. Quanto ao último dos caminhos apontados, seus objetivos, por natureza, são alcançáveis somente a longo prazo. Não se introduz ou se reintroduz, da noite para o dia, princípios éticos básicos, hoje tão esfarrapados. E isso preocupa porque, sem a interiorização individual e coletiva desses princípios, tudo o mais, por importante que seja, se sujeita a uma luta inglória, sempre e sempre reposta.

BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

Publicado no jornal Folha de São Paulo em 05 jun 2007.