sábado, 6 de janeiro de 2007

Reforma política, ainda

Artigo antigo (2004), porém atual.


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(Folha de S. Paulo - Tendências e Debates - 14/3/2004)

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES

Sob pressão dos partidos aliados do governo, os dois projetos de reforma política, que deveriam ser discutidos em caráter de urgência na Câmara, foram deixados para o próximo ano. Trata-se de algo que se sucede periodicamente. De tempos em tempos, a chamada "mãe de todas as reformas" reaparece com propostas salvacionistas. Provavelmente a encenação se repetirá no futuro.
Com a esperança de poder contribuir na discussão de uma idéia que provavelmente voltará a ocupar o tempo dos parlamentares, quero dizer algumas palavras sobre a sugestão da introdução do sistema de listas partidárias fechadas e preordenadas nas eleições proporcionais. Trata-se, talvez, da mais importante proposta de alteração do nosso sistema eleitoral, considerada capaz, entre outras coisas, de fortalecer os partidos, fixar mais adequadamente seu perfil programático-ideológico, reduzir nas campanhas eleitorais a competição entre candidatos de uma mesma legenda e, no final, melhorar a qualidade da classe política brasileira.
Na realidade, a introdução do sistema das listas preordenadas serve basicamente para reforçar as chefias partidárias, tal como a proposta, freqüentemente sugerida, de financiamento público das campanhas. O sistema político brasileiro não favorece, efetivamente, estruturas e burocracias partidárias fortes. Mas, em compensação, é um dos que mais liberdade de escolha oferece ao eleitor, ao contrário dos sistemas de listas preordenadas e fechadas.
As leis eleitorais sempre têm conseqüências políticas. É difícil, no entanto, imaginar os cenários político-partidários que, no Brasil, poderiam surgir (ou não surgir) do voto em lista preordenada. Algumas previsões, porém, podem ser feitas. Uma delas é que dificilmente haveria a redução do grande número de partidos relevantes na Câmara dos Deputados (oito, nas últimas eleições).
Ocorre que, entre as causas da fragmentação partidária brasileira, está o fato de cada unidade da Federação ser a arena na qual se realiza a disputa por um número fixo -mas diferente segundo cada colégio estadual- de cadeiras na Câmara. A força dos partidos não se distribui de modo equivalente nesses "distritões" estaduais. Partidos são fortes em um Estado e fracos em outros, o que atua a favor do multipartidarismo na Câmara dos Deputados. Se o voto em lista fechada e preordenada fosse capaz de levar a uma distribuição menos desigual da força de cada legenda nas próprias circunscrições estaduais, aí sim seria possível a redução da fragmentação partidária no Congresso.
Outra crítica ao sistema brasileiro é a referência à existência de "puxadores de voto", que mandam para os órgãos legislativos políticos inexpressivos de votação irrisória, muito menor do que as obtidas por candidatos não eleitos que concorreram por outras legendas. Contudo também nas listas fechadas o fenômeno se repetiria com os eleitores buscando eleger os "grandes nomes" que encabeçariam as listas. Os outros iriam de carona.
É certo que, com o fim do voto nominal, a concorrência entre políticos de um mesmo partido nas campanhas eleitorais deverá se reduzir. Mas a competição intrapartidária entre candidatos a um mesmo cargo eletivo não desapareceria. Seria transferida para o interior dos partidos. Provavelmente levaria a uma briga de foice nas convenções para a ocupação dos primeiros lugares da lista. E, aqui, não adianta a lei estabelecer um "modo democrático" de indicações. Em toda parte, os partidos, como outras instituições, são compostos de facções e de chefes. Seriam eles que controlariam a elaboração das listas.
Na relação partido-eleitor, o sistema de lista fechada atua a favor do fortalecimento das burocracias partidárias, da redução da liberdade de escolha dos eleitores e, provavelmente, da diminuição do poder da facção parlamentar nas suas relações com as máquinas partidárias. Nesse sentido, talvez possa efetivamente contribuir para o fortalecimento dos partidos como instituição. Mas, com lista aberta ou fechada (ou qualquer outro sistema eleitoral), nas democracias a tarefa de governar cabe aos profissionais da política. A grande maioria do eleitorado geralmente os avalia de modo negativo, mas dificilmente existiria democracia sem políticos. A história mostra que os cidadãos das sociedades governadas pela classe política acabam por viver melhor do que as chefiadas por um general, por um chefe religioso ou pelo secretário-geral do partido único.
Mas, para tanto, é necessária uma boa classe política, capaz de atuar um pouco menos em favor de seus interesses, como acontece agora com a proposta do chamado financiamento público das campanhas. Como não poderia deixar de ser, os grandes partidos receberiam proporcionalmente mais recursos. Portanto o financiamento público contribui para a manutenção do status quo partidário. E transfere aos cidadãos os custos da ambição política de entrada e permanência na classe política.
Uma coisa que temos dificuldade de aceitar é o fato de que a melhoria da qualidade dos que se ocupam profissionalmente da política é algo que não se alcança do dia para a noite. É um processo que requer, entre outras coisas, um aprendizado longo do eleitorado na seleção dos que querem participar do exercício do poder. Esse aprendizado exige um tempo que passa por várias eleições. Mas alterações sucessivas das regras da competição política, por melhores que sejam as intenções reformistas, confundem os eleitores e tendem a causar mais males do que bem.

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Leôncio Martins Rodrigues, 70, é professor titular aposentado de ciência política da USP e da Unicamp. É autor de "Partidos, Ideologia e Composição Social", entre outras obras.

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