A novíssima história da Guerra do Paraguai: historiografia e ideologia (ou, afinal de contas, história intelectual serve para quê?)
[José Yalenti. Pirelli/MASP]
José Szwako*
Há um par de semanas, os dois maiores jornais paulistanos dedicaram uma página de seus folhetins intelectuais ao Paraguai ou, mais precisamente, à Guerra do Paraguai (1865-1870). Ocorre que, como alguns devem saber, o governo brasileiro decidiu devolver àquele país um canhão conquistado pelo Brasil durante o maior e quiçá mais importante conflito bélico da história sulamericana. No “Estadão”, Ivan Marsiglia comenta o caso, levantando algumas das figuras e instituições atuais que, dos dois lados da ponte da amizade, estiveram envolvidas na devolução do troféu de guerra ao nosso vizinho. Boris Fausto, no Mais!, vai direto ao ponto que quero discutir aqui: as controvérsias historiográficas geradas pelas interpretações da Guerra do Paraguai e, sobretudo, dos seus heróis e vilões paraguaios.
Se você, como eu, foi escolarizado em algum momento entre fins dos 1970 e os anos iniciais deste século, muito provavelmente você deve ter aprendido na escola a seguinte versão folclórica da Grande Guerra – como é chamada entre os paraguaios.
Ato primeiro: em pleno fim do século XIX, o Paraguai já era (na falta de palavra melhor) uma potência, com níveis invejáveis de escolaridade e de autonomia econômica, e sem a odiosa instituição da escravidão... Segundo ato: um barbudo e heróico Solano Lopez queria acesso ao mar para fazer de seu país uma nação mais desenvolvida e mais poderosa. Ato terceiro: a obstinação de Lopez, reza a lenda, colocaria em risco os interesses político-econômicos dos britânicos que passam então a manipular o Brasil, cuja vocação essencial (desnecessário dizer) sempre foi pacífica. Ato derradeiro: todo mundo sabe e repete: financiados pela coroa inglesa e pelo seu interest, Argentina, Uruguai e Brasil se unem para destruir aquela potência imaginada que era o Paraguai e, tristemente, aquele barbudo submete mais da metade da população masculina de seu país a morrer em campo de batalha.
O professor Boris Fausto nos conta que essa versão já foi superada pela historiografia de ponta. De forma bastante acurada, o historiador chama essa versão folclórica de ‘tese conspirativa’: “Hoje, a tese conspirativa está desacreditada, graças aos trabalhos de Francisco Doratioto, baseado em fontes brasileiras e paraguaias (...) e de outros historiadores”. Isso é fato: a recente pesquisa historiográfica mostra que o Paraguai nunca foi a tal potência imaginada nos bancos escolares e que Solano Lopez não foi sempre, nem necessariamente, um herói daquele país. O ponto que quero destacar aqui e que parece fugir ligeiramente aos comentários dos folhetins paulistanos, mas não negligenciado por Doratioto, é a forma através da qual aquela “tese conspirativa” ganhou vida e se difundiu de forma tão eficaz no imaginário folclórico que, desde a década de 1980, chega aos nossos bancos escolares.
Uma das obras mais fundamentais da versão conspirativa no Brasil (e é importante dizer “no Brasil” porque a historiografia argentina, também nas décadas de 1970 e 80, fez o favor de reinterpretar de forma idealizada o conflito entre os países do cone sul) foi “O Genocídio americano: A Guerra do Paraguai”, do jornalista José Chiavenato. Nesse livro, Chiavenato dá os contornos mais fortes da “tese conspirativa”, de forma a idealizar o Paraguai, caracterizando-o como ‘desenvolvido’ e ‘soberano’, e alçando seus primeiros líderes políticos à posição de herói. Contudo, para entender de onde o jornalista tira essas conclusões é necessário voltar um pouco mais atrás na história intelectual paraguaia e, daí, fazer um pequeno adendo ao comentário do professor Fausto.
Se voltássemos ao Paraguai do início do século XX, seria muito difícil saber se a posição ocupada por Solano Lopez no imaginário paraguaio era de um ditador sanguinário ou de uma figura massacrada e injustiçada pelos países vizinhos. Não apenas ele, mas também seus antecessores políticos, o Doutor Francia e outro Lopez, tinham alguns rios de tinta derramados para decidir se eles eram algozes ou heróis da nação. Na década de 1930, no entanto, isso muda com o chamado ‘revisionismo histórico’, que consistiu em um esforço intelectual de dissecar e inventar as bases da paraguaidade, fossem elas históricas, culturais, raciais, geográficas. É certo que, em meados dos anos 1930, a busca pela ‘verdadeira’ identidade nacional não era exclusividade da luta em torno do imaginário paraguaio. Contudo, o traço distintivo do Paraguai foi a inversão feita em torno da figura dos primeiros líderes políticos do Paraguai após sua independência e em torno da própria Guerra do Paraguai: nos termos do revisionismo, as representações de Francisco Solano Lopez, por exemplo, passaram de ‘tirano’ odiado a ‘herói máximo’ do país. Ligados ao Partido Colorado em sua maioria, os intelectuais de então reescreveram uma nova história paraguaia, na qual Lopez foi supostamente injustiçado pelos líderes liberais e pela sua era (pós-guerra até 1940).
Assim, desde os anos 1930, o discurso nacionalista paraguaio alterna, a partir daquela primeira inversão operada torno da figura de Francisco Solano Lopez, entre o lopizmo e o antilopizmo – com uma clara vitória daquela primeira versão para a nação. Entretanto, menos do que estar ligada a uma disputa entre produtores culturais mais, ou menos, encantados com tal figura, a lógica da interpretação sobre a Grande Guerra e sobre a ‘natureza’ dos Lopez e de Francia – o fato de decidir se, afinal, eles tinham feito do Paraguai um país independente, desenvolvido e democrático em pleno século XIX – se enraizava nas disputas de caráter ideológico partidário e tinha como árbitro ninguém menos do que o oficialato intelectualizado das Forças Armadas.
Exemplo dessa sorte de oficial intelectualizado, e envolvido no dilema nacionalista lopizmo versus antilopizmo, é o coronel Arturo Bray (1898-1974), autor de ‘Solano Lopez: soldado de la gloria y del infortunio’. Para Bray, os termos de tal controvérsia - estar a favor de ou contra Lopez – são ‘absurdos, detestáveis e desprovidos de toda razão histórica’, e mais: “Solano Lopez encarnou a pátria no momento mais decisivo da vida nacional (...). Aceitar Solano Lopez é justificar a causa nacional; renegá-lo é fazer o jogo dos sofismas inspirados e criados pela guerra da Tríplice Aliança, atitude que nenhum paraguaio de fibra pura pode aceitar. Os pecados e as fraquezas do homem [do Marechal Solano Lopez] são coisa a parte (...). Seu histórico tem mais de vítima do que de vitimário e sua estrela é a estrela do Paraguai eterno”(BRAY, 1945).
Em meados dos anos 1950, o regime stronista herda esse contexto de debate polarizado e o atualiza, sem subvertê-lo, de forma que, ambos, o próprio general e o Partido Colorado passam a compor o panteão do nacionalismo lopizta. A entronização da figura de Stroessner foi ideologicamente operada de diversas maneiras e em diferentes níveis. A propaganda oficial stronista era simplesmente insuportável, tudo remetia a ele. Ruas, cidades, praças, aeroportos, monumentos, programas de rádio e de televisão, produtos, empresas e, até mesmo, bilhetes de loteria faziam lembrar publicamente onde se estava: no Paraguai de Stroessner.
No bojo da produção partidário-ideológica stronista, estava a mais nova historiografia (colorada) do Paraguai. Em textos, livros, monumento e discursos, essa produção dispunha Stroessner em uma linha direta e imaginária de continuidade com aqueles ‘heróis’ ressuscitados pelo revisionismo dos anos 1930. Foi daí, dessa vasta produção ideológica forjada pelo último e longevo autoritarismo paraguaio, que historiadores brasileiros e argentinos tiraram suas grandes conclusões de que Lopez, Francia e o Paraguai encarnavam alguma sorte de potência já no século XIX. O tom do discurso do próprio general, prestes a ganhar mais uma das suas semieleições, diz tudo:
"Los Colorados sentimos y comprendemos en su verdadero alcance la misión nacional que el destino nos ha asignado. Tenemos una cerada voluntad y un patriotismo insobornable para trabajar por la causa suprema de la felicidad del pueblo.
(...)
Podemos expresar que la tarea cumplida en las visitas al interior del país ha sido fructífera. Ha servido para evaluar toda la obra de mi Gobierno y para señalar las obras del futuro en consonancia com los ideales que inspiraron en su hora a nuestros Próceres y que dieron jerarquia moral a los sacrifícios de nuestros héroes, como José Gaspar Rodríguez de Francia, Carlos Antonio López, Francisco Solano López y Bernardino Caballero [fundador do partido]
(...)
La empresa en que estamos empeñados los Colorados ha hecho suya la tradición de nuestros mayores, el sacrificio de nuestros Próceres y el heroismo del soldado guarani” (STROESSNER, 1973, p.52).
Justiça seja feita: isso não foi um erro só de historiadores. O stronismo se declarava o maior defensor da língua guarani – mesmo se e quando o etnocídio contra grupos indígenas seguiu sistemático sob a ditadura de Stroessner. Utilizando-se da língua guarani, seus ‘defensores’, intelectuais próximos ao general, empreendiam a reificacão da língua e do país, obviamente com sua típica idealização do passado glorioso. Assim, na retórica supostamente protecionista da língua, estar contra os “símbolos da nação”, ou seja, contra Lopez, contra o guarani e contra Stroessner, era estar contra o Paraguai. De frente para essa bela e suposta defesa da língua, que na verdade era mais uma forma de perseguição aos inimigos do regime, alguns lingüistas estadunidenses chegaram a alçar o Partido Colorado à posição de guardião autêntico do guarani...
Ora, o que esses fatos nos mostram é que a função de mediação ideológica, neste caso, desempenhada pelos intelectuais do Partido Colorado em disputa com outras versões (então silenciadas) de Paraguai, foi solenemente ignorada pelos intérpretes advindos de outros campos nacionais de produção intelectual. Sem prestar atenção à natureza e à forma da mediação e ao conteúdo das disputas ideológicas, incorremos nesse tipo de tradução indevida, cometendo equívocos duplamente históricos.
Em tempo, e a quem possa interessar: ‘Ideologia autoritária’, de Guido Rodríguez Alcalá e ‘Língua, Nação e nacionalismo’, de Carolina Rodríguez Zucollillo.
*José Szwako é doutorando em Ciências Sociais na Unicamp, desenvolvendo uma tese sobre os movimentos sociais no Paraguai.
3 comentários:
Excelente texto.
Análise primorosa.
lágrimas!
Postar um comentário