sexta-feira, 26 de março de 2010

A novíssima história da Guerra do Paraguai: historiografia e ideologia (ou, afinal de contas, história intelectual serve para quê?)

[José Yalenti. Pirelli/MASP]

José Szwako*

Há um par de semanas, os dois maiores jornais paulistanos dedicaram uma página de seus folhetins intelectuais ao Paraguai ou, mais precisamente, à Guerra do Paraguai (1865-1870). Ocorre que, como alguns devem saber, o governo brasileiro decidiu devolver àquele país um canhão conquistado pelo Brasil durante o maior e quiçá mais importante conflito bélico da história sulamericana. No “Estadão”, Ivan Marsiglia comenta o caso, levantando algumas das figuras e instituições atuais que, dos dois lados da ponte da amizade, estiveram envolvidas na devolução do troféu de guerra ao nosso vizinho. Boris Fausto, no Mais!, vai direto ao ponto que quero discutir aqui: as controvérsias historiográficas geradas pelas interpretações da Guerra do Paraguai e, sobretudo, dos seus heróis e vilões paraguaios.

Se você, como eu, foi escolarizado em algum momento entre fins dos 1970 e os anos iniciais deste século, muito provavelmente você deve ter aprendido na escola a seguinte versão folclórica da Grande Guerra – como é chamada entre os paraguaios.

Ato primeiro: em pleno fim do século XIX, o Paraguai já era (na falta de palavra melhor) uma potência, com níveis invejáveis de escolaridade e de autonomia econômica, e sem a odiosa instituição da escravidão... Segundo ato: um barbudo e heróico Solano Lopez queria acesso ao mar para fazer de seu país uma nação mais desenvolvida e mais poderosa. Ato terceiro: a obstinação de Lopez, reza a lenda, colocaria em risco os interesses político-econômicos dos britânicos que passam então a manipular o Brasil, cuja vocação essencial (desnecessário dizer) sempre foi pacífica. Ato derradeiro: todo mundo sabe e repete: financiados pela coroa inglesa e pelo seu interest, Argentina, Uruguai e Brasil se unem para destruir aquela potência imaginada que era o Paraguai e, tristemente, aquele barbudo submete mais da metade da população masculina de seu país a morrer em campo de batalha.

O professor Boris Fausto nos conta que essa versão já foi superada pela historiografia de ponta. De forma bastante acurada, o historiador chama essa versão folclórica de ‘tese conspirativa’: “Hoje, a tese conspirativa está desacreditada, graças aos trabalhos de Francisco Doratioto, baseado em fontes brasileiras e paraguaias (...) e de outros historiadores”. Isso é fato: a recente pesquisa historiográfica mostra que o Paraguai nunca foi a tal potência imaginada nos bancos escolares e que Solano Lopez não foi sempre, nem necessariamente, um herói daquele país. O ponto que quero destacar aqui e que parece fugir ligeiramente aos comentários dos folhetins paulistanos, mas não negligenciado por Doratioto, é a forma através da qual aquela “tese conspirativa” ganhou vida e se difundiu de forma tão eficaz no imaginário folclórico que, desde a década de 1980, chega aos nossos bancos escolares.

Uma das obras mais fundamentais da versão conspirativa no Brasil (e é importante dizer “no Brasil” porque a historiografia argentina, também nas décadas de 1970 e 80, fez o favor de reinterpretar de forma idealizada o conflito entre os países do cone sul) foi “O Genocídio americano: A Guerra do Paraguai”, do jornalista José Chiavenato. Nesse livro, Chiavenato dá os contornos mais fortes da “tese conspirativa”, de forma a idealizar o Paraguai, caracterizando-o como ‘desenvolvido’ e ‘soberano’, e alçando seus primeiros líderes políticos à posição de herói. Contudo, para entender de onde o jornalista tira essas conclusões é necessário voltar um pouco mais atrás na história intelectual paraguaia e, daí, fazer um pequeno adendo ao comentário do professor Fausto.

Se voltássemos ao Paraguai do início do século XX, seria muito difícil saber se a posição ocupada por Solano Lopez no imaginário paraguaio era de um ditador sanguinário ou de uma figura massacrada e injustiçada pelos países vizinhos. Não apenas ele, mas também seus antecessores políticos, o Doutor Francia e outro Lopez, tinham alguns rios de tinta derramados para decidir se eles eram algozes ou heróis da nação. Na década de 1930, no entanto, isso muda com o chamado ‘revisionismo histórico’, que consistiu em um esforço intelectual de dissecar e inventar as bases da paraguaidade, fossem elas históricas, culturais, raciais, geográficas. É certo que, em meados dos anos 1930, a busca pela ‘verdadeira’ identidade nacional não era exclusividade da luta em torno do imaginário paraguaio. Contudo, o traço distintivo do Paraguai foi a inversão feita em torno da figura dos primeiros líderes políticos do Paraguai após sua independência e em torno da própria Guerra do Paraguai: nos termos do revisionismo, as representações de Francisco Solano Lopez, por exemplo, passaram de ‘tirano’ odiado a ‘herói máximo’ do país. Ligados ao Partido Colorado em sua maioria, os intelectuais de então reescreveram uma nova história paraguaia, na qual Lopez foi supostamente injustiçado pelos líderes liberais e pela sua era (pós-guerra até 1940).

Assim, desde os anos 1930, o discurso nacionalista paraguaio alterna, a partir daquela primeira inversão operada torno da figura de Francisco Solano Lopez, entre o lopizmo e o antilopizmo – com uma clara vitória daquela primeira versão para a nação. Entretanto, menos do que estar ligada a uma disputa entre produtores culturais mais, ou menos, encantados com tal figura, a lógica da interpretação sobre a Grande Guerra e sobre a ‘natureza’ dos Lopez e de Francia – o fato de decidir se, afinal, eles tinham feito do Paraguai um país independente, desenvolvido e democrático em pleno século XIX – se enraizava nas disputas de caráter ideológico partidário e tinha como árbitro ninguém menos do que o oficialato intelectualizado das Forças Armadas.

Exemplo dessa sorte de oficial intelectualizado, e envolvido no dilema nacionalista lopizmo versus antilopizmo, é o coronel Arturo Bray (1898-1974), autor de ‘Solano Lopez: soldado de la gloria y del infortunio’. Para Bray, os termos de tal controvérsia - estar a favor de ou contra Lopez – são ‘absurdos, detestáveis e desprovidos de toda razão histórica’, e mais: “Solano Lopez encarnou a pátria no momento mais decisivo da vida nacional (...). Aceitar Solano Lopez é justificar a causa nacional; renegá-lo é fazer o jogo dos sofismas inspirados e criados pela guerra da Tríplice Aliança, atitude que nenhum paraguaio de fibra pura pode aceitar. Os pecados e as fraquezas do homem [do Marechal Solano Lopez] são coisa a parte (...). Seu histórico tem mais de vítima do que de vitimário e sua estrela é a estrela do Paraguai eterno”(BRAY, 1945).

Em meados dos anos 1950, o regime stronista herda esse contexto de debate polarizado e o atualiza, sem subvertê-lo, de forma que, ambos, o próprio general e o Partido Colorado passam a compor o panteão do nacionalismo lopizta. A entronização da figura de Stroessner foi ideologicamente operada de diversas maneiras e em diferentes níveis. A propaganda oficial stronista era simplesmente insuportável, tudo remetia a ele. Ruas, cidades, praças, aeroportos, monumentos, programas de rádio e de televisão, produtos, empresas e, até mesmo, bilhetes de loteria faziam lembrar publicamente onde se estava: no Paraguai de Stroessner.

No bojo da produção partidário-ideológica stronista, estava a mais nova historiografia (colorada) do Paraguai. Em textos, livros, monumento e discursos, essa produção dispunha Stroessner em uma linha direta e imaginária de continuidade com aqueles ‘heróis’ ressuscitados pelo revisionismo dos anos 1930. Foi daí, dessa vasta produção ideológica forjada pelo último e longevo autoritarismo paraguaio, que historiadores brasileiros e argentinos tiraram suas grandes conclusões de que Lopez, Francia e o Paraguai encarnavam alguma sorte de potência já no século XIX. O tom do discurso do próprio general, prestes a ganhar mais uma das suas semieleições, diz tudo:
"Los Colorados sentimos y comprendemos en su verdadero alcance la misión nacional que el destino nos ha asignado. Tenemos una cerada voluntad y un patriotismo insobornable para trabajar por la causa suprema de la felicidad del pueblo.
(...)
Podemos expresar que la tarea cumplida en las visitas al interior del país ha sido fructífera. Ha servido para evaluar toda la obra de mi Gobierno y para señalar las obras del futuro en consonancia com los ideales que inspiraron en su hora a nuestros Próceres y que dieron jerarquia moral a los sacrifícios de nuestros héroes, como José Gaspar Rodríguez de Francia, Carlos Antonio López, Francisco Solano López y Bernardino Caballero [fundador do partido]
(...)
La empresa en que estamos empeñados los Colorados ha hecho suya la tradición de nuestros mayores, el sacrificio de nuestros Próceres y el heroismo del soldado guarani” (STROESSNER, 1973, p.52).

Justiça seja feita: isso não foi um erro só de historiadores. O stronismo se declarava o maior defensor da língua guarani – mesmo se e quando o etnocídio contra grupos indígenas seguiu sistemático sob a ditadura de Stroessner. Utilizando-se da língua guarani, seus ‘defensores’, intelectuais próximos ao general, empreendiam a reificacão da língua e do país, obviamente com sua típica idealização do passado glorioso. Assim, na retórica supostamente protecionista da língua, estar contra os “símbolos da nação”, ou seja, contra Lopez, contra o guarani e contra Stroessner, era estar contra o Paraguai. De frente para essa bela e suposta defesa da língua, que na verdade era mais uma forma de perseguição aos inimigos do regime, alguns lingüistas estadunidenses chegaram a alçar o Partido Colorado à posição de guardião autêntico do guarani...

Ora, o que esses fatos nos mostram é que a função de mediação ideológica, neste caso, desempenhada pelos intelectuais do Partido Colorado em disputa com outras versões (então silenciadas) de Paraguai, foi solenemente ignorada pelos intérpretes advindos de outros campos nacionais de produção intelectual. Sem prestar atenção à natureza e à forma da mediação e ao conteúdo das disputas ideológicas, incorremos nesse tipo de tradução indevida, cometendo equívocos duplamente históricos.

Em tempo, e a quem possa interessar: ‘Ideologia autoritária’, de Guido Rodríguez Alcalá e ‘Língua, Nação e nacionalismo’, de Carolina Rodríguez Zucollillo.

*José Szwako é doutorando em Ciências Sociais na Unicamp, desenvolvendo uma tese sobre os movimentos sociais no Paraguai.

sábado, 20 de março de 2010

Desigualdade e Justiça Tributária



15/05/2008
Márcio Pochmann
IPEA


No desenvolvimento das nações, a tributação exerce um papel importante no enfrentamento das desigualdades. Quanto mais justo o sistema tributário, menor tende a ser o grau de concentração de riqueza e renda nacional. O caso brasileiro pode ser assim
caracterizado, em breve palavras.

(1) Desigualdade na repartição da Riqueza no Brasil:



Ao se tomar como referência alguns indicadores de concentração da riqueza no Brasil no longo prazo, percebe-se que o décimo mais rico da população mantém elevada participação no estoque de riqueza nacional. Mesmo com as mudanças no regime político e no padrão de desenvolvimento, a riqueza permanece pessimamente distribuída entre os brasileiros.


(2)Baixa Carga Tributária Líquida Operacional:




Embora todo o debate sobre Carga Tributária se restrinja atualmente à discussão sobre a trajetória da Carga Tributária Bruta - que cresceu de 30,4% para 35,7% do PIB entre 2000 e 2007 -, é fundamental recuperar a análise da Carga Tributária Líquida, que corresponde ao que o Governo arrecada menos o que retorna às mãos dos cidadãos por meio das transferências de renda (benefícios previdenciários e assistenciais).
Se além disso, se descontarmos da Carga Tributária também o que fica retido pelos credores do Estado na forma de pagamento de juros, vemos que os recursos mantidos no âmbito do setor público para o financiamento de bens e serviços correspondem a um volume bem menor em termos de percentual do PIB, parcela esta que praticamente não cresceu.


(3)Injustiça Tributária no Brasil:


A Carga Tributária Bruta é constituída por tributos diretos – que incidem sobre a renda e o patrimônio – e por tributos indiretos – que incidem sobre o consumo. É sabido que a tributação indireta têm características regressivas, isto é, incidem mais sobre os mais pobres, enquanto que a tributação direta possui efeitos mais progressivos, incidindo mais sobre os mais ricos.
O Gráfico acima confirma essa regra geral para o Brasil, mas com um grave problema: o peso da tributação indireta é muito maior do que o da tributação direta, tornando regressivo o efeito final do nosso sistema tributário. Ademais, o grau de progressividade da tributação direta ainda é baixo no Brasil. O décimo mais pobre sofre uma carga total equivalente a 32,8% da sua renda, enquanto o décimo mais rico, apenas 22,7. Isto é absolutamente inaceitável, principalmente em um país de enorme desigualdade de renda como o Brasil.

domingo, 14 de março de 2010

A semana na CCJ: gênero, diversidade sexual e Codesul

[Gilson Camargo]

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da ALEP discutiu nesta terça-feira (2), o projeto de lei n° 698/09, de autoria do deputado Professor Lemos (PT), que propõe a obrigatoriedade da inserção de conteúdos curriculares sobre relações entre gêneros e diversidade sexual nos estabelecimentos de ensino.
O relator do projeto, Caíto Quintana (PMDB), enfatizou que o assunto da matéria é de competência da Secretaria de Educação do Estado, e não dos parlamentares, portanto, seu parecer foi pela inconstitucionalidade da matéria.

Durante a discussão, o líder do Governo, deputado Luiz Cláudio Romanelli (PMDB), destacou que as questões como sexualidade da criança e do adolescente já são abordados na escola, e que a elaboração do conteúdo programático dessas disciplinas, devido a sua complexidade, compete exclusivamente aos profissionais da educação especialistas na área de sexualidade.

Com intenção de salvar o conteúdo do projeto, o deputado Tadeu Veneri (PT) propôs ao relator que o transformasse em Indicação Legislativa. O pedido foi atendido pelo relator.

O projeto propunha em seu conteúdo programático a inclusão das discussões sobre a constru¬ção social das diferentes feminilidades e masculinidades, história das mulheres e conquistas histórias dos movimentos sociais de mulheres, construção histórica e relacional do conceito de gênero, respeito à diferença e garantia do direito a educação pública para todas as pes¬soas, orientações sexuais, identidades de gênero, entre outros.

Durante a sessão, foi aprovado o projeto de lei n° 03/10, que cria a sociedade anônima de capital fechado, denominada Companhia de Desenvolvimento do Extremo Sul. Segundo o texto do projeto, o capital social máximo autorizado deve ser no valor de até R$ 100 milhões.

O projeto, de autoria do Poder Executivo, faz parte das ações do Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul - CODESUL, que tem como finalidade fundamental a facilitação do intercâmbio entre os Estados do Sul, com a intenção de fomentar o desenvolvimento econômico, social e político, além da adoção de medidas comuns nas áreas de segurança pública, saúde e defesa civil.

Compõem o CODESUL os Estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, assim, textos semelhantes deverão ser votados nas Assembléias Legislativas dos quatro estados.

O parecer favorável foi relatado pelo deputado Caíto Quintana (PMDB), e teve registro de abstenção do deputado Reni Pereira (PSB). O projeto foi encaminhado à Comissão de Finanças e aguarda parecer.

Fonte: Roberta Picussa, Vigilantes da Democracia, (05/03/2010)

quarta-feira, 3 de março de 2010

fortuna e virtù no pleito presidencial: ocaso tucano

[Luz Teimosa, Fernando Lemos. Pirelli/Masp]
Lucas Massimo

Na primeira metade dos anos 1990, exatamente em janeiro de 1993, reunia-se em Washington uma porção de especialistas num semanário organizado pelo Institute for International Economics, cujo tema era “The Political Economy of Policy Reform”; nessa ocasião debateu-se à exaustão um documento escrito por John Williamson sob o sugestivo título de “Search of a Manual of Thecnopols”. Entre vários tópicos levados ao debate no encontro, discutiu-se o peso de variáveis políticas no sucesso das reformas econômicas, em particular, para a conveniência de executar políticas com efeitos sociais perversos na sequência de catástrofes como guerras ou contextos de hiperinflação.

Estou parafraseando o texto de José Luis Fiori, publicado no caderno Mais! da Folha em 03 de Julho de 1994, o artigo “Moedeiros Falsos”. A razão pela qual esse assunto é pertinente, na conjuntura presente, é que ele alude a uma dificuldade experimentada pelas classes dominantes brasileiras na passagem dos anos 80 para a década de 1990, qual seja, a articulação de uma sólida aliança de interesses sociais em torno de uma plataforma comum, e sua tradução para o mundo político através de uma candidatura para a presidência da República.

Ao final dos anos 1980 o desmoronamento do bloco de sustentação do modelo nacional-desenvolvimentismo era um fato consumado; o que estava em aberto era a direção do novo pacto de dominação, e a maneira como se exerceria a hegemonia numa sociedade com alto grau de ativação política, e calejada por um modelo de crescimento econômico que concentrava renda de uma forma jamais vista.

A combinação de desalento e indefinição foi, a um só tempo, produtor e resultado do insulamento de um grupo de técnicos encabeçados por FHC, que, sublinho, aprofundou o programa de reformas vencedor do pleito em 1989 – e nesse aspecto a querela sobre o caráter eleitoreiro do Plano Real fica num longínquo segundo plano.

A candidatura de FHC surge ancorada na estabilidade monetária, porém, o arranjo de interesses sociais que o sustenta é infinitamente mais sólido que a base de apoio a Collor, patrono do programa de modernização da sociedade brasileira. E isso não diz respeito à evolução da coalizão, ou a administração de seus conflitos internos, nem ao imponderável da restrição externa, mas sim ao sucesso em articular interesses sociais dispersos, particularizados pela crise de hegemonia que se instalou após a crise da dívida, na primeira metade da década de 80. É difícil periodizar a disseminação das idéias liberalizantes dentro das classes dominantes brasileiras, mas é interessante notar que o fim da hiperinflação, apresentado como feito histórico, fundou as bases políticas para uma ampla recomposição interna da distribuição da riqueza entre as classes sociais, bem como para uma re-inserção do país na era das finanças globalizadas.

É preciso ter em mente como a combinação da fortuna e da virtu transformou a doma da inflação em condição de sucesso do programa de reformas neoliberais inaugurado por Fernando Collor, mesmo quando as condições políticas de sustentação do governo estavam dirimidas, e quando tudo sugeriria uma vitória retumbante das oposições. Isso é especialmente válido no momento presente, onde as oposições, e aqui aponto o destino dessa reflexão, parecem tão dispersas na capacidade de generalização de uma plataforma junto aos desafios que se colocam nos novos parâmetros do pacto de dominação; concretamente, em que medida a divisão interna do PSDB representa a incapacidade do partido em fazer ecoar os interesses comuns das diversas classes e frações de classe que se fizeram dominantes no curso dos governos FHC? A pergunta é retórica, mas objetivamente, que partido melhor representa os interesses do latifundiário conservador, ou num léxico mais atual, “o agronegócio brasileiro”? Até onde o discurso da eficiência no gasto público posiciona essa fração de classe no mesmo pólo da indústria de telecomunicações? De que maneira a crise das finanças globalizadas alterará o exercício da dependência econômica no país, e o que as candidaturas poderão indicar a esse respeito?

Em síntese, é importante observar a tessitura da articulação de interesses sociais, que subsistem na forma “aliança político-partidária”, seja pela necessidade de elaborar análises sociológicas consistentes, seja pelo desafio que o prognóstico da política brasileira impõe.

Lucas Massimo é pesquisador do Grupo de Pesquisas sobre Neoliberalismo e Relações de Classe, e mestrando em Ciência Política pelo IFCH/UNICAMP.

Drogas, pobres e mortes

[Zebra, Tanzania. Giedo van der Zwan. National Geographic Image Collection]
Gazeta do Povo, 3 mar. 2010, p. 2.

Fábia Berlatto

Por que tantas mortes violentas em Curitiba e região metropolitana? Apesar de as atividades ligadas ao varejo de drogas terem mudado muito nas últimas duas décadas devido à associação com a cadeia internacional de produção e distribuição de produtos ilícitos, isso não quer dizer que haja, muito menos em Curitiba, o que comumente se chama de “crime organizado”, naquele modelo das máfias, dos exércitos etc. que se baseiam na ideia de honra, de fidelidade. Muito pelo contrário: o fato de o comércio de drogas se caracterizar por um equilíbrio precário de poder é uma das explicações para o aumento de casos de mortes violentas em seu circuito.

O acirramento dos conflitos pelos pontos de venda é constante e crescente, o que exige um processo dinâmico de substituição dos agentes participantes. O fato de os traficantes “locais” serem substituídos por traficantes “de fora” aumenta ainda mais a violência, já que esses últimos não têm qualquer laço comum, qualquer envolvimento prévio com os moradores das áreas onde atuam. Não esqueçamos que os policiais são também responsáveis por um grande número de mortes.

Esse processo dinâmico de busca pelo monopólio de certos territórios é um dos elementos fundamentais para entender, entre outras coisas, o processo de juvenilização dos agentes envolvidos no narcotráfico. Convém lembrar ainda que no estágio da vida que hoje chamamos de juventude, a necessidade de identificação e reconhecimento social é mais aguçada. Isso é importante para pensar, entre outras coisas, a preponderância da associação entre identidade viril e a prática de atos agressivos e violentos entre jovens de sexo masculino (de qualquer classe social, diga-se). No entanto, nessa categoria etária são poucos aqueles que aderem ao tráfico.

Quanto às mulheres, elas são historicamente muito menos violentas que os homens, e ainda que seja possível verificar um aumento da participação feminina nas redes do tráfico, elas geralmente ocupam posições que não exigem enfrentamento e, portanto, o uso da força armada.

Mas o mais importante a ser dito é que o fato de o maior número de mortes relacionadas ao tráfico ocorrer em bairros periféricos, especialmente nas favelas, não quer dizer que a pobreza e os baixos índices de educação sejam determinantes da criminalidade e da violência. Sobre essa “interpretação”, deve-se dizer duas coisas: enquanto os grandes comerciantes, os intermediários e os financiadores do comércio de drogas podem permanecer invisíveis, a venda a varejo, a etapa mais visível e por isso mais arriscada das transações, se concentra predominantemente em favelas; por outro lado, o comércio que envolve o consumidor final, que quase nunca se realiza em “bocas”, mas em toda a cidade, inclusive em bairros “de alto padrão”, encontra-se protegido por uma série de mecanismos de tolerância social.

A consequência disso é que a criminalização do tráfico de drogas recai preferencialmente sobre os pobres. Isso já foi insistentemente repetido e, mais importante, comprovado por pesquisas sociais. Se há um maior número de pretos, de pobres e de pretos pobres nas penitenciárias brasileiras, não é porque há neles ou nas favelas um condicionante, seja ele geográfico, genético, psicológico ou sociológico. Isso tem a ver com os mecanismos que o Estado adota no enfrentamento da criminalidade (e também com aqueles que decide não adotar).

A sociabilidade violenta que caracteriza a relação entre os bandos de traficantes de drogas é distinta daquela que articula os moradores das favelas entre si. Esses últimos também sofrem, e sofrem ainda mais devido à proximidade territorial com os conflitos, o que os obriga a viver perenemente em situação de risco, a terem suas rotinas e sua sociabilidade normal alteradas pelo medo e pela insegurança.

É importante enfatizar, por último, que o tráfico de drogas só é possível através de uma rede de interdependência formada por diversos agentes sociais, desde o consumidor até o Estado. Tanto o tráfico de drogas quanto o de armas, que viabiliza o primeiro, é inviável também sem a participação ativa de agentes estatais como policiais corruptos. Evidentemente, estes não são os únicos responsáveis pelo funcionamento e pela eficiência desse sistema.

O tráfico de drogas não é um evento desconectado da dinâmica social, não é um fato isolado que acontece fora das nossas vistas, longe, nas “periferias”. O tráfico de drogas é um sistema que inclui e integra vários agentes sociais, que tem poderes distintos e status sociais diferentes.

Esse sistema contém uma perversão intrínseca. Ele transfere toda a violência que lhe é inerente para as áreas pobres das cidades, garantindo, por sua vez, a tranquilidade da maioria dos consumidores endinheirados e dos chefões comerciais e financeiros desse esquema. Isso não só estigmatiza, mas deixa ainda mais vulneráveis aqueles jovens pobres, que, quando têm alguma oportunidade de trabalho, são para ocupações miseravelmente remuneradas e em condições extremamente desestimulantes.

Fábia Berlatto, cientista social, é membro do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná e mestre em Sociologia pela UFPR.