Drogas, pobres e mortes
[Zebra, Tanzania. Giedo van der Zwan. National Geographic Image Collection]
Gazeta do Povo, 3 mar. 2010, p. 2.
Fábia Berlatto
Por que tantas mortes violentas em Curitiba e região metropolitana? Apesar de as atividades ligadas ao varejo de drogas terem mudado muito nas últimas duas décadas devido à associação com a cadeia internacional de produção e distribuição de produtos ilícitos, isso não quer dizer que haja, muito menos em Curitiba, o que comumente se chama de “crime organizado”, naquele modelo das máfias, dos exércitos etc. que se baseiam na ideia de honra, de fidelidade. Muito pelo contrário: o fato de o comércio de drogas se caracterizar por um equilíbrio precário de poder é uma das explicações para o aumento de casos de mortes violentas em seu circuito.
O acirramento dos conflitos pelos pontos de venda é constante e crescente, o que exige um processo dinâmico de substituição dos agentes participantes. O fato de os traficantes “locais” serem substituídos por traficantes “de fora” aumenta ainda mais a violência, já que esses últimos não têm qualquer laço comum, qualquer envolvimento prévio com os moradores das áreas onde atuam. Não esqueçamos que os policiais são também responsáveis por um grande número de mortes.
Esse processo dinâmico de busca pelo monopólio de certos territórios é um dos elementos fundamentais para entender, entre outras coisas, o processo de juvenilização dos agentes envolvidos no narcotráfico. Convém lembrar ainda que no estágio da vida que hoje chamamos de juventude, a necessidade de identificação e reconhecimento social é mais aguçada. Isso é importante para pensar, entre outras coisas, a preponderância da associação entre identidade viril e a prática de atos agressivos e violentos entre jovens de sexo masculino (de qualquer classe social, diga-se). No entanto, nessa categoria etária são poucos aqueles que aderem ao tráfico.
Quanto às mulheres, elas são historicamente muito menos violentas que os homens, e ainda que seja possível verificar um aumento da participação feminina nas redes do tráfico, elas geralmente ocupam posições que não exigem enfrentamento e, portanto, o uso da força armada.
Mas o mais importante a ser dito é que o fato de o maior número de mortes relacionadas ao tráfico ocorrer em bairros periféricos, especialmente nas favelas, não quer dizer que a pobreza e os baixos índices de educação sejam determinantes da criminalidade e da violência. Sobre essa “interpretação”, deve-se dizer duas coisas: enquanto os grandes comerciantes, os intermediários e os financiadores do comércio de drogas podem permanecer invisíveis, a venda a varejo, a etapa mais visível e por isso mais arriscada das transações, se concentra predominantemente em favelas; por outro lado, o comércio que envolve o consumidor final, que quase nunca se realiza em “bocas”, mas em toda a cidade, inclusive em bairros “de alto padrão”, encontra-se protegido por uma série de mecanismos de tolerância social.
A consequência disso é que a criminalização do tráfico de drogas recai preferencialmente sobre os pobres. Isso já foi insistentemente repetido e, mais importante, comprovado por pesquisas sociais. Se há um maior número de pretos, de pobres e de pretos pobres nas penitenciárias brasileiras, não é porque há neles ou nas favelas um condicionante, seja ele geográfico, genético, psicológico ou sociológico. Isso tem a ver com os mecanismos que o Estado adota no enfrentamento da criminalidade (e também com aqueles que decide não adotar).
A sociabilidade violenta que caracteriza a relação entre os bandos de traficantes de drogas é distinta daquela que articula os moradores das favelas entre si. Esses últimos também sofrem, e sofrem ainda mais devido à proximidade territorial com os conflitos, o que os obriga a viver perenemente em situação de risco, a terem suas rotinas e sua sociabilidade normal alteradas pelo medo e pela insegurança.
É importante enfatizar, por último, que o tráfico de drogas só é possível através de uma rede de interdependência formada por diversos agentes sociais, desde o consumidor até o Estado. Tanto o tráfico de drogas quanto o de armas, que viabiliza o primeiro, é inviável também sem a participação ativa de agentes estatais como policiais corruptos. Evidentemente, estes não são os únicos responsáveis pelo funcionamento e pela eficiência desse sistema.
O tráfico de drogas não é um evento desconectado da dinâmica social, não é um fato isolado que acontece fora das nossas vistas, longe, nas “periferias”. O tráfico de drogas é um sistema que inclui e integra vários agentes sociais, que tem poderes distintos e status sociais diferentes.
Esse sistema contém uma perversão intrínseca. Ele transfere toda a violência que lhe é inerente para as áreas pobres das cidades, garantindo, por sua vez, a tranquilidade da maioria dos consumidores endinheirados e dos chefões comerciais e financeiros desse esquema. Isso não só estigmatiza, mas deixa ainda mais vulneráveis aqueles jovens pobres, que, quando têm alguma oportunidade de trabalho, são para ocupações miseravelmente remuneradas e em condições extremamente desestimulantes.
Fábia Berlatto, cientista social, é membro do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná e mestre em Sociologia pela UFPR.
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