terça-feira, 5 de maio de 2009

O voto obrigatório como benefício coletivo

[José Yalenti, Paralelas e Diagonais. SP, 1945. Col. Pirelli/MASP]

Luiz Domingos Costa

A defesa do voto voluntário ou facultativo pode apresentar uma gama variada de argumentos. Entretanto, cabe destacar os seguintes como forma de sintetizar boa parte do corpo de idéias embutidas nesta plataforma de certos grupos e eleitores:

1. Trata-se de excessiva interferência do Estado na vida individual, já que o voto, sendo um direito de cada cidadão, deve ser abdicado por aqueles que não estejam com disposição em de exercê-lo. Não deve ser, por esta visão, uma obrigação formal perante a lei.

2. Quanto mais voluntária a decisão de votar, melhor a qualidade do voto: candidatos e partidos devem convencer os eleitores a comparecer às seções eleitorais.

3. O voto facultativo diminui o número de eleitores desinteressados, diminuindo o voto orientado pelo escárnio, repulsa ou por motivações mesquinhas (como a busca de dinheiro ou bens materiais de toda ordem).

4. A maioria dos países desenvolvidos e com democracia consolidada adotam o voto facultativo. Ou, numa versão negativa desta: regimes autoritários que forçaram o voto tiveram alto comparecimento eleitoral e nem por isto se caracterizavam como democráticos.

A ordem dos argumentos não é casual, pois entendo que a qualidade dos argumentos decresce na medida em que se avança na lista. Ou seja, o argumento mais importante é o primeiro e aquele que parece mais infeliz, o quarto e último.

Aqui me aterei apenas aos dois primeiros, por considerá-los suficientes para ensejar o raciocínio a favor do voto obrigatório no Brasil.

Com um fundamento de liberalismo político (que seduz inclusive o liberalismo de esquerda) adota-se a defesa de que certas decisões de foro individual devem ser protegidas da interferência do Estado. Por mais que o voto tenha resultados públicos e coletivos, a decisão sobre a sua execução é de âmbito exclusivamente individual. Por mais que tal colocação seja verdadeira do ponto de vista lógico, os meios do seu exercício e, principalmente, as conseqüências deste procedimento não estão em acordo com o pensamento que se coloca uma proposta mais inclusiva de democracia. Para argumentar nesta direção é necessário sair do campo da lógica formal e passar ao campo dos achados empíricos.

Em primeiro lugar, qualquer que seja o país, o voto obrigatório aumenta a representação de várias camadas demográficas, confere maior representatividade ao sistema de eleição. Esse achado das pesquisas eleitorais mundo afora é até intuitivo: obrigando contingentes enormes a comparecer às urnas, o Estado garante maior participação de mais grupos sociais. O voto facultativo faz o número de votantes cair muito (gira em torno de 50% dos cidadãos norte americanos ao longo dos anos, contra uma faixa de 90% no Brasil do voto obrigatório), e as quedas de comparecimento eleitoral na Europa ocasionalmente colocam a introdução do voto obrigatório na agenda.

O corolário desse raciocínio meramente quantitativo é o de que quanto menos grupos incluídos no sistema de eleição (por força da liberdade, grupos se auto-excluem da participação, não importando se mais ou menos pobres, mais ou menos escolarizados) menores são os benefícios distribuídos por políticas públicas. Ou seja, se políticas distribuem benefícios localizados, estes benefícios tendem a diminuir na medida em que certos grupos não participam de eleições.
Nos EUA, por exemplo, os 50% que comparecem para votar apresentam desvios de perfil socioeconômico intensos em relação à população mais ampla. Também se sabe, por outro lado, que mesmo com essa disparidade, os distintos interesses estão bem representados pelos eleitores que comparecem na eleição. Isto se dá em larga medida pela organização dos interesses nos EUA, que conseguem expressar seus sentimentos e demandas de forma satisfatória com parcelas reduzidas de eleitores.

No Brasil, o problema da desigualdade torna-se fundamental para o acesso à organização política. Grupos marginalizados, abaixo da linha da pobreza ou no mercado informal estão longe da organização política e participação extra-eleitoral. Ora, quaisquer perdas de participação eleitoral entre estes grupos pode acarretar a sua completa exclusão do sistema de representação política porque eles não possuem outra.

Em segundo lugar, entretanto, existe também o problema da qualidade do voto e não apenas o da quantidade. Diz-se que o voto voluntário é mais qualificado, mais informado, mais interessado, diferenciado em relação aos votantes compulsórios, forçados, encurralados pelo Estado e que facilmente compráveis com santinhos, imagens ou slogans. Mas, paradoxalmente, os estudos demonstram o efeito de educação política das eleições sobre o cidadão. A eficácia política (ou o sentimento de influir nos resultados políticos, mesmo a contragosto) tem forte impacto no incremento das habilidades cívicas ao longo de anos. Ou seja, curiosamente, tem sido demonstrado que o voto (em eleições confusas, poluídas e cheias de problemas reais) são um dos principais laboratórios para a melhoria da participação político-eleitoral.

Como abstrairmo-nos de uma informação como essa no Brasil? Se estes dados estiverem corretos, então parece que os benefícios coletivos do voto obrigatório – seja mediante a manutenção de interesses não organizados entre as clientelas dos políticos, seja mediante a conquista paulatina de maior sentimento de eficácia e aprimoramento políticos – são suficientes para justificá-lo.

Finalmente, caso alguém se levante em favor dos itens 3 e 4 do voto facultativo, podemos discuti-los posteriormente, aqui.

6 comentários:

Adriano Codato disse...

Muito bom seu texto, Luiz. Mas acho que você deveria enfrentar as questões 3 e 4 tb. E publique-o num jornal de circulação, tipo GP.

Fausto Amadigi disse...

Eis um tema controverso... Gostei daforma como você organizou a abordagem: primeiro um post para nivelamento, depois a argumentação. O artigo está bem escrito, lança as premissas e argumenta. Tenho a impressão que o tema quantidade x qualidade merece aprofundamento. Não estou convencido que quanto maior o n. de pessoas votando, mais representativo o sistema. Além disso, as vezes a "educação política" é um tanto grosseira, ou até embrutecedora. Lembro da expressão "festa da democracia" durante as eleições...

Anônimo disse...

Há de se reconhecer: corajoso o autor é. Pretender reunir em apenas quatro argumentos a advocacia do voto facultativo e, ainda por cima, apresentá-los em ordem de força decrescente é, sim, exercício de coragem. De economia também. Espera-se que o autor reúna já para a refutação do primeiro argumento todas as suas energias. Vejamos como se dá o enfrentamento. Concedamos que o primeiro argumento em favor do voto facultativo seja o apresentado pelo autor. (Eis, sim, uma concessão. Afinal, quem concebe a política como "uma empresa de interessados" não se reconheceria aí). Em frente. O autor diz concordar que, do ponto de vista lógico, se a unidade de análise é o eleitor, é trivial que seja ele quem deva decidir livremente. Mas eis que o autor surge com um passa-moleque e retira legitimidade do voto individual para cobrar que manifeste interesses de agregados com os quais ele pode nem reconhecer legitimidade. A refutação dar-se-ia, caso seguíssemos o autor, pela consideração da empiria. Que empiria é essa que retira legitimidade do voto do eleitor para outorgá-la a um agregado que é por ele rechaçada? Por fim, os EUA seriam perversíssimos em termos de representação (por conta do voto facultativo) e ao mesmo tempo efetivariam uma perfeita simetria entre a agregação dos interesses e a sua tradução política (apesar do voto facultativo). Bem, se é com esse armamento que os defensores da obrigatoriedade do voto comparecem no campo de batalha, seus adversários podem exercitar-se fazendo palavras-cruzadas. Estão dispensados até da leitura do próximo texto no qual o seus argumentos mais fracos serão examinados. Coragem decididamente não é garantia de vitória. Mas economizar o próprio tempo e o de seus adversários é uma virtude louvável.

Hiro Kumasaka
Brasília/DF

Luiz Domingos disse...

Aos comentários, obrigado. Respondo primeiro ao Fausto:

O problema da quantidade versus o da qualidade da votação é complicado. Assumindo que a quantidade não significa qualidade, temos o lugar comum segundo o qual temos políticos ruins porque o povo é burro, ou inconsciente. Para comprovar essa premissa, seria necessário uma situação facultativa (voto não obrigatório), gerando um menor número de eleitores e votos mais "qualificados", o que deveria ser comprovado por melhores representantes eleitos (menos corrupção, leis mais importantes, p.ex.). Paralelamente, seria crer que os eleitores interessados (ou não apáticos) seriam a fina flor do racionalismo alemão. Fato é que o eleitor "ideológico" não exprime a maioria do eleitorado das democracias contemporâneas. Os eleitores parecem inclinados a votar de acordo com circunstâncias localizadas no tempo, crises econômicas, políticas que lhe afetem o conforto pessoal e mesmo pela grande influência das campanhas eleitorais.
Portanto, se crermos que o eleitor médio não é nem ignorante e nem um um filósofo, creio ser preponderante a perspectiva de que a quantidade aumenta a representatividade.

Quanto à educação proporcionada pelo ato de votar, de fato não estamos falando de uma educação no sentido forte do termo. Trata-se simplesmente de aumentar o grau de eficácia que os eleitores têm, ou seja, aumentar a sua perspectiva de que podem ajudar a mudar os resultados políticos. Além de modesto, este parco indicador de educação varia entre uma eleição e outra, entre o fim de uma eleição e o começo da outra, e assim por diante.

Quanto ao comentário de Hiro Kumasaka, fico feliz com a disposição para o debate.

Os grandes agregados são, infelizmente, os únicos meios que permitem falar em legitimidade.
O voto, enquanto ação individual, só adquire relevância ao ser expressado num contexto coletivo (ou há eleições de apenas um eleitor?)
Do ponto de vista do Estado, a legitimidade de um sistema perante os seus membros está no apoio e confiança de grandes contingentes, que variam (infelizmente, a democracia é de massa, representativa, e não há volta para a Grécia Antiga) entre maiorias, minorias, e assim por diante.

A dimensão individual importa (um cidadão, um voto) como fundamento da escolha, mas a legitimidade é atestada na soma dos votos. Daí que não podemos abrir mão de analisar os "agregados". Mesmo a noção de "responsividade" (Accountability) dos representantes perante os representados só valha na soma de muitos e não a um ou dois.

Em seguida, publicarei um texto sobre a questão do voto nos EUA e no Brasil.

Anônimo disse...

Luiz, uma dúvida: será que vc poderia fazer um tipo de grupo-controle composto por países que tenham, ao mesmo tempo, níveis patológicos de desigualdade social e voto facultativo? Neste grupo-controle talvez vc possa encontrar que, mesmo os grupos excluidos ou autoexluidos da eleicao,sao alvos de pp. Que tal tentar?

Anônimo disse...

Luiz Domingos,

A representação, por mais limitada que seja pelo oligopólio (ou duopólio, ousaria dizer até monopólio) dos partidos, manifesta identidades outras muito diferentes daquelas imaginadas pelo analista. É claro que a representação não se dá na base do 1:1. Quem se interessa por um mapa desse tipo? Mas também não se dá pela métrica simplificadora do analista. Entre um extremo e outro, há a representação propriamente dita. Repare que reconheço a importância da filtragem da estrutura partidária. Cobra-se apenas do analista certa dose de humildade. Quer um exemplo? Imagine uma população divida entre católicos e protestantes. Posso perfeitamente avaliar em que medida essa clivagem da população se reflete na representação política. Mas a escolha que os eleitores fizeram se deu exclusivamente com base nessa identidade coletiva? Assim fosse, o sistema político seria neutro. Definitivamente, sabemos que isso não é verdade. De que adiantaria para a consideração do político denunciar o sistema de representação por fraude dado não ter traduzido simetricamente a clivagem religiosa da população? O diabo do eleitor sempre teima em em se identificar a partir de interesses os mais bizarros. Eis a dor e a delícia do ofício do cientista político.

Hiro Kumasaka
Brasília/DF