terça-feira, 5 de junho de 2007

Caminhos incertos

BORIS FAUSTO

Refiro-me à convicção de que práticas corruptoras são um tema algo secundário, que deve ceder terreno ao combate às injustiças sociaisQUANDO A onda do "mensalão" e de outras práticas delituosas veio à tona, a barragem de fogo contra os fortes indícios ou as claras evidências deu margem a um leque de estranhos argumentos. Hoje, alguns nem merecem atenção, como a "tese" da conspiração das elites -que, aliás, vão muito bem, obrigado- contra o governo e o PT. Outros devem ser relembrados nesta conjuntura em que as operações da Polícia Federal vêm desvendando esquemas de corrupção multipartidários, atingindo, em grau variável, as diversas instâncias de poder. Esses argumentos são os que desqualificaram as denúncias como uma "ofensiva moralista", desfechada pelos principais órgãos da imprensa e por um ou outro aguerrido profissional de televisão. O moralismo devia ser denunciado -dizia-se- porque seu objetivo, a serviço da "direita", era obscurecer os avanços sociais promovidos pelo atual governo, promovendo, como lastro, uma histeria da classe média. Se essa afirmação é hoje risível diante das características da delinqüência desvendada nos dias que correm, vale a pena insistir, tomando o fio da meada, na visão de uma certa "esquerda" sobre o chamado moralismo. Quero me referir à convicção de que práticas corruptoras, mesmo generalizadas, são um tema relativamente secundário, que deve ceder terreno preferencial ao combate verbal e prático -às vezes, mais verbal do que prático- às inegáveis injustiças de nossa sociedade. Essa concepção ganhou ares de verdade ao longo dos últimos 70 anos, lançando a pecha de insensível, de elitista, em quem se aventurasse a refutá-la. Desse modo, muitos preferiram não só fechar os olhos à corrupção público-privada mas também aos males dos regimes autoritários ao adotar uma atitude sintetizada numa frase atribuída a Getúlio Vargas: "voto não enche barriga". O lastimável quadro atual pelo menos abre um espaço maior à crítica a esse tipo de raciocínio. Em poucas palavras, não se constrói um regime social mais justo sem respeitar os princípios básicos da democracia: a livre escolha dos governantes, a transparência da ação dos agentes públicos e dos negócios dos empreendedores privados, a ampla liberdade dos meios de comunicação, o direito à informação, a aplicação uniforme da justiça, sem privilégios de classe ou de posição social, a consolidação de uma atitude ética na sociedade e no mundo político. Alguns caminhos para atingir os dois objetivos por último enunciados estão claros à nossa frente. Eles se compõem de uma combinação de medidas repressivas, reformas institucionais e algo bem mais difícil de alcançar -uma transformação da cultura, no sentido amplo da expressão. O país avançou no primeiro desses caminhos. O exemplo mais relevante encontra-se na ação positiva da Polícia Federal, ao desvendar mais e mais os tentáculos da corrupção, ao enquadrar peixes graúdos de toda espécie, despertando protestos que evidenciam ainda mais a importância de sua atividade. Isso não significa que o órgão, internamente, esteja isento da praga corruptora, que concordemos com alguns lances cinematográficos dispensáveis ou que deixemos de sentir um travo pela inapetência por apurar o caso da armação de dossiês destinados a prejudicar o então candidato ao governo de São Paulo José Serra. Bem mais devagar seguimos no percurso de outros caminhos, aqueles que dizem respeito a reformas institucionais. Em todo caso, a pressão da opinião pública e da fragilizada oposição -apesar de tudo, elas existem- vem forçando os Poderes da República a cogitar de medidas moralizadoras, como a revisão das normas de elaboração dos Orçamentos, suprimindo as emendas individuais, ou o maior controle do processo de licitação. Mas, aqui, uma boa dose de ceticismo não faria mal. Em matéria de Orçamento, por exemplo, giramos em falso desde os tempos dos "anões", hoje esquecidos. E é de se perguntar se um Congresso Nacional tão corporativo, cujos membros são tão propensos aos arranjos "intra corporis", pode promover reformas administrativas com seriedade. Quanto ao último dos caminhos apontados, seus objetivos, por natureza, são alcançáveis somente a longo prazo. Não se introduz ou se reintroduz, da noite para o dia, princípios éticos básicos, hoje tão esfarrapados. E isso preocupa porque, sem a interiorização individual e coletiva desses princípios, tudo o mais, por importante que seja, se sujeita a uma luta inglória, sempre e sempre reposta.

BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

Publicado no jornal Folha de São Paulo em 05 jun 2007.

Um comentário:

Anônimo disse...

Por que nao:)