sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

As eleições para a presidência da Câmara: uma briga de compadres?

Gazeta do Povo 19 jan. 2007

Sérgio Soares Braga

A eventual consolidação de uma candidatura de terceira via para a presidência da Câmara dos Deputados pode ser uma boa oportunidade para que se trave um efetivo debate público sobre o papel do Legislativo no atual sistema político brasileiro. Apenas se isso ocorrer estas eleições podem ter algum significado político relevante para a opinião pública, evitando transformar-se em mais uma “briga de compadres” nas hostes governistas (onde os parlamentares disputam entre si para mostrar qual o mais fiel servidor do governo), sem que se promovam alterações significativas ou aperfeiçoamentos substanciais na forma de funcionamento do Congresso Nacional e na relação dessa casa legislativa com a sociedade brasileira.

Não deixa de ser decepcionante que a preocupação central dos candidatos até agora (e da maioria dos analistas políticos) tenha sido com a contabilização de votos e com os conchavos de bastidores envolvendo os apoios mútuos para as candidaturas. Também é um indício preocupante o fato de que nenhum dos dois postulantes governistas tenha se dedicado a justificar para a opinião pública o porquê exatamente das respectivas candidaturas. Afinal, se ambos apóiam o governo em que diferem exatamente entre si? Por que as duas candidaturas?

Ora, muito mais importante do que isso são as propostas efetivas a serem apresentadas pelos candidatos para modernizar o Poder Legislativo no Brasil e reaproximá-lo da sociedade brasileira, recuperando um pouco a desgastada imagem da instituição após sucessivas acusações de corrupção e tentativas escandalosas de autofavorecimento.

Pelo que foi divulgado, no entanto, as perspectivas são pouco alvissareiras. Consta que uma das principais “idéias” do principal candidato governista, caso seja eleito, é encaminhar um projeto de iniciativa popular anulando o processo de cassação de José Dirceu e outros envolvidos no escândalo do mensalão. O outro candidato situacionista, por sua vez, atual presidente da Câmara e co-autor de um livro intitulado “Reeleição: golpe contra a democracia”, publicado pela editora Anita Garibaldi no longínquo ano de 1997, também pouco veio a público para esclarecer quais são suas propostas efetivas caso seja reeleito. Ao que parece, nenhum dos dois posicionou-se com a veemência necessária pouco tempo atrás contra o escandaloso reajuste salarial de 91% que os deputados pretendiam autoconceder-se.

A candidatura do deputado Gustavo Fruet pode ser um importante fato político no sentido de estimular o debate público sobre o papel do Congresso e do Legislativo brasileiros e dar um certo significado político efetivo a uma eleição que parecia morna, a ser decidida mais na base do “toma-lá-dá-cá” (isto é, no tradicional e promíscuo troca-troca de cargos e favores por apoio político, como é praxe na vida política brasileira) do que pelo debate público de idéias e propostas de gestão.

A esse respeito, talvez um bom ponto de partida para o debate sejam as propostas divulgadas recentemente pela ONG Transparência Brasil, repercutindo os pontos de vista expressos por um grupo de parlamentares preocupados com os rumos do Congresso Nacional e, portanto, da própria democracia brasileira. Dentre outras questões relevantes, exige-se que os candidatos à presidência da Câmara se posicionem, de maneira clara e inequívoca, em relação aos seguintes pontos polêmicos: (i) estabelecimento de um teto máximo, pelo índice de inflação, para o reajuste salarial dos deputados e para os gastos de campanha; (ii) redução e ampla divulgação das verbas de gabinete e verbas indenizatórias de cada parlamentar; (iii) obrigatoriedade da divulgação dos nomes e das funções das pessoas empregadas em cada um dos gabinetes; (iv) instituição de mecanismos de avaliação e acompanhamento permanentes de programas de governo no âmbito de cada Comissão Legislativa, para que as comissões se transformem efetivamente em órgãos de controle e acompanhamento de políticas públicas setoriais; (v) fim do voto secreto em plenário e obrigatoriedade de divulgação de todas as votações nominais. Isso para não falar das questões referentes à realização de uma “reforma política”, ou seja, do encaminhamento, durante a próxima legislatura, de mudanças substanciais visando a melhoria da legislação eleitoral e partidária brasileira.

Só assim (isso é, caso os pontos acima sejam objeto de um efetivo debate público entre os candidatos) as eleições à presidência da Câmara podem se transformar num momento de aperfeiçoamento da democracia e das instituições legislativas no Brasil, e não tornar-se mais uma “briga de compadres” onde, como diria o escritor italiano Tomaso di Lampedusa, apenas sejam feitas mudanças cosméticas para que tudo o mais permaneça como está.

Sérgio Soares Braga é professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFPR.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

A famosa reforma política

Adriano Codato (UFPR)

O debate político no Brasil não é pobre. É esquizofrênico. O humor dos especialistas (e do público bem informado) varia entre o que poderíamos chamar de hipercomportamentalismo e hiperinstitucionalismo. O primeiro time garante que todos os problemas da política nacional – populismo, elitismo, excesso de estado, falta de Estado – decorrem dos vícios da “classe política”. Depurada essa, através de um grande movimento moralizador, a corrupção poderia ser mais controlada e controlável. O segundo time vê as dificuldades políticas – governabilidade, representatividade, proporcionalidade, ou a ausência delas – como um problema de desenho institucional. Mudadas as regras do jogo, através de uma reforma da legislação partidária e eleitoral, teríamos não só uma “legislação de primeiro mundo”, mas uma política de primeiro mundo: partidos ideológicos, governos programáticos, legislativo eficiente.

Supondo que o interesse geral e comum de todos nós seja uma elevação do padrão ético dos políticos, uma reforma política, imagina-se, seria suficiente para garantir isso. Os movimentos pela “ética na política” têm um componente ilusório muito forte. Acreditam que o aperfeiçoamento da representação política (seus mecanismos e seus objetivos) está ligado apenas à melhoria da elite política e que esse aprimoramento pode ser conseguido trocando-se os políticos. Para substituir a classe política nativa por outra, só uma “reforma política”, seja lá o que isso signifique.

Do outro lado, o diagnóstico é diferente, mas a terapia é idêntica. A questão central aqui não é a moralidade, mas, para os mais conservadores, a governabilidade, e para os mais progressistas, a representatividade. Boas leis devem prometer boas instituições políticas e boas instituições, bons comportamentos. Reforme-se então o direito eleitoral. Essa posição possui dois defeitos, um lógico, outro histórico. O primeiro decorre de certo tipo de raciocínio que em lógica informal chamamos de falácia post hoc. Traduzindo: “depois disso, logo, por causa disso”. Postula-se (sem que se comprove) uma relação causal entre o sistema eleitoral e a qualidade da representação política; ou entre o número de partidos e a governabilidade. Ora, não é porque a variável A possui alguma relação, forte ou fraca, com a variável B que A é, necessariamente, a causa de B. O segundo defeito é mais trivial. É suficiente lembrar que o Brasil já teve 11 legislações eleitorais, isso sem contar as mudanças tópicas. A cada eleição. Daí que o problema não deva ser (somente) esse.

O tema da reforma política, isto é, sua necessidade, urgência e finalidade sempre ganha destaque quando se descobrem casos de corrupção no Legislativo e/ou no Executivo. Entretanto, na conjuntura atual a reforma não é só irrealizável; é irrelevante. Qualquer modificação em qualquer aspecto da legislação eleitoral e partidária afeta interesses. E os interessados se mobilizam ou para barrar a alteração proposta ou para neutralizar seus efeitos. Foi o caso do fim da cláusula de barreira, que, aliás, não acabou com a fragmentação partidária, seu objetivo inicial. Este é um exemplo não da dificuldade momentânea da realização da reforma política, mas da sua inviabilidade.

Em linhas gerais, a reforma pode ser dividida em duas frentes: a primeira é a reforma do sistema eleitoral, isto é, a alteração das regras que regulam como os cidadãos votam; a segunda, a reforma do sistema partidário, ou seja, a modificação das normas que estabelecem certos critérios para o funcionamento político e parlamentar dos partidos. Para cada uma dessas frentes propõem-se uma série de mudanças, tanto mudanças superficiais quanto profundas. Vou dar quatro exemplos. Uma reforma superficial no sistema eleitoral seria a introdução do financiamento público das campanhas eleitorais; uma mudança profunda seria a introdução do sistema de listas partidárias fechadas e preordenadas (pelos partidos políticos) nas eleições proporcionais (para deputados e vereadores). Hoje vigora o sistema de lista aberta e voto uninominal. Vota-se no candidato, em qualquer candidato, e não na lista de candidatos que o partido escolheu previamente e apresenta aos eleitores. Uma reforma superficial no sistema partidário seria a instituição da finada cláusula de barreira. Uma reforma profunda seria a obrigação da fidelidade partidária, isto é, o controle das migrações de uma agremiação para outra.

Para cada um dos itens de cada reforma podem-se imaginar as intenções positivas e os resultados negativos, ou simplesmente inócuos. O financiamento público das campanhas eleitorais, isto é, o subsídio da política através do dinheiro dos nossos impostos, deveria, em princípio, igualar as condições da competição pelo poder entre pequenos partidos e grandes partidos (ou entre candidatos ricos e candidatos pobres), acabando com as distorções atuais e o elevadíssimo custo da propaganda política. Entretanto, não se prevê que o financiamento público seja a única fonte do financiamento eleitoral. Além disso, os recursos seriam distribuídos conforme o tamanho das bancadas dos partidos, o que reproduziria a desigualdade existente. E há ainda uma questão de fundo: por que nós deveríamos financiar a carreira dos políticos?

No caso da alteração do sistema eleitoral, a definição da preferência pelos deputados (federais e estaduais) seria substancialmente modificada. O eleitor não mais escolheria um candidato numa lista imensa de nomes, mas votaria na lista elaborada pelo partido político que optasse. A nova fórmula, pretenderia, ao menos teoricamente, fortalecer os partidos como instituições e dar-lhes uma feição ideológica mais clara. No limite, votando na lista do partido estaríamos votando no programa do partido, e não em pessoas. Qual o defeito? Uma redução drástica da liberdade de escolha do eleitor. À medida que os chefes dos partidos controlassem as convenções partidárias, seria razoável imaginar que os oligarcas, no caso dos partidos de direita, os notáveis, no caso dos partidos de centro, ou os burocratas, no caso dos partidos de esquerda determinariam quem ficaria de fora da lista do partido, quem entraria na lista, e em que posição. Conclusão: não haveria institucionalização dos partidos, mas fortalecimento do poder das direções.

Com uma ponta de ironia, o professor Leôncio Martins Rodrigues declarou, logo após as últimas eleições, que “político, quando não tem o que fazer, defende a reforma política”. Essa manobra desvia a atenção pública, em geral para si próprio, e oculta o fato de que as crises políticas ou as disfunções institucionais não resultam das leis. Primeiro porque os problemas de representatividade (isto é, a ausência completa de mecanismos de prestação de contas pelos políticos) não se resolvem com as modificações propostas: voto em lista, redução do tamanho dos distritos eleitorais, vinculação partidária etc. Depois porque não está provado que o país seja ingovernável com a legislação atual. Muito pelo contrário. O que podemos discutir é a qualidade do governo e suas prioridades. Por último porque um sistema político para ajustar-se precisa de tempo. É graças ao funcionamento contínuo das regras de escolha eleitoral que os cidadãos aprendem qual é o valor do seu voto, qual o peso do seu voto e quais são as conseqüências do seu voto.

Adriano Codato (adriano@ufpr.br) é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Acertando o fiel da balança: instituições e cultura política.

Bruno Bolognesi (GAC-NUSP, UFPR)*
Lucas Fernando de Castro (GAC-NUSP, UFPR)**

Tendo em vista as diferentes proposições teóricas e práticas que o institucionalismo e o culturalismo colocam na literatura brasileira, observamos um não consenso entre estas partes. Enquanto o institucionalismo prega a sobrevivência e a governabilidade reduzida ás instituições políticas sem levar em conta variável relevantes como a cultura política, o culturalismo anseia por uma participação direta e através de instituições também não políticas.

Os estudos institucionalistas (Brigagão, 1973; Santos, 2003; Limongi e Figueiredo, 1994; 1999) abordam as questões relativas puramente ao funcionamento e a interação entre os poderes Executivo e Legislativo, nos âmbitos nacionais e regionais. Além disso, estudos sobre instituições políticas levam a crer que as instituições funcionam de forma previsível e seguindo um padrão, mesmo sem um sustentáculo “humano”. Isso nos induz acreditar que a democracia e a governabilidade no Brasil estão atreladas ao bom funcionamento institucional.

A cultura política de um forma geral é mais aberta a inserções institucionalistas em seu cerne. Mesmo reconhecendo a importância nuclear da variável cultural, é visto que as instituições (e não somente as instituições políticas stricto senso) são relevantes no processo político tomado como um todo (Moisés, 1995; Nazzari, 2006; Putnam, 2006). A cultura política nos dá base para submeter esta pequena análise frente uma discussão dispersa na academia: a formação de uma cultura política participativa, delegativa ou qualquer outra é fundamental para o funcionamento da democracia e a governabilidade no Brasil?

Nossa resposta é simples: sim. Porém não podemos desconsiderar que o bom funcionamento das instituições garante de forma mínima a democracia. A questão que não é respondida pelas instituições é sobre qual democracia estamos falando? A democracia mínima, puramente procedimental, esteve garantida desde 1946 no Brasil (lembrando que mesmo durante o regime de exceção eleições ocorreram no país) até os dias de hoje. Apesar do fato ser recente, não podemos deixar passar desapercebido que mudanças culturais exigem mudanças institucionais.

Metodologicamente é complicado avaliarmos o quanto a mudança cultural ocorreu no Brasil, mas é fato que as instituições não correspondem mais ao meio cultural que o país apresenta na atualidade.

Se faz necessário, portanto, um tipo de análise que consiga dar conta das duas variáveis e da interação entre as mesmas. Os estudos de recrutamento político têm levantado essa lebre, através da análise do perfil de políticos e candidatos, buscando descobrir a interação entre as variáveis sócio-culturais e as variáveis institucionais que levam a formação de uma dada elite política. Porém a escassez de bibliografia nacional nos indica que estamos longe de atingir um patamar onde as instituições tenham seu funcionamento voltado a atender as demandas populacionais e a variável cultural possa explicar o mau ou bom funcionamento da democracia no país.

Nossa proposta parece uma tanto tópica e em busca de uma “terceira via”, mas não podemos deixar de creditar a importância que as duas correntes de pesquisa trazem para a compreensão da política nacional.


* Bruno Bolognesi é bacharel em Ciências Sociais pela UFPR, membro do Grupo de Análise de Conjuntura Política da UFPR e mestrando em Sociologia Política na UFPR.

** Lucas Fernando de Castro e bacharel em Direito pela FIC, membro do Grupo de Análise de Conjuntura política da UFPR e graduando em Ciências Sociais pela UFPR.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

MUDANÇAS NA CLASSE POLÍTICA BRASILEIRA; livro de Leôncio Martins Rodrigues

Livro de Leôncio Martins Rodrigues analisa perfil da Câmara

Publicidade
RACHEL MENEGUELLO
especial para a Folha de S.Paulo

A classe política brasileira sofreu transformações importantes nos últimos anos. Por si só, a eleição de Lula para presidente da República em 2002, um ex-operário e ex-líder sindical, um cidadão com escolaridade mínima, representou a ruptura com o padrão histórico de circulação de elites e, sobretudo, marcou de forma simbólica a aproximação da população à política institucional.

No curso de 20 anos de democratização, uma das mais importantes mudanças na cultura política do eleitorado brasileiro foi a aceitação da esfera política e dos cargos públicos como espaços inclusivos dos setores populares, superando preconceitos, como a associação entre níveis mais altos de formação e escolaridade e a competência para fazer política. O ingresso do PT no Executivo nacional redimensionou o padrão de ocupação do Estado e das burocracias públicas, mas essa mudança teria também ocorrido com o perfil da representação política? O Legislativo federal eleito em 2002 também teria sofrido mudanças e passou a retratar com maior proximidade a composição social da sociedade brasileira?

O livro de Leôncio Martins Rodrigues "Mudanças na Classe Política Brasileira" vem em hora oportuna responder a essas questões. Com uma valiosa pesquisa sobre as fontes socioocupacionais de recrutamento para a vida pública e parlamentar entre 1998 e 2002, o trabalho aponta que as eleições de 2002 acentuaram a "popularização" da classe política brasileira, e não só mudaram a composição social da elite governante mas também ampliaram o acesso a representantes oriundos sobretudo das classes médias assalariadas à Câmara dos Deputados.

Com base nos perfis dos parlamentares e suas declarações patrimoniais, além de jornais, revistas e referências histórico-biográficas, Rodrigues elaborou um perfil dos grupos socioocupacionais da 51ª (1998) e da 52ª (2002) legislaturas, analisou as mudanças partidárias na Câmara, e as suas conclusões são instigantes para entendermos a mudança social recente na política nacional.

Essa mudança, no entanto, tem tamanho reduzido. Vamos a algumas conclusões centrais. A rigor, em termos gerais, as principais fontes de recrutamento da classe política na Câmara continuam sendo os conjuntos profissionais e ocupacionais tradicionais do recrutamento político: empresários, profissionais liberais, a alta burocracia pública e os professores, estes vindos sobretudo do magistério superior. Esses são os grupos que sempre abasteceram o pessoal político brasileiro, e as pequenas variações entre os eleitos das duas legislaturas nos subgrupos de ocupações e profissões mostram que, apesar de algumas perdas importantes no espaço ocupado por setores das classes altas, sobretudo aqueles associados ao empresariado rural, as alterações não foram tão significativas. Como Rodrigues coloca, ocorreram mudanças, "mas nenhuma revolução social".

Os dados das denominadas "fontes secundárias de recrutamento", sobretudo os pastores e os comunicadores, trazem um interessante panorama das mudanças da política representativa. Mesmo com um impacto numérico pequeno sobre a composição total da Câmara nas duas legislaturas, a entrada desses grupos no Legislativo reflete, de um lado, as conseqüências políticas do forte movimento de expansão das igrejas evangélicas sobre amplas camadas sociais. De outro lado, reflete os efeitos da simbiose entre a política e a mídia, não só como uma combinação profissional dos pastores mas sobretudo como um dos efeitos da era da comunicação de massa sobre as grandes democracias.

O exame da composição das ocupações é cuidadoso, abrange profissionais e técnicos dos distintos setores da economia, além dos políticos, propriamente ditos. Mas Rodrigues confere especial atenção ao papel dos sindicalistas e ao expressivo crescimento da "bancada sindical", indicando que boa parte das mudanças ocorridas deve-se ao avanço da esquerda e em específico, do Partido dos Trabalhadores na Câmara. Fica claro que a movimentação partidária de 2002 acelerou o encolhimento dos partidos de direita na Casa.

Rodrigues mostra que os canais de participação e inclusão no sistema de poder estão mais abertos aos setores populares e esse fator, por si só, mostra que a consolidação do sistema democrático no país está em curso. Se a leitura já era importante para conhecer as mudanças recentes, passa a ser obrigatória para avaliar o impacto das eleições legislativas de hoje.

RACHEL MENEGUELLO é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp e autora de "Partidos e governos no Brasil contemporâneo" e "PT, a formação de um partido"

MUDANÇAS NA CLASSE POLÍTICA BRASILEIRA
Autor: Leôncio Martins Rodrigues
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 29,90 (184 págs.)

O PERFIL DA NOVA CÂMARA DOS DEPUTADOS

LEVANTAMENTO DO DIAP

por Antônio Augusto de Queiroz

O DIAP, após exaustivo levantamento, mapeou o perfil socioeconômico dos deputados eleitos em 2006. Pelo mapeamento, conclui-se que a futura Câmara dos Deputados será composta predominantemente por deputados com graduação superior, com idade entre 30 a 60 anos, com experiência política anterior em cargo público, com formação em profissões liberais e fonte de renda não-assalariada. Diferentemente da conformação partidária, que pouco mudou, o perfil socioeconômico poderá alterar o comportamento político e ideológico da nova Câmara.


Em termos de escolaridade, a futura Câmara será das mais instruídas. Pelos menos 413 (80,5%) dos 513 deputados têm curso superior completo. Em relação aos demais (100), pelo menos 37 (7,2%) têm formação superior incompleta; 51 (10%) cursaram o ensino médio e 12 (2,3%) o ensino fundamental. A julgar pelo grau de instrução, a Câmara não fica nada a dever aos parlamentos de países mais desenvolvidos culturalmente.


No quesito idade, a Câmara também pode ser vista como experiente, considerando que 493 deputados têm idade superior a 31 anos. De acordo com a faixa etária, o DIAP identificou 20 deputados com idade entre 21 e 30 anos; 229 com idade entre 31 e 50 anos; 172 com idade entre 51 e 60 anos; e 92 com idade superior a 61 anos.


Apesar da elevada renovação, da ordem de 48%, na verdade houve uma circulação no poder. Dos 244 novos deputados, assim classificados aqueles que não foram reeleitos, pelos menos 200 deles já exerceram algum mandato ou cargo público em algumas das três esferas de governo (federal, estadual ou municipal) ou em algum dos poderes Legislativo e Executivo.


Os efetivamente novos, entendidos como aqueles que nunca exerceram qualquer função pública, estão restritos a três categorias de eleitos: os comunicadores (apresentadores de TV, radialistas, artistas e cantadores), os bispos e pastores evangélicos e finalmente os parentes de políticos tradicionais.


Em termos de profissão, a categoria que lidera a composição da futura Câmara é formada por profissionais liberais. São 265 ao todo, sendo 87 advogados, 54 médicos, 47 engenheiros, 20 economistas, 15 administradores, 10 jornalistas, 6 contadores, 4 sociólogos, 3 arquitetos, 3 farmacêuticos, 3 médicos-veterinários, 2 cirurgiões-dentistas, 2 assistentes sociais, 2 historiadores, 1 fisioterapeuta, 1 psicólogo, 1 enfermeiro, 1 biomédico, 1 geógrafo, 1 geólogo e 1 representante comercial.


A segunda maior representação na Câmara é formada pelos empresários, no total de 120, distribuídos do seguinte modo: 96 urbanos, sendo 82 empresários, 11 comerciantes e três industriais, mais 24 produtores rurais, sendo 9 empresários, 8 pecuaristas, 6 agropecuaristas e 1 cacauicultor.


O terceiro grupo profissional é constituído dos assalariados urbanos, incluindo os trabalhadores da iniciativa privada e do serviço público, que somam 88 deputados. Por ocupação, eles estão assim distribuídos: 32 professores, 23 servidores públicos, 9 radialistas, 5 bancários, 3 delegados, 2 policiais, 2 técnicos em edificações, 2 promotores de justiça, 1 comerciário, 1 procurador de Justiça, 1 procurador de estado, 1 militar, 1 gerente, 1 técnico em contabilidade, 1 inspetor de polícia, 1 analista financeiro, 1 técnico agropecuário e 1 defensor público.


O quarto grupo é constituído por operários urbanos e rurais, no total de 19, assim distribuídos: 7 metalúrgicos, 7 agricultores, 1 técnico químico, l técnico em telecomunicações, 1 técnico em artes gráficas, 1 ferroviário e 1 industriário.


O quinto e último grupo é de natureza diversa, formado 1 deputada de profissão indeterminada, 5 estudantes, 3 bispos evangélicos, 2 cantores, 2 padres, 2 sacerdotes, 2 líderes comunitários, 1 especialista em política de segurança pública, 1 atleta, 1 teólogo e 1 músico.


Regionalmente, três aspectos chamam a atenção na nova composição da Câmara. O primeiro é o fato de o PSDB, partido de perfil social-democrata, ter voltado a ser um partido paulista, onde elegeu um quarto de sua bancada. O segundo é a constatação de que o PFL também manteve concentração estadual, sendo a Bahia seu principal reduto. E terceiro é o fato de os estados com forte vocação agrícola terem elegido muitos parlamentares vinculados ao setor, fortalecendo a bancada ruralista.


A conformação ideológica da nova Câmara, a julgar pela formação e fonte de renda, tende a ser menos social-democrata e mais liberal, o que aumenta a pressão por reformas liberalizantes. A redução da bancada de trabalhadores e o aumento das bancadas de empresários e profissionais liberais, por exemplo, abrem espaço para novas tentativas de propostas em bases neoliberais, como a flexibilização da legislação trabalhista, entre outras.



Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e Diretor de Documentação do DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.

domingo, 7 de janeiro de 2007

A literatura de Ciência Política sobre o Legislativo no Brasil: um balanço

André Ziegmann (GAC-NUSP, UFPR)*

Com a redemocratização em 1985-1988 e o funcionamento da Assembléia Constituinte, o Congresso Nacional e os órgãos legislativos passaram a receber maior atenção da parte dos cientistas sociais, da mídia e da população de um modo geral, fato que provocou o aparecimento de uma série de estudos buscando analisar de maneira mais sistemática o que ocorria no seio desta “terra incógnita”, como eram designados os órgãos legislativos federais quando do surgimento das primeiras pesquisas sobre o assunto (Figueiredo & Limongi, 1999). A esses estudos iniciais sobre o Congresso Nacional seguiram-se uma série de trabalhos sobre os órgãos legislativos nas unidades subnacionais, tanto sobre as Assembléias Legislativas estaduais, quanto sobre as Câmaras de Vereadores, em nível municipal.[1]

Em geral, os estudos produzidos sobre estes órgãos legislativos enfatizam as características do processo decisório e, mais especificamente, observam como se dá a relação entre o poder Executivo, o Legislativo e os partidos nos corpos parlamentares das diferentes unidades de governo nacionais. Os enfoques abrangem desde estudos que buscam empreender uma análise agregada das proposições legislativas ou do comportamento político dos parlamentares, até trabalhos de natureza mais qualitativa, que buscam realizar estudos de caso de processos de tomada de decisões que envolvam as relações Executivo-Legislativo e/ou a ação de determinados grupos sociais sobre o processo legislativo.

Pelo menos desde os primeiros estudos sobre as relações Executivo/Legislativo no Brasil (Brigagão, 1973; Santos, 2003)[2] a análise agregada da “produção legal” (leis, projetos de leis e demais proposições legislativas) dos órgãos parlamentares tem sido utilizada como um importante indicador para caracterizar as relações entre os poderes e o processo de governo, especialmente durante a primeira experiência de democracia presidencialista pluripartidária brasileira, no período anterior a 1964. No tocante ao período posterior a 1988, a partir da publicação dos consagrados trabalhos de Limongi e Figueiredo (1994; 1999) iniciaram-se os estudos mais aprofundados sobre as relações Executivo/Legislativo na nova experiência democrática brasileira, sendo a partir de então a análise das proposições legislativas utilizada de maneira sistemática como um importante indicador, ao lado de outros, das características do comportamento parlamentar e do processo decisório governamental, tanto em nível nacional como subnacional. Na esteira da publicação dos trabalhos pioneiros de Limongi e Figueiredo surgiram uma série de estudos sobre as relações Executivo/Legislativo nas unidades subnacionais, empregando recursos analíticos e metodológicos homólogos aos utilizados por esses autores em seu enfoque sobre o processo legislativo em nível nacional (Andrade, 1998; Abrúcio, 1998; Santos, 2001, dentre outros).

Resumidamente, podemos dizer que duas teses gerais emanam dessa literatura sobre as relações Executivo/Legislativo no Brasil, especialmente em relação ao período pós-1988:

(i) de um lado, estão aqueles autores que postulam uma dominância do Executivo sobre o Legislativo no processo decisório e um acentuado desequilíbrio entre ambos no sistema político brasileiro, seja através da concentração de poderes de agenda no chefe do Executivo eleito, que dessa forma concentraria prerrogativas que forçariam o Legislativo e os parlamentares a cooperar e a se submeter a sua agenda (Santos, 1997; Limongi, 1999), seja através da concentração de recursos políticos que viabilizariam o controle do “distrito eleitoral potencial” do parlamentar, que ficaria assim numa situação de subordinação e dependência em relação ao chefe do Executivo, situação esta responsável em última instância pela vigência de um “ultrapresidencialismo estadual” na maioria dos estados (Abrúcio, 1998);

(ii) por outro lado, estão aqueles autores que constatam a existência de uma relação mais equilibrada entre os poderes, não só em nível estadual (Santos, 2001), como também nas Câmaras de Vereadores de alguns municípios brasileiros (Andrade, 1998). Na visão desses autores, o “presidencialismo imperial”, com dominância do Executivo, seria um fenômeno histórico e localizado no tempo, recuperando o Legislativo seu papel no processo decisório governamental, quando algumas circunstâncias o permitissem[3]. Importa frisar aqui que, para fundamentar tais teses, os autores procedem a uma análise sistemática do processo decisório vigente em cada uma dessas unidades de governo.

Por outro lado, os órgãos legislativos brasileiros têm sido analisados sob a perspectiva do recrutamento político. Existem estudos tanto em nível nacional (Rodrigues, 2002; Santos, 2002), quanto em nível subnacional (Morais, 2001), que buscam examinar as características do recrutamento das elites parlamentares efetuando estudos sobre o recrutamento parlamentar, sobre o perfil sóciopolítico dos deputados. Estes estudos chegaram à importante conclusão de que os partidos políticos diferem significativamente entre si em várias dimensões de seu recrutamento sociopolítico, e essas diferenças de certa forma interferem nas várias dimensões de sua ação e comportamento políticos. Ou seja: ao contrário da sabedoria convencional e quase do senso comum do cidadão brasileiro, “os partidos contam” na estruturação da ação política de vários tipos de atores relevantes.

Entretanto, ainda são raros os trabalhos que buscam articular as variáveis de recrutamento político dos diferentes partidos, com as variáveis sobre produção legal e comportamento parlamentar, para verificar como essas duas dimensões do comportamento político dos parlamentares se inter-relacionam. Destacam-se, nesse sentido, poucos exemplos em certa medida isolados na literatura, tais como o trabalho pioneiro de Lima Júnior & Camargos sobre a Assembléia Legislativa de Minas Gerais (Lima Júnior & Camargos, 1997) e, mais recentemente, os trabalhos de Amorin Neto & Santos (2002; 2003) sobre o Legislativo nacional. Nesses textos, os autores procuram articular as variáreis de recrutamento político com variáveis de produção legal, buscando examinar se os diferentes padrões de recrutamento dos parlamentares produzem efeitos ou correlacionam-se com os padrões de produção legal observados.

André Ziegmann é graduado em Ciências Sociais na UFPR, membro do Grupo de Análise de Conjuntura do NUSP/UFPR e mestrando em Ciência Política na UNICAMP.



[1] Exemplos destes estudos são as coletâneas organizadas por Andrade (1998), e Santos (2001). Entretanto, ao contrário do que se poderia esperar, a estes trabalhos não se seguiram outros, com o mesmo nível de sistematicidade e abrangência, sobre os legislativos nas unidades subnacionais.

[2] A edição original do texto clássico de Wanderley Guilherme dos Santos é de 1986, e a base de dados utilizada pelo autor é a mesma elaborada por Brigagão em sua tese de mestrado. A partir da análise agregada da produção legal no período, ao lado de outros indicadores sobre polarização ideológica, fragmentação político-partidária e instabilidade das elites, Santos elabora o conceito de “paralisia decisória” para caracterizar uma situação de ruptura institucional que pode eventualmente dar lugar a uma interrupção no funcionamento dos regimes políticos democráticos e sua substituição por regimes autoritários a partir da intervenção violenta e saneadora de um “ator externo”.

[3] Estas circunstâncias são de várias naturezas: reformas regimentais que estimulam a participação popular e reorganizam internamente a distribuição entre as prerrogativas dos centros decisórios do órgão legislativo, no caso da ALEMG (Anastasia, 2001); um maior grau de competição eleitoral e maior sensibilidade dos parlamentares a demandas sociais, no caso da ALERJ (Santos, 2001); a adoção de uma estratégia de “negociação pontual” por parte de um chefe de Executivo minoritário eleito por um partido de centro-esquerda, no caso da Câmara Municipal de São Paulo durante a gestão da prefeita Erundina (Andrade, 1998). O que importa observar aqui é que os autores utilizam esses casos para contestar as teses dominantes na literatura acerca da existência de uma tendência inexorável ao predomínio do Executivo no sistema político brasileiro, ou a um papel irrelevante ou secundário desempenhado pelos órgãos Legislativos.

Reformas e jogo de poder

Política
Folha de S. Paulo
São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2007

FÁBIO WANDERLEY REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Embora o fato de estarmos diante da inauguração de um segundo mandato de Lula condicione de maneira relevante, naturalmente, a discussão das reformas neste momento, esse fato tem também o inconveniente de convidar a uma perspectiva de curto prazo. Pois é no longo prazo, e nas condições estruturais e culturais que aí se dão, que amadurecem os problemas a que se dirigem as reformas, bem como as soluções que elas eventualmente venham a trazer.
De todo modo, não parece haver razões para a expectativa de especial êxito reformista no novo governo. Que aspirações se acham envolvidas, de fato, na tematização das reformas? Quem quer quais reformas? Quanto à reforma política, por exemplo, e à reforma partidária como parte importante dela, a teoria dos partidos fala da função "representativa" de vocalização dos interesses e identidades e da função que envolve sua agregação eficiente e viabilização real: favoreceremos esta última, criando obstáculos à proliferação de partidos amorfos e no limite falsos, ou vamos privilegiar a vocalização supostamente "autêntica" de interesses dispersos, que até o Supremo Tribunal Federal, unânime mas confundido quanto ao equilíbrio necessário, vê em termos de direitos ameaçados das minorias?
Quanto à reforma trabalhista, criaremos o mercado de trabalho "flexível", que muitos entendem como eufemismo a ocultar o conflito distributivo e sua intensificação (ou a "corrida para o fundo", em que a condição para criar chances de emprego mais numerosas é fazer, na verdade, piorar as condições do mercado de trabalho), ou garantiremos os direitos dos trabalhadores?
Diante da derrocada mundial do socialismo e da Europa que hesita entre a solidariedade da social-democracia e a eficiência competitiva ligada às reformas neoliberais, que modelo adotar? Quando a esquerda petista e assemelhada denuncia a continuação das políticas de Fernando Henrique Cardoso no primeiro governo Lula, cabe talvez ligar as posições adotadas a sectarismo e irrealismo; quando a mesma denúncia, contudo, é repetida com insistência por colunistas da grande imprensa, do que é que se trata, que reformas desejam (ou repudiam)?
Projeto consistente
Naturalmente, as respostas teriam de vir do próprio processo político. Em termos ideais, o que caberia esperar é que algum "projeto político" viesse a encontrar tradução apropriada num movimento ou partido capaz não só de contar com apoio eleitoral estável, mas também de ganhar consistência institucional e sustentar, por sua vez, a adesão governamental persistente a um conjunto de políticas.


Com a crise do PT e, de cambulhada, a de seu adversário nas refregas recentes e parceiro no processo institucional que se esboçava, o PSDB, o que resta é o lulismo, que se mostra forte como nunca


Mas, com a crise do PT (que juntava a especial atração eleitoral de Lula ao esforço aparentemente sério de construção institucional) e, de cambulhada, a de seu adversário nas refregas recentes e parceiro no processo institucional que se esboçava, o PSDB, o que resta é o lulismo, que se mostra forte como nunca.
Cabe reconhecer que, com o que tem de inédita a figura política de Lula, o lulismo pode ser visto como ao menos potencialmente positivo do ponto de vista institucional. Afinal, jamais a desigualdade social do país se projetou com tal clareza sobre a disputa da Presidência da República e é notável que -com as limitações que se queira apontar, de uma perspectiva "técnica" mais exigente, na política social do primeiro governo Lula- mesmo Geraldo Alckmin, favorecido pelo voto hostil a essa política, não tenha podido deixar de dar-lhe acolhida.
Nesse quadro, a reformulação político-partidária que parece necessária terá provavelmente melhores chances de superar o retrocesso institucional representado pelo comprometimento do projeto petista (e peessedebista...) se de algum modo vier a incorporar a identificação do eleitorado popular com Lula e fundi-lo, quem sabe, com os bons quadros político-administrativos que o PSDB, em particular, soube reunir.
Mas as dificuldades são muitas, a começar pela maturação num amálgama de fato consistente e duradouro das muitas manobras estratégicas conjunturais necessárias, já de si difíceis. É visível, por um lado, que o que temos como "projeto" de alguma clareza são as reformas de cunho liberalizante visando à integração mais apta do país na nova dinâmica econômica mundial, que têm o apoio de importantes frações da elite.
Se, porém, a junção dessas reformas com as conquistas igualitárias da social-democracia é motivo de perplexidade e tensão pelo mundo afora, o problema de sua apropriada tradução político-eleitoral não pode senão tornar-se mais complicado na peculiar precariedade das condições sociais brasileiras. E não admira que seu apelo eleitoral esteja condenado a sair-se mal no confronto com o discurso que ressalte com alguma força o empenho redistributivo: veja-se Bolsa Família versus privatizações na campanha recente.
Contudo, é talvez possível distinguir reformas de caráter mais "instrumental" e reformas "substantivas" que interferem mais diretamente no enfrentamento de interesses poderosos. As primeiras incluiriam medidas de reforma política destinadas não a implantar a fantasia da política "nobremente" ideológica, mas a dificultar a corrupção, ou mecanismos visando a agilizar a "máquina estatal" e torná-la capaz de buscar com maior eficiência os fins de quem quer que democraticamente a controle. É claro, antagonismos estruturais e viscosidades culturais estão presentes também aqui. Mas talvez tenhamos, nessa dimensão instrumental, maior espaço para a experimentação que possa consolidar-se e amadurecer, eventualmente favorecendo avanços em terrenos mais difíceis. Quem viver verá.


FÁBIO WANDERLEY REIS é professor emérito de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor, entre outros, de "Tempo Presente" (ed. UFMG).

sábado, 6 de janeiro de 2007

Governo de coalizão ou monopólio político?

(ARTIGO republicado no site tucano e-agora.com.br)

Carlos Pereira e Timothy Power, Valor Econômico (30/06/05)

Ao tomar posse em 2003, a primeira medida do governo Lula foi a expansão do número de ministérios em 66%, tendo passado de 23 postos no governo FHC para 35 no atual governo. Diferentemente do governo anterior, cujo partido do presidente (PSDB) ocupava apenas 26% dos cargos ministeriais, as novas posições criadas pelo presidente Lula foram fundamentalmente ocupadas por integrantes do Partido dos Trabalhadores que, mesmo com uma bancada de apenas 18% das cadeiras (91 deputados), ocupou 60% dos ministérios (21 postos). Por outro lado o PMDB, com 15% das cadeiras (78 deputados), se juntou posteriormente à coalizão deste governo e conseguiu ocupar somente 6%; ou seja, 2 ministérios (ver tabela ao lado, com todos partidos da coalizão).

De acordo com Octávio Amorim (FGV), a proporcionalidade entre o número de cadeiras legislativas e o número de ministérios indicados por cada partido pertencente à coalizão caiu de 0.76 no governo FHC (sem contar o último ano de seu governo) para 0.50, no governo Lula. Trata-se de um gabinete altamente partidarizado e nominalmente majoritário, único dentre os 20 formados desde a redemocratização em 1985. Este índice de proporcionalidade se assemelha quase à condição de monopólio, situação na qual os preços são definidos pelo monopolista; neste caso o PT. O governo Lula preferiu alocar os espaços do seu gabinete com as várias tendências internas do PT. Naturalmente que os outros partidos da coalizão, que esperariam partilhar dos recursos de poder fruto da sua condição de aliado, sentiram-se progressivamente excluídos do jogo. Para tentar compensar esta progressiva frustração decorrente da desproporcionalidade dentro da coalizão de governo, o monopolista, que não apresentou disposição de compartilhar espaços, abrindo mão de fatias de poder e de recursos, teve que recompensar os aliados de outras formas mais heterodoxas. Este foi o custo da desproporcionalidade.

O governo FHC não caiu neste jogo porque ao consorcializar, de forma mais proporcional, os espaços do seu governo com os membros da sua coalizão, sinalizou para os aliados que tinha restrições sobre o que e quanto poderia negociar. Ou seja, emendas orçamentárias e cargos no Executivo. A forma monopolista e nominalmente majoritária de governar gerou uma armadilha ao proporcionar incentivos crescentes aos aliados, superestimando assim o preço do apoio e lealdade, bem como aumentando chances de defecções dos insatisfeitos. Quanto mais proporcional for um governo de coalizão, mais satisfeitos ficam os seus membros e, conseqüentemente, menores são os custos de coordenação e de obtenção de lealdade. Por outro lado, quanto menos proporcional o governo, menos satisfação existe, e mais custos de lealdade o governo passa a enfrentar.

Forma monopolista de governo, desconfiada com os aliados e sem compartilhamento de gestão, está em crise.

Se estivermos corretos, um quadro de superdominância no Executivo e subdominância no Legislativo encontrado no governo Lula, cedo ou tarde, leva a uma falha de mercado político. Neste caso, defecções, como a de Roberto Jefferson funcionam como o soar de um alarme de incêndio e simbolizam uma tentativa de reequilíbrio da coalizão. Ou seja, de "correção de mercado" na taxa de proporcionalidade monopolizada. Da mesma forma que o valor de uma moeda pode ser distorcido com políticas equivocadas de um banco central, o preço do mercado de apoio político ao governo no Congresso foi distorcido com essa taxa de proporcionalidade extremamente baixa do governo do PT. Cedo ou tarde o mercado político corrigirá o preço do apoio, como ocorre em qualquer outro mercado. A taxa de proporcionalidade de um presidencialismo de coalizão funciona como uma espécie de média do índice da bolsa de valores que é observado atentamente pelos membros da coalizão. O colapso da coalizão do presidente Lula pode ser assim interpretado como se os fundamentos desta coalizão estivessem ruins, dada a supervalorização de um de seus membros. Fazendo uma analogia com uma empresa, existem muitos "investidores" no governo Lula com os mais variados interesses, mas não lhes é permitido definir os membros da "diretoria". Apenas o PT tem esse poder. Em outras palavras, há uma quantidade excessiva de membros do PT no governo e um pequeno número de insatisfeitos "shareholders", até pouco tempo dispostos a manter o José Dirceu como CEO da coalizão do atual governo.

Desta forma, não é o presidencialismo de coalizão que está em crise, mas a forma monopolista, desconfiada com os aliados e, conseqüentemente, não partilhada de governar implementada pelo PT. Pistas deste perfil monopolista de governar são facilmente encontradas na sua história. A peculiaridade do PT sempre foi a centralização e a diferenciação dos demais partidos, como estratégia de construção de uma identidade política "límpida" para colher frutos eleitorais desta "virtude". Entretanto, quando percebeu que não poderia governar de forma majoritária, se viu obrigado (e a contragosto) a conviver com partidos muitas vezes contrários às suas preferências. Mas, equivocadamente, o fez de maneira não partilhada e monopolista. Tendo gerado uma falha no mercado político com os seus aliados, não sustentou as demandas crescentes dos insatisfeitos e cruzou o limite da legalidade. O PT foi assim vítima de seu próprio veneno. Diante da crise atual, alguns "acionistas" resolveram vender suas ações do governo Lula. O PMDB está comprando-as a preço baixo, na expectativa de que seu valor aumente em 2006. Investir em ministérios é sempre um bom negócio na política brasileira, mas um duopólio PT-PMDB apresentaria alguns dos mesmos riscos que o monopólio petista praticado desde 2003. No sistema político brasileiro, governabilidade é sinônimo de proporcionalidade!


Carlos Pereira é Professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV), da Michigan State University (MSU). E-mail: carlospereira@fgvsp.br

Timothy Power é professor da Florida International University (FIU). E-mail:powertj@fiu.edu

Reforma política, ainda

Artigo antigo (2004), porém atual.


--------------------------------------------------------------------------------

(Folha de S. Paulo - Tendências e Debates - 14/3/2004)

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES

Sob pressão dos partidos aliados do governo, os dois projetos de reforma política, que deveriam ser discutidos em caráter de urgência na Câmara, foram deixados para o próximo ano. Trata-se de algo que se sucede periodicamente. De tempos em tempos, a chamada "mãe de todas as reformas" reaparece com propostas salvacionistas. Provavelmente a encenação se repetirá no futuro.
Com a esperança de poder contribuir na discussão de uma idéia que provavelmente voltará a ocupar o tempo dos parlamentares, quero dizer algumas palavras sobre a sugestão da introdução do sistema de listas partidárias fechadas e preordenadas nas eleições proporcionais. Trata-se, talvez, da mais importante proposta de alteração do nosso sistema eleitoral, considerada capaz, entre outras coisas, de fortalecer os partidos, fixar mais adequadamente seu perfil programático-ideológico, reduzir nas campanhas eleitorais a competição entre candidatos de uma mesma legenda e, no final, melhorar a qualidade da classe política brasileira.
Na realidade, a introdução do sistema das listas preordenadas serve basicamente para reforçar as chefias partidárias, tal como a proposta, freqüentemente sugerida, de financiamento público das campanhas. O sistema político brasileiro não favorece, efetivamente, estruturas e burocracias partidárias fortes. Mas, em compensação, é um dos que mais liberdade de escolha oferece ao eleitor, ao contrário dos sistemas de listas preordenadas e fechadas.
As leis eleitorais sempre têm conseqüências políticas. É difícil, no entanto, imaginar os cenários político-partidários que, no Brasil, poderiam surgir (ou não surgir) do voto em lista preordenada. Algumas previsões, porém, podem ser feitas. Uma delas é que dificilmente haveria a redução do grande número de partidos relevantes na Câmara dos Deputados (oito, nas últimas eleições).
Ocorre que, entre as causas da fragmentação partidária brasileira, está o fato de cada unidade da Federação ser a arena na qual se realiza a disputa por um número fixo -mas diferente segundo cada colégio estadual- de cadeiras na Câmara. A força dos partidos não se distribui de modo equivalente nesses "distritões" estaduais. Partidos são fortes em um Estado e fracos em outros, o que atua a favor do multipartidarismo na Câmara dos Deputados. Se o voto em lista fechada e preordenada fosse capaz de levar a uma distribuição menos desigual da força de cada legenda nas próprias circunscrições estaduais, aí sim seria possível a redução da fragmentação partidária no Congresso.
Outra crítica ao sistema brasileiro é a referência à existência de "puxadores de voto", que mandam para os órgãos legislativos políticos inexpressivos de votação irrisória, muito menor do que as obtidas por candidatos não eleitos que concorreram por outras legendas. Contudo também nas listas fechadas o fenômeno se repetiria com os eleitores buscando eleger os "grandes nomes" que encabeçariam as listas. Os outros iriam de carona.
É certo que, com o fim do voto nominal, a concorrência entre políticos de um mesmo partido nas campanhas eleitorais deverá se reduzir. Mas a competição intrapartidária entre candidatos a um mesmo cargo eletivo não desapareceria. Seria transferida para o interior dos partidos. Provavelmente levaria a uma briga de foice nas convenções para a ocupação dos primeiros lugares da lista. E, aqui, não adianta a lei estabelecer um "modo democrático" de indicações. Em toda parte, os partidos, como outras instituições, são compostos de facções e de chefes. Seriam eles que controlariam a elaboração das listas.
Na relação partido-eleitor, o sistema de lista fechada atua a favor do fortalecimento das burocracias partidárias, da redução da liberdade de escolha dos eleitores e, provavelmente, da diminuição do poder da facção parlamentar nas suas relações com as máquinas partidárias. Nesse sentido, talvez possa efetivamente contribuir para o fortalecimento dos partidos como instituição. Mas, com lista aberta ou fechada (ou qualquer outro sistema eleitoral), nas democracias a tarefa de governar cabe aos profissionais da política. A grande maioria do eleitorado geralmente os avalia de modo negativo, mas dificilmente existiria democracia sem políticos. A história mostra que os cidadãos das sociedades governadas pela classe política acabam por viver melhor do que as chefiadas por um general, por um chefe religioso ou pelo secretário-geral do partido único.
Mas, para tanto, é necessária uma boa classe política, capaz de atuar um pouco menos em favor de seus interesses, como acontece agora com a proposta do chamado financiamento público das campanhas. Como não poderia deixar de ser, os grandes partidos receberiam proporcionalmente mais recursos. Portanto o financiamento público contribui para a manutenção do status quo partidário. E transfere aos cidadãos os custos da ambição política de entrada e permanência na classe política.
Uma coisa que temos dificuldade de aceitar é o fato de que a melhoria da qualidade dos que se ocupam profissionalmente da política é algo que não se alcança do dia para a noite. É um processo que requer, entre outras coisas, um aprendizado longo do eleitorado na seleção dos que querem participar do exercício do poder. Esse aprendizado exige um tempo que passa por várias eleições. Mas alterações sucessivas das regras da competição política, por melhores que sejam as intenções reformistas, confundem os eleitores e tendem a causar mais males do que bem.

--------------------------------------------------------------------------------
Leôncio Martins Rodrigues, 70, é professor titular aposentado de ciência política da USP e da Unicamp. É autor de "Partidos, Ideologia e Composição Social", entre outras obras.

Histórico de renovação da Câmara

Antônio Augusto de Queiroz*

*Jornalista, analista político e Diretor de Documentação do DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.

A análise de eleições proporcionais no Brasil, combinada com fatos da conjuntura e com as alterações na legislação eleitoral, fornece algumas pistas importantes sobre o provável índice de renovação da Câmara dos Deputados no pleito de 2006, que ficará abaixo da expectativa. Estima-se uma renovação em torno de 45%, muito próxima da havida na eleição de 1998.

O resultado das quatro últimas eleições (1990, 1994, 1998 e 2002) obedece a um padrão, que tende a se repetir nesta eleição:

a) o índice de renovação é inversamente proporcional ao número de candidatos à reeleição; ou seja, quanto maior o índice de candidatos à reeleição, menor o índice de renovação,

b) o índice de reeleição é sempre superior a 50%; e

c) o índice médio de recandidatura tem sido da ordem de 80%, conforme tabela abaixo.

Ano da eleição

Composição da Câmara no ano da eleição

Nº de candidatos à reeleição

Índice de recandidatura

Reeleitos

Índice de reeleição em relação ao nº de postulantes à renovação do mandato

Índice de renovação em relação à composição da Câmara

1990

495*

368

74,34%

189

51,35%

61,81%

1994

503**

397

78,92%

230

57,93%

54,27%

1998

513

443

86,35%

288

65,01%

43,85%

2002

513

416

81,09%

283

68,02%

44,83%

2006

513

433

84,40%

267

61,66%

47,95%

*A composição da Câmara para a Legislatura 1991 a 1995 passou de 495 para 503 deputados em razão da transformação dos territórios do Amapá e Roraima em Estado, que aumentaram suas bancadas de quatro para oito deputados cada.

** Lei Complementar aumentou a bancada de São Paulo de 60 para 70 deputados. A composição da Câmara para a Legislatura 1995 a 1999 passou de 503 para 513 deputados.

Combinando os dados de eleições anteriores, que sinalizam para elevado índice de reeleição, com as mudanças na legislação eleitoral que reduziram a divulgação das campanhas e com a ausência de novas lideranças políticas na disputa, a tendência será de uma renovação menor que a inicialmente imaginada em face da crise política e dos escândalos.

As mudanças na lei eleitoral favoreceram os candidatos à reeleição e os custos de imagem afastaram dos partidos nomes novos, sérios e com potencial eleitoral, da disputa à Câmara. A redução dos gastos de campanha e a proibição de outdoor, camisas e bonés facilitou a vida de quem já era conhecido, como é o caso dos atuais detentores de mandato, enquanto a ausência de novos nomes competitivos reduziram as chances de renovação real, limitando a eleição à recondução dos atuais e à circulação no poder, com o retorno de ex-ocupantes de cargos públicos.

A eleição proporcional, portanto, levará à renovação do mandato da maioria e uma circulação no poder, limitando a renovação real aos artistas e comunicadores, aos parentes de políticos famosos e aos bispos de pastores das igrejas evangélicas.

O que é o presidencialismo de coalizão?

(A versão resumida deste artigo foi publicada na Folha de Londrina em 27 dez. 2006).

Adriano Codato* e Luiz Domingos Costa**

Desde sua formulação pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, a expressão “presidencialismo de coalizão” tornou-se um verdadeiro mantra para definir a estrutura e o mecanismo de funcionamento do regime político-institucional brasileiro. Amplamente utilizada, a expressão sugere a união de dois elementos. O que cada uma das palavras significa e como a soma de ambas descreve e explica o nosso sistema político?
O “presidencialismo” é o sistema de governo no qual o chefe do Executivo é eleito diretamente pelo sufrágio popular e tem um mandato independente do Parlamento. A origem do presidente e do Parlamento (os deputados e senadores) são distintas, posto que a eleição para cada um pode ser desvinculada no tempo (ocorrendo em datas diferentes, o que não é o caso do Brasil) ou, quando a eleição é “casada” (realizada na mesma data, como no Brasil), o eleitor sempre pode optar por eleger um presidente de um partido e um representante parlamentar de outra agremiação. Em resumo: o presidencialismo difere do parlamentarismo justamente pelas origens distintas do poder Executivo e do poder Legislativo. Ao passo que no parlamentarismo o Executivo surge da correlação de forças entre os partidos eleitos para o Parlamento, no presidencialismo o Executivo deriva da eleição direta do presidente pelos cidadãos.
De outro lado, “coalizão” refere-se a acordos entre partidos (normalmente com vistas a ocupar cargos no governo) e alianças entre forças políticas (dificilmente em torno de idéias ou programas) para alcançar determinados objetivos. Em sistemas multipartidários, nos quais há mais do que dois partidos relevantes disputando eleições e ocupando cadeiras no Congresso, dificilmente o partido do presidente possuirá ampla maioria no Parlamento para aprovar seus projetos e implementar suas políticas. Na maioria das vezes a coalizão é feita para sustentar um governo, dando-lhe suporte político no Legislativo (em primeiro lugar) e influenciando na formulação das políticas (secundariamente). Assim, alguns partidos, ou muitos, dependendo da conjuntura política, se juntam para formar um consórcio de apoio ao chefe de governo. Essa prática é muito comum no sistema parlamentarista, no qual uma coalizão interpartidária disputa as eleições para o Legislativo visando obter a maioria das cadeiras e com isso indicar (“eleger”) o primeiro-ministro.
A peculiaridade do sistema político brasileiro deve-se ao fato de conjugar o pacto interpartidos do parlamentarismo e a eleição direta para o chefe do governo, traço típico do presidencialismo. O observador político Fernando Henrique Cardoso acertou na mosca quando disse que, por mais bem votado que tenha sido o presidente eleito, seu capital eleitoral (“votos”) tem de ser, no dia seguinte, convertido em capital político (“apoios”). Do contrário ele reina, mas sem a famosa “base aliada”, não governa...
Como descrição do que ocorre na cena política, a noção de “presidencialismo de coalizão” parece ser exata. Contudo, vale duas observações para complicar o modelo explicativo do sistema político nacional. O Executivo no Brasil possui um imenso “poder de agenda” e alguns de seus ramos uma alta “capacidade decisória”, concentrada em alguns poucos cargos.
Por poder de agenda entenda-se o seguinte: é o Executivo, pela figura do presidente da República, que determina o que será votado e quando será votado (e o que não será votado). O presidente se elege com um programa, os deputados não.
Como o poder de decidir sobre coisas importantes não está espalhado pelas diferentes agências do Executivo (ministérios, secretarias especiais, conselhos, comissões etc.), mas concentrado em ramos estratégicos do governo, algumas áreas escapam da interferência direta da coalizão. É o caso da área financeira, representada pela santíssima trindade nacional: Banco Central, Conselho de Política Monetária, Ministério da Fazenda. Esse pedaço do governo não entra na barganha com os políticos porque se quer garantir a “racionalidade” da política econômica. Mas na verdade, sob o argumento de barrar a fisiologia, cria-se um feudo no sistema estatal incontrolável (pelo próprio presidente, inclusive) e que escapa a qualquer supervisão social.
A conseqüência prática disso é que elegemos políticos que efetivamente não governam. Se as metas de câmbio e a política de juros condicionam todas as demais áreas estratégicas (política de renda, política de emprego, por exemplo), ficamos com o pior de dois mundos: um pedaço do Estado sem poder e loteado entre os políticos da “base”, que bem ou mal elegemos; e um pedaço do Estado com muito poder (capacidade decisória), mas que não elegemos nem controlamos. Daí que muitas vezes o fato da coalizão interpartidária ocupar espaço no gabinete de governo por meio da posse de pastas ministeriais seja menos importante, politicamente, que o comando que alguns grupos sociais podem ter sobre a capacidade decisória do governo.

*Adriano Codato é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira.

**Luiz Domingos Costa é mestrando em Ciência Política na Unicamp e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira, da UFPR.