quinta-feira, 10 de maio de 2007

A usurpação do Poder Legislativo

ARNALDO MADEIRA
EDSON APARECIDO
EMANUEL FERNANDES
JOSÉ ANÍBAL


A cooptação, explícita e amoral do Executivo, só funciona porque parcela expressiva de parlamentares é com ela conivente


A RELAÇÃO entre os Poderes Executivo e Legislativo passa por um período de tensão crescente. O governo federal, embalado por uma política escancarada de troca de favores, avança sobre as prerrogativas do Congresso Nacional, na tentativa de minar sua autonomia e estabelecer a prática ditatorial de submissão das atividades legislativas aos desmandos do poder central.
No limite, essa relação conflituosa e desrespeitosa poderá ainda desembocar em crise institucional. A popularidade do presidente cresce na proporção inversa do desgaste do Poder Legislativo, para o qual ele, o presidente, é quem mais contribui.
Completamos hoje cem dias de trabalho da atual legislatura. Nesse período, o país assistiu a um negativo recorde de edição de medidas provisórias. De 1º de janeiro a 27 de abril de 2007, o governo Lula editou um total de 24 MPs. Uma média de 6,21 por mês. Essa prática abusiva é uma constante na gestão petista. No seu primeiro mandato, o presidente Lula editou 240 MPs -cinco por mês.
Somando todo o período em que está na Presidência da República, o governo petista acumula a média de 5,09 MPs/mês. Só para efeito de comparação, a média mensal de MPs nos oito anos da gestão Fernando Henrique Cardoso foi de 3,8.
O mais grave é que não houve nem há temas relevantes que justifiquem a enxurrada de medidas provisórias. A maioria delas trata de temas menores, como concessões de créditos extraordinários. Seu principal efeito prático é o trancamento da pauta, que passou a ser atribuição de assessores e tecnocratas palacianos.
Na sua visão distorcida dos valores republicanos, o governo Lula usurpa as funções legislativas de um Congresso Nacional eleito pelo povo para outorgá-las a assessores encastelados nos cargos públicos por nomeação do governo petista.
Os números das votações já realizadas neste ano evidenciam a gravidade da situação. Das 58 proposições votadas pela Câmara dos Deputados entre os dias 2 de fevereiro e 27 de abril, 28 são MPs e 51 (87,93%) são originárias do Poder Executivo. Apenas sete matérias votadas (12,07%) são de iniciativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal.
Graças ao rolo compressor montado com as benesses que só o Poder Executivo pode distribuir, o governo Lula conseguiu o que, a rigor, parece ser mesmo seu maior intento: paralisar o Poder Legislativo.
Quando não consegue monopolizar a pauta com as proposições do Executivo, a base governista no Congresso Nacional apela para a obstrução. Essa é uma ferramenta típica da minoria, já que, teoricamente, a maioria tem votos suficientes para aprovar ou rejeitar as matérias.
Esse contra-senso também pode ser traduzido em números absurdos: de fevereiro a abril deste ano, sob a presidência do deputado federal Arlindo Chinaglia, a pauta da Câmara foi obstruída por medidas provisórias, na média, em 67,24% das sessões. Essa situação se repete no Senado.
A base do governo na Câmara dos Deputados e no Senado Federal atua única e exclusivamente com o objetivo de acentuar ainda mais a partilha de cargos que é feita no Executivo.
Em troca de nomeações e verbas públicas, o bloco situacionista comete absurdos, como no episódio em que a Comissão de Constituição e Justiça e o plenário da Câmara tomaram a decisão inconstitucional de arquivar o pedido de CPI para investigação do caos aéreo. Coube ao Poder Judiciário restabelecer a ordem jurídica.
Essa prática -nociva à democracia- provoca danos incalculáveis ao país. Privado de suas prerrogativas, o Congresso Nacional se vê impedido de tratar de temas urgentes e relevantes, como a regulamentação de investimentos em infra-estrutura, a agenda previdenciária, a legislação trabalhista e a reforma política, a qual os governistas querem transformar numa mera discussão sobre o instituto da reeleição, por se tratar de tema de interesse do presidente Lula.
Deixados em plano secundário por causa da avalanche de MPs e das obstruções feitas pela base governista, dezenas de projetos de lei, inclusive de iniciativa dos Poderes Executivo e Judiciário, esperam análise e deliberação dos parlamentares, como o conjunto de propostas de combate à criminalidade e os projetos que tratam da exploração do gás e dos marcos regulatórios das agências reguladoras.
Que fique claro, no entanto: a cooptação -explícita e amoral do Executivo- só funciona porque uma parcela expressiva de parlamentares é com ela conivente -ou porque não tem noção do papel institucional que lhe cabe, ou porque se sente devidamente gratificada pela paga recebida em troca de apoio incondicional ao governo. Resistir é preciso. Legislativo manietado é caminho certo para o autoritarismo.
----------------------------------------
ARNALDO MADEIRA, 67, sociólogo, EDSON APARECIDO, 49, historiador, EMANUEL FERNANDES, 51, engenheiro agrônomo, e JOSÉ ANÍBAL, 60, economista, são deputados federais pelo PSDB-SP.

FDSP, Opinião, 10 de maio de 2007.

terça-feira, 8 de maio de 2007

O que esperar da crise?

ARTIGO - Octaciano Nogueira

Estarrecida com as dimensões da crise ética que infesta o Congresso e com a profusão de delitos nas mais diversas esferas do poder, a sociedade tem indagado o que está se passando com o Brasil. A extensão do fenômeno causa estupor, por seu ineditismo. Mas a doença já se manifestou em vários países, em outras épocas. No começo do século 20 o russo Moisei Yakolevitch Ostrogorsky ganhou fama com o livro Democracia e a organização dos partidos políticos, publicado em Londres em 1902. No 1o volume, ele analisou os partidos políticos americanos e ingleses. O 2o foi dedicado ao mais famoso partido europeu, o social-democrata da Alemanha, em que se inspirou o autor italiano nascido na Alemanha, Robert Michels, para formular sua conhecida “lei de bronze das organizações”.
A tese de Ostrogorsky era a de que a ordem social e política do século 19 vinha sendo mantida graças a uma sociedade tradicionalmente estratificada e que o individualismo a tinha erodido. Por essa razão, a política já não era o resultado das opções dos cidadãos informados e livres, mas sim o produto da organização mecânica do sistema político, dominado pelos políticos profissionais e pelos aparatos partidários. Para ele, organização era a palavra-chave, pois indicava a corrupção essencial das sociedades da época.
Enquanto para Michels a organização era danosa porque levava necessariamente à oligarquização das instituições, para o autor russo era prejudicial, porque impedia a política de caminhar no sentido desejável, na medida em que substituía a ação individual, livre e fruto da meditação, pelas reações manipuladas das massas. As eleições, segundo ele, não representavam o resultado do pensamento ilustrado dos cidadãos responsáveis, mas sim a simples ordenação do consentimento. A opinião era sepultada pelas liturgias da campanha, que cativavam os eleitores pelo espetáculo e pela emoção. A organização, escreveu, havia corrompido a vida política, mas isso era o resultado da corrupção das idéias que formavam a cultura política daquela época. Obviamente, qualquer semelhança com a quadra que estamos vivendo, não é mera coincidência. O francês Maurice Duverger, autor do famoso manual Os partidos políticos, deixou sugerida em seu livro a razão do pessimismo de Ostrogorsky, mas se vale de sua tese para explicar como aspectos negativos da política podem contribuir para aprimorá-la. Escreveu ele: “A darmos crédito a Ostrogorsky, a corrupção teria ocupado lugar assaz importante no desenvolvimento dos grupos parlamentares britânicos. Por muito tempo, os ministros ingleses asseguravam a si sólidas maiorias mediante a compra de votos, senão da consciência dos deputados. A coisa era oficiosa: havia na própria Câmara um guichê onde os parlamentares iam receber o prêmio de seu voto, na ocasião das votações.
Em 1714 foi criado o posto de secretário político da tesouraria, a fim de assumir os encargos dessas operações financeiras; o secretário foi logo, aliás, intitulado o “secretário patrocinador”, porque dispunha da nomeação dos cargos do governo, a título de corrupção. Distribuindo assim as benesses governamentais aos deputados da maioria, o secretário patrocinador fiscalizava muito de perto os seus votos e discursos: tornou-se desse modo, para eles, o homem do whip (chicote, em inglês). “Instaurou-se assim, progressivamente, uma severa disciplina no partido majoritário. Posteriormente, com o gradativo apuro dos costumes parlamentares, a estrutura dos partidos, com sua vigorosa organização e a autoridade dos seus whips, sobreviveu às razões que a haviam feito nascer.” Duverger conclui: “Seria interessante verificar se o sistema britânico não foi empregado em outros países, e se a corrupção parlamentar não engendrou, seja pela ação, seja pela reação, um fortalecimento da organização interior dos grupos de deputados. Sabe-se da importância que esses fenômenos de corrupção assumem numa certa fase do desenvolvimento democrático, como meio de o governo resistir a uma pressão crescente das Assembléias”.
Duverger esteve em Brasília em 1981. Se fosse hoje, poderia verificar que, aqui, essa prática também ocorre. Só que com sinal trocado. Não foi o instrumento a que recorreu o governo para resistir à pressão da Assembléia. Foi a forma de o governo dobrar a Assembléia a seus caprichos e conveniências, levando-a à desmoralização. Resta saber se, como na Inglaterra, esses métodos vão, um dia, contribuir para regenerar nossa vida pública. Oxalá assim seja.

Octaciano Nogueira
Historiador e cientista político


Fonte: http://www.senado.gov.br/

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Ao inferno à procura de luz

BOLÍVAR LAMOUNIER


Sherlock Holmes diria que o ilustre presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, dr. Cezar Britto, voltou ao local do crime

UM DADO auspicioso na cena política brasileira é o que se tem denominado democracia "participativa" -o ideal de uma participação relevante e mais diversificada, não limitada aos períodos eleitorais. Não vejo como alguém possa se opor a isso; quanto mais, melhor.

A expressão "democracia direta" designa algo bem diferente. Aqui estamos falando de uma corrente de pensamento profundamente refratária à única democracia que de fato existe no mundo moderno: a representativa. Sua raiz principal é o sonho romântico de recriar radicalmente a sociedade, restabelecendo o modo de vida "espontâneo" que supostamente teria existido no passado e impedindo o surgimento de instituições políticas permanentes.
Na prática, a democracia dita "direta" reduz-se a uns poucos instrumentos bem conhecidos, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de legislação -acolhidos no Brasil pela Constituição de 1988. Não morro de amores por nenhum deles, mas admito que possam ser úteis em conjunturas especiais e em relação a determinadas matérias, entre as quais obviamente não se incluem questões econômicas ou políticas complexas como privatização, endividamento ou sistema de governo.
O plebiscito, especialmente, pode ser o caminho para dirimir impasses emocional e valorativamente carregados, como aborto, eutanásia, maioridade penal ou pena de morte. Sou bem menos flexível em relação ao conceito neo-romântico de uma democracia sem mediações institucionais e, de modo geral, a mecanismos capazes de produzir impactos sistêmicos excepcionalmente fortes.
Problemas desse tipo impregnam até a medula a reforma política sugerida pela OAB, e em particular a figura do "plebiscito revocatório".
Refiro-me aqui à possibilidade de "des-eleger", mediante plebiscito de iniciativa popular, representantes infiéis (?) ao mandato, ou envolvidos em corrupção etc. Trata-se, nada mais e nada menos, de admitir a revogação, nos termos acima, do mandato dos chefes de Executivo e dos senadores, e de toda a Câmara dos Deputados, com a conseqüente convocação de novas eleições.
Salta aos olhos que a eventual aplicação de tal fórmula atingiria em cheio o sistema político, no mínimo por difundir uma premonição de acefalia institucional. Nada a ver, portanto, com o "recall" norte-americano.
Raramente aplicado, o "recall" confina-se aos distritos eleitorais e se caracteriza por um impacto sistêmico de pouquíssima relevância.
No fundo, como se vê, o problema é de proporção. É a diferença entre avaliações judiciosas, bem proporcionadas, e avaliações insensatas, carentes do sentimento de proporção. Propostas de participação "direta" mal-proporcionadas darão ensejo a conflitos institucionais graves, desde logo por serem antitéticos os princípios "direto" e "representativo". Numa democracia apenas parcialmente construída, sem instituições respeitadas, é uma possibilidade real.
Em síntese, o que acima vai dito é o que escrevi em dois artigos anteriormente publicados neste espaço ("Tendências/Debates", 7 e 21/3). Em sua réplica o presidente da Ordem, Dr. Cezar Britto, ofereceu contra-argumentos substanciosos ("Tendências/Debates", 30/3), mas insuficientes para exorcizar o demônio da utopia radical e certos mitos de gosto populista que a meu ver influenciaram o trabalho da OAB no campo da reforma política. Lembrando minha antiga convicção parlamentarista -cortesia que me torna seu devedor-, o Dr. Britto estranhou meu ponto de vista contrário à revogação de mandatos nos termos do projeto, ao ver dele "muito mais democrática" que o mecanismo parlamentarista clássico da dissolução da Câmara por decisão do Chefe de Estado, seguida de nova eleição legislativa.
Ora, a expressão "muito mais democrática" parece-me trair a mitologia populista a que me referi. Sherlock Holmes diria que o ilustre presidente da OAB voltou ao local do crime. Eis sua tese: mais "povo", mais democracia; menos "povo", menos democracia.
Não vejo lugar nela para uma concepção institucional da democracia representativa; aliás, nem para o entendimento do sistema político como uma estrutura objetiva ("externa à consciência", como diria Marx).
Nessa visão, a própria indagação sobre o caráter democrático ou não de um regime passa a ser uma questão subjetiva: quem poderá respondê-la melhor que o "povo" -ou quem se arrogar o direito de falar por ele?


BOLÍVAR LAMOUNIER , 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia (UCLA), é consultor de empresas e autor do livro "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (Augurium Editora, 2005).

Folha de São Paulo, Tendencias/Debate, 23 de abril de 2007.

quarta-feira, 28 de março de 2007

Reforma Política: o lugar do Congresso Nacional.

Lucas Fernando de Castro*

O Superior Tribunal Eleitoral, órgão de maior hierarquia quando o tema é eleições, e o Supremo Tribunal Federal, corte suprema brasileira, vêm, nos últimos seis meses, tomando às vezes de Congresso Nacional e por meio de suas decisões vêm alterando de uma forma nada democrática o contorno institucional da democracia brasileira ora num sentido, ora noutro.

Podemos citar como exemplo, dois casos.

O primeiro aconteceu quando da decisão do STF, em meados de dezembro último quando, derrubou a chamada clausula de barreira ou clausula de desempenho, prevista já na Lei 9.096/1995 – Lei Orgânica dos Partidos Políticos – no artigo 13[1]. O relator argumentou que os parlamentares eleitos por partidos que não ultrapassaram aquele óbice, não poderiam atuar de forma plena. Estes sofreriam três grandes restrições: i) não entrariam na divisão de 99% do Fundo Partidário; ii) teria apenas direito a um programa de dois minutos por semestre, referente propaganda partidária gratuita, e iii) atuação parlamentar encolhida, com proibição de ocupar cargos na mesa, participar de comissões, para citar exemplos. Chamou a baila, o princípio da igualdade para justificar a declaração de inconstitucionalidade do citado artigo, tirando todos os efeitos daquele dispositivo.

O segundo exemplo, mais próximo, refere-se a uma consulta ao TSE de autoria do Partido da Frente Liberal (PFL), que logo se tornará apenas Democratas (DEM), em que pergunta a quem pertenceria o mandato eletivo, se ao partido ou ao congressista, quando deparados com migração partidária, nas eleições proporcionais. A decisão de ontem, tomada por maioria (6x1), acabou por decidir que o mandato eletivo é, de fato, do partido político, tendo em vista a importância constitucional e no Código Eleitoral das agremiações políticas.

O que salta os olhos nestas duas decisões? A tão aclamada reforma política já está se operando, só que por meios nada democráticos. Vejamos.

No primeiro caso a Corte Suprema entendeu que a clausula de exclusão não estava de acordo com a Carta Política. Fazendo assim, acabou com a discussão e também com a possibilidade de, naqueles moldes em que estava instituída na Lei 9.096/1995, ser implementada novamente. Ainda mais, a discussão nem mesmo passou por nenhumas das Câmaras (Alta e Baixa), ou seja, ela se deu apenas nos gabinetes e nos labirintos do Judiciário brasileiro. Síntese: sem a participação do Congresso, nada democrático.

Também no segundo caso, a temática não passou pelo Congresso Nacional, não houve debate ou mesmo discussão. Quando menos se espera, está em vigor no país a fidelidade partidária, obrigando os congressistas a voltarem para o partido com o qual se elegeu. Ainda não se sabe nem como essa decisão irá funcionar na prática. Mais uma vez, a implementação de uma nova figura político-jurídica foi construída fora do processo democrático, sem sequer a mínima intervenção dos representantes populares (congressistas eleitos para o Legislativo).

Estes dois exemplos mais próximos de nós, já conseguem demonstrar que o Poder Legislativo passou para o terceiro plano, sobressaindo-se o Executivo seguido do Judiciário. Ao Congresso Nacional foi relegado um papel de figurante no processo legislativo pois o Executivo já não mais dele precisa (Medida Provisória); o Judiciário, que teria o papel de aplicador da Lei não somente a aplica, mas cria novas figuras (fidelidade partidária). Ao Legislativo foram relegados apenas os esquemas de corrupção, mensalões e o descrédito da população.

Nesse ínterim, nos perguntamos: qual é o papel do Congresso Nacional?

A resposta para tal pergunta não é fácil. Constatamos, apenas, que quanto mais o Congresso Nacional perde seu poder, mais a democracia representativa enfraquece e abrem-se brechas para ações autoritárias.

*Lucas Castro é bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais e pesquisador do GAC/NUSP.


[1] Art. 13 - Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido, que em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles.

Mandato pertence a partido, diz Ministro

CONSULTA No 1.398 – CLASSE 5a – DISTRITO FEDERAL (Brasília).

Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha.
Consulente: Partido da Frente Liberal (PFL), por seu Presidente.


CONSULTA. ELEIÇÕES PROPORCIONAIS. CANDIDATO ELEITO. ABANDONO DE PARTIDO. RESPOSTA AFIRMATIVA.

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA:

Cuida-se de consulta formulada pelo Partido da Frente Liberal, formulada nos seguintes termos, no que interessa:
Considerando o teor do art. 108 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), que estabelece que a eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado entre os diversos partidos e coligações envolvidos no certame democrático.

Considerando que é condição constitucional de elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos.

Considerando ainda que, também o cálculo das médias, é decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos e coligações.


INDAGA-SE:

Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?

A Assessoria Especial da Presidência (ASESP) manifesta-se às fls. 5-10 pela resposta afirmativa.
É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA (relator):

Consulta o Partido da Frente Liberal (PFL), por meio do seu ilustre Presidente Nacional, se os partidos políticos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda.

Refere o Partido consulente que a candidatura de qualquer cidadão a cargo eletivo depende de prévia filiação partidária, conforme exigência constitucional e também do vigente Código Eleitoral (Lei 4.737/65).

Não é nova essa questão de se saber se o mandato eletivo é de ser tido como pertencente ao indivíduo eleito, à feição de um direito subjetivo, ou se pertencente ao grêmio político partidário sob o qual obteve a eleição, não importando, nesse caso, se o êxito eleitoral dependeu, ou não, dos votos destinados unicamente à legenda ou do aproveitamento de votos das chamadas sobras partidárias.

É da maior relevância assinalar que os Partidos Políticos têm no Brasil, status de entidade constitucional (art. 17 da CF), de forma que se pode falar, rememorando a lição de Maurice Duverger (As Modernas Tecnodemocracias, tradução de Natanael Caixeiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978), que as modernas democracias de certa forma secundarizam, em benefício dos Partidos Políticos, a participação popular direta; na verdade, ainda segundo esse autor, os Partidos Políticos adquiriram a qualidade de autênticos protagonistas da democracia representativa, não se encontrando, no mundo ocidental, nenhum sistema político que prescinda da sua intermediação, sendo excepcional e mesmo até exótica a candidatura individual a cargo eletivo fora do abrigo de um Partido Político.

A Carta Magna Brasileira estabelece, como condição de elegibilidade do cidadão, dentre outras, a filiação partidária (art. 14, § 3º, V), enquanto o art. 17, § 1º, assegura aos partidos políticos estabelecer normas de fidelidade e disciplina, o que serve de indicativos suficientes para evidenciar que a democracia representativa, no Brasil, muito se aproxima da partidocracia de que falava o referido doutrinador francês Maurice Duverger (op. cit.).

Dado o quadro jurídico constitucional positivo, a saber, o que confere ao Partido Político a exponencial qualificação constitucional, ladeada pela sua essencialidade ao funcionamento da democracia representativa, torna-se imperativo assegurar que a interpretação jurídica de qualquer questão pertinente aos Partidos Políticos, com destaque para essa questão da fidelidade dos eleitos sob a sua legenda, há de ter a indispensável correlação da própria hermenêutica constitucional, com a utilização prestimosa dos princípios que a Carta Magna alberga.

Essa visão da aplicabilidade imediata dos princípios constitucionais à solução de controvérsias concretas, no mundo processual, representa a superação do que o Professor Paulo Bonavides chama de velha hermenêutica (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 2000), para aludir à forma interpretativa da Constituição que deixava à margem de invocação imediata a força normativa dos princípios; tem-se, hoje em dia, como pertencente ao passado, a visão que isolava os princípios constitucionais da solução dos casos concretos, posição que parece ter tido o abono do notável jurista italiano Emílio Betti (Apud Bonavides, op. cit.), bem como a formulação de que os princípios eram normas abertas (preconizada por Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito) ou meramente informativas, não portando densidade suficiente para resolução de conflitos objetivos.

Adotada a posição do Professor Paulo Bonavides, segundo a qual os princípios são normas e as normas compreendem as regras e os princípios, pode-se (e deve-se) dizer e proclamar que, na solução desta Consulta, é mister recorrer-se aos princípios constitucionais normativos, vendo-se a Constituição, nas palavras do Professor Norberto Bobbio, como termo unificador das normas que compõem o ordenamento jurídico, eis que sem ele, as normas constituiriam um amontoado e não um ordenamento (Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução de Maria Celeste dos Santos, Brasília, UnB, 1997).

Ora, não há dúvida nenhuma, quer no plano jurídico, quer no plano prático, que o vínculo de um candidato ao Partido pelo qual se registra e disputa uma eleição é o mais forte, se não o único, elemento de sua identidade política, podendo ser afirmado que o candidato não existe fora do Partido Político e nenhuma candidatura é possível fora de uma bandeira partidária.

Por conseguinte, parece-me equivocada e mesmo injurídica a suposição de que o mandato político eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivaleria a dizer que ele, o candidato eleito, se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular, não apenas transformando-a em propriedade sua, porém mesmo sobre ela podendo exercer, à moda do exercício de uma prerrogativa privatística, todos os poderes inerentes ao seu domínio, inclusive o de dele dispor.

Todavia, parece-me incogitável que alguém possa obter para si - e exercer como coisa sua - um mandato eletivo, que se configura essencialmente como uma função política e pública, de todo avessa e inconciliável com pretensão de cunho privado.

O princípio da moralidade, inserido solenemente no art. 37 da Carta Magna, repudia de forma veemente o uso de qualquer prerrogativa pública, no interesse particular ou privado, não tendo relevo algum afirmar que não se detecta a existência de norma proibitiva de tal prática.

É que o raciocínio jurídico segundo o qual o que não é proíbido é permitido, somente tem incidência no domínio do Direito Privado, onde as relações são regidas pela denominada licitude implícita, o contrário ocorrendo no domínio do Direito Público, como bem demonstrou o eminente Professor Geraldo Ataliba (Comentários ao CTN, Rio de Janeiro, Forense, 1982), assinalando que, nesse campo, o que não é previsto é proibido.

Não se há de permitir que seja o mandato eletivo compreendido como algo integrante do patrimônio privado de um indivíduo, de que possa ele dispor a qualquer título, seja oneroso ou seja gratuito, porque isso é a contrafação essencial da natureza do mandato, cuja justificativa é a função representativa de servir, ao invés da de servir-se.

Um levantamento preliminar dos Deputados Federais, eleitos em outubro de 2006, mostra que nada menos de trinta e seis parlamentares abandonaram as siglas partidárias sob as quais se elegeram; desses trinta e seis, apenas dois não se filiaram a outros grêmios partidários e somente seis se filiaram a Partidos Políticos que integraram as coligações partidárias que os elegeram. Por conseguinte, vinte e oito parlamentares, eleitos sob determinadas legendas, passaram-se para as hostes dos seus opositores, levando consigo, como se fossem coisas particulares, os mandatos obtidos no último prélio eleitoral.

Apenas para registro, observe-se que dos 513 deputados federais eleitos, apenas 31 (6,04%) alcançaram por si mesmos o quociente eleitoral.

Não tenho dificuldade em perceber que razões de ordem jurídica e, sobretudo, razões de ordem moral, inquinam a higidez dessa movimentação, a que a Justiça Eleitoral não pode dar abono, se instada a se manifestar a respeito da legitimidade de absorção do mandato eletivo por outra corrente partidária, que não recebeu sufrágios populares para o preenchimento daquela vaga.

Penso, ademais, ser relevante frisar que a permanência da vaga eletiva proporcional na titularidade do Partido Político, sob cujo pálio o candidato migrante para outro grêmio se elegeu, não é de ser confundida com qualquer espécie de sanção a este, pois a mudança de partido não é ato ilícito, podendo o cidadão filiar-se e desfiliar-se à sua vontade, mas sem que isso possa representar subtração à bancada parlamentar do Partido Político que o abrigou na disputa eleitoral.

Ao meu sentir, o mandato parlamentar pertence, realmente, ao Partido Político, pois é à sua legenda que são atribuídos os votos dos eleitores, devendo-se entender como indevida (e mesmo ilegítima) a afirmação de que o mandato pertence ao eleito, inclusive porque toda a condução ideológica, estratégica, propagandística e financeira é encargo do Partido Político, sob a vigilância da Justiça Eleitoral, à qual deve prestar contas (art. 17, III da CF).

Por outro lado, as disponibilidades financeiras dos Partidos Políticos e o controle do acesso ao rádio e à TV não estão ao alcance privado dos interessados, pois são geridos em razão de superiores interesses públicos, implementados diretamente pelos Partidos Políticos e coligações partidárias.

Registro que tenho conhecimento – e por elas nutro respeito - de respeitáveis posições jurisprudenciais e doutrinárias afirmativas de que o candidato eleito conserva o mandato eletivo, quando se desfilia do grêmio pelo qual se elegeu.

Contudo, essa orientação pretoriana se plasmou antes do generalizado acatamento que hoje se dá à força normativa dos princípios constitucionais. Aquela orientação, portanto, não está afinada com o espírito do nosso tempo, rigorosamente intolerante com tudo o que represente infração à probidade e à moralidade administrativas e públicas.

Creio que o tempo presente é o da afirmação da prevalência dos princípios constitucionais sobre as normas de organização dos Partidos Políticos, pois sem isto se instala, nas relações sociais e partidárias, uma alta dose de incerteza e dúvida, semeando alterações ocasionais e fortuitas nas composições das bancadas parlamentares, com grave dano à estabilidade dessas mesmas relações, abrindo-se ensejos a movimentações que mais servem para desabonar do que para engrandecer a vida pública.

Não se trata, como poderia apressadamente parecer, que a afirmação de pertencer o mandato eletivo proporcional ao Partido Político seja uma criação original ou abstrata da interpretação jurídica, de todo desapegada do quadro normativo positivo: na verdade, além dos já citados dispositivos constitucionais definidores das entidades partidárias e atribuidores das suas insubstituíveis atribuições, veja-se que o art. 108 do Código Eleitoral evidencia a ineliminável dependência do mandato representativo ao Partido Político, permitindo mesmo afirmar, sem margem de erro, que os candidatos eleitos o são com os votos do Partido Político.

Este dispositivo já bastaria para tornar induvidosa a assertiva de que os votos são efetivamente dados ao Partido Político; por outro lado essa conclusão vem reforçada no art. 175, § 4º, do Código Eleitoral, ao dizer que serão contados para o Partido Político os votos conferidos a candidato, que depois da eleição seja proclamado inelegível ou que tenha o registro cancelado; o art. 176 do mesmo Código também manda contar para o Partido Político os votos proporcionais, nas hipóteses ali indicadas.

Tudo isso mostra que os votos pertencem ao Partido Político, pois do contrário não teria explicação o seu cômputo para a agremiação partidária nos casos mencionados nos referidos dispositivos do Código Eleitoral; se os sufrágios pertecem ao Partido Político, curial e inevitável dizer que o mandato eletivo proporcional, por igual, pertence ao grêmio partidário, como consequência da primeira afirmação.

Penso que o julgamento desta Consulta traz à tona a sempre necessária revisão da chamada teoria estruturalista do Direito, que tendeu a explicar o fenômeno jurídico somente na sua dimensão formal positiva, como se os valores pudessem ser descartados ou ignorados, ou como se a norma encerrasse em si mesma um objetivo pronto, completo e acabado.

Com efeito, as exigências da teoria jurídica contemporânea buscam compreender o ordenamento juspositivo na sua feição funcionalista, como recomenda o Professor Norberto Bobbio (Da Estrutura à Função, tradução de Daniela Beccacia Versiani, São Paulo, Editora Manole, 2007), no esforço de compreender, sobretudo, as finalidades (teleologias) das normas e do próprio ordenamento.

Ouso afirmar que a teoria funcionalista do Direito evita que o intérprete caia na tentação de conhecer o sistema jurídico apenas pelas suas normas, excluindo-se dele a sua função, empobrecendo-o quase até à miséria; recuso, portanto, a postura simplificadora do Direito e penso que a parte mais significativa do fenômeno jurídico é mesmo a representada no quadro axiológico.

Outro ponto relevante que importa frisar é o papel das Cortes de Justiça no desenvolvimento da tarefa de contribuir para o conhecimento dos aspectos axiológicos do Direito, abandonando-se a visão positivista tradicional, certamente equivocada, de só considerar dotadas de força normativa as regulações normatizadas; essa visão, ainda tão arraigada entre nós, deixa de apreender os sentidos finalistícos do Direito e de certo modo, desterra a legitimidade da reflexão judicial para a formação do pensamento jurídico.

Volto, ainda esta vez, à companhia do Professor Paulo Bonavides, para, com ele, afirmar que as normas compreendem as regras e os princípios e, portanto, estes são também imediatamente fornecedores de soluções às controvérsias jurídicas.

Observo, como destacado pelo eminente Ministro Cezar Peluso, haver hipóteses em que a mudança partidária, pelo candidato a cargo proporcional eleito, não venha a importar na perda de seu mandato, como, por exemplo, quando a migração decorrer da alteração do ideário partidário ou for fruto de uma perseguição odiosa.

Com esta fundamentação respondo afirmativamente à consulta do PFL, concluindo que os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda.

É o voto.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Collorados

Lucas Massimo*

O retorno de Fernando Collor, agora na condição de Senador, ao Planalto para uma reunião com Lula ganhou relevante destaque no noticiário político. A reunião é anunciada com uma ampla dose de hesitação, e não poderia ser diferente: o que há de notícia no encontro de um grupo partidário com o presidente da república? Evidentemente que as biografias do senador e do presidente particularizam o episódio, sobretudo pela condição de Collor e Lula no seu último encontro – o debate ocorrido no segundo turno das eleições presidenciais de 1989. Mas para além disso, existe um mal-estar generalizado nesse retorno de Fernando Collor, um receio entre levantar velhas bandeiras e atribuir legitimidade ao retorno do desdito ex-presidente.
O embaraço causado pela atual condição de Fernando repousa na dificuldade em distinguir uma circunstância política de um juízo moral. Collor foi submetido a um processo de julgamento estritamente político, foi condenado e cumpriu sua pena; passados 15 anos do impeachment que o defenestrou da política nacional ele reaparece amparado pelo voto de mais de meio milhão de eleitores alagoanos. Essa é a situação objetiva. Já o significado disso para o ideal democrático profetizado pela cobertura jornalística está longe de admitir que em política aliados e adversários são posições muito mais flexíveis que os rígidos códigos morais da mídia tupiniquim.
Uma vez que não é elegante nem inteligente atribuir resultados eleitorais a estupidez do eleitorado, o conservadorismo da cobertura se vê desprovido de mensalões, sanguessugas ou dossiês, enfim, jargões e slogans bastante funcionais para manifestar tacitamente o repúdio ao candidato que entregou o projeto de abertura da economia ao obscuro domínio da corrupção. A eleição de Collor para o Senado Federal representa a frustração da condenação capital que os baluartes do decoro e da distinção creditavam ao impeachment.
Mas como então pensar o retorno do ilustre senador alagoano? A biografia de Collor não deve, segundo esse ponto de vista, ser avaliada pela desenvoltura mais ou menos heterodoxa com a qual o cidadão construiu sua coalizão de governo porque isso implica em silenciar sobre o projeto de desenvolvimento – este sim – que permitiu aos antigos “desafetos” sentar se à mesa de negociação. O legado do governo Collor para a política brasileira não está no caráter simbólico de uma seção parlamentar que cassou o mandato do primeiro presidente eleito pelo voto popular após a redemocratização; este legado está sim na primazia incontestável e absoluta de uma agenda que delega ao livre mercado a tarefa de desenvolvimento econômico-social do país. Assim, o episódio aparece como mais um grito de desespero do discurso que enclausura a avaliação dos governos na redoma da “ética na política”, a forma pela qual o debate público tem se eximido de examinar a consolidação do neoliberalismo à la gauche.

------
*Lucas Massimo é mestrando em Ciência Política pela UNICAMP.