quarta-feira, 20 de junho de 2007

A reforma política e o eleitor

Publicado na Gazeta do Povo de 19/06/2007

A reforma política e o eleitor

por LUCIANA VEIGA

Há vários aspectos relacionados à reforma política, particularmente ao sistema eleitoral, que merecem ser amplamente debatidos. Entre eles, dois parecem chamar mais a atenção: o ajuste entre o sistema eleitoral e a cultura política do eleitor e a relação entre o sistema eleitoral e a eficiência e estabilidade da democracia. Aqui, o foco vai estar no primeiro ponto.

O aspecto da reforma política mais em evidência se refere ao tipo de lista a ser adotado. Em questão estão três opções: as listas aberta, fechada e flexível. O sistema proporcional de lista aberta vem sendo adotado no Brasil desde 1945. De acordo com esse sistema, cada partido apresenta uma lista de candidatos sem ordenar nomes e o eleitor vota em uma das opções. Ou seja, o eleitor tem a total liberdade de escolher o seu candidato. O lado ruim dessa lista é que ela tende a personalizar a escolha eleitoral e aumentar a disputa dentro do partido. A potencialização da disputa leva a problemas como o oportunismo típico da infidelidade partidária, a necessidade de grandes financiamentos de campanha entre outros vícios da política.

Em um clima marcado por críticas como essas, foi votada na semana passada o projeto que propunha a alteração da lista aberta para a fechada. No modelo proposto, os partidos decidem antes das eleições a ordem em que os candidatos aparecerão na lista. O eleitor vota em um partido e não pode expressar preferência por um determinado candidato. As cadeiras que cada partido receber serão ocupadas pelos primeiros nomes da lista. A principal desvantagem da lista fechada é a impossibilidade de os eleitores influenciarem a escolha de seus representantes individuais. Considerando a cultura política do brasileiro, abrir mão de tal possibilidade não seria pouca coisa.

Enfim, a proposta foi reprovada e discute-se agora a lista flexível, que oferece ao eleitor a possibilidade de intervir no ordenamento dos candidatos feito pelos partidos antes das eleições. Trata-se de um paliativo, de acordo com o segmento derrotado na última semana.

Para discutir a adequação do sistema eleitoral à cultura política do eleitor – propósito deste artigo –, vale a pena abordar o trabalho de Robert Putnam, professor da Universidade de Harvard, “Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna”. O objetivo de Putnam com a obra foi entender por que na Itália do Norte as instituições democráticas funcionam melhor que na Itália do Sul. Negando-se terminantemente a reduzir a explicação à diferença entre o desempenho econômico das duas regiões, o cientista político buscou analisar a cultura política dos moradores do Sul e do Norte. O trabalho de Putnam refere-se às décadas de 70 e 80.

Putnam apresenta uma discussão interessante sobre a relação entre voto pessoal (em contraposição ao voto partidário) e clientelismo. Nas eleições italianas estudadas pelo professor, os votantes escolhiam uma única chapa partidária e as cadeiras do Legislativo eram distribuídas de maneira proporcional. No entanto, aqueles eleitores que quisessem poderiam indicar a sua preferência por algum candidato. Era o voto preferencial.

Os cientistas políticos italianos logo identificaram que a incidência do voto preferencial era reconhecidamente um indicador de personalismo e clientelismo. Putnam, corroborando tal interpretação, constatou que a participação política nas regiões menos cívicas era induzida pela prática do clientelismo personalista e não por compromissos programáticos com as questões públicas. Nas regiões menos cívicas, Putnam constatou que os moradores freqüentavam de maneira mais assídua os gabinetes dos políticos em busca de favores pessoais do que em regiões mais cívicas. E eram em tais regiões que o índice de votos preferenciais era mais alto.

Podemos constatar que a cultura política brasileira tem algo em comum com a cultura política do sul da Itália. No Brasil, a tolerância e a aceitação do clientelismo ainda atingem pontos relevantes. Pesquisa realizada no Estudos Eleitorais Brasileiros (Eseb) pela Universidade Campinas e outras instituições logo após a eleição de 2002 atestam que 86,1% dos brasileiros acreditam que uma família com fome, ao ser abordada por um candidato que lhe ofereça uma cesta básica, irá aceitar a oferta e votar no candidato.

Quem já teve a oportunidade de percorrer os corredores de uma Assembléia Legislativa (em qualquer estado) pode constatar com que freqüência pessoas esperam em filas nos gabinetes por um contato para resolver um problema individual.

A partir de um trabalho realizado pelo Núcleo de Comunicação Política da UFPR, sobre a escolha do eleitor para deputado estadual nas últimas eleições, foi possível constatar que para um segmento da população, o momento do pleito é a hora do ajuste de contas. Eles tendem a premiar os deputados que fizeram e a punir os que não fizeram, e o critério de avaliação nesse caso tende mais para práticas clientelistas do que para universalistas.

Por fim, dados da pesquisa Eseb ainda apontam que apenas 7,5% da população brasileira vêem o partido como o principal aspecto a ser considerado na hora da decisão do voto para deputado federal e 7,9% têm tal postura em relação à escolha para deputado estadual.

Diante da realidade cultural, podemos pensar que com a adoção da lista flexível possivelmente um grande segmento dos eleitores continuarão a votar nos indivíduos. A cultura do apego a programas programáticos partidários ainda não é uma realidade para a grande maioria da população. Mas a pergunta que deve ser feita nesse momento é onde se quer chegar. O objetivo é optar por um sistema de lista aberto afinado com a cultura política – clientelista e personalista – ainda que esse venha reforçar antigos vícios ou aceita-se passar por um momento de transição que pode deixar o eleitor um pouco confuso a princípio, mas que pode atenuar certos vícios políticos? A lista flexível está entre uma coisa e outra, podendo ser adequada para a transição cultural.

Luciana Fernandes Veiga é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR.

Um comentário:

Adriano Codato disse...

Luciana, apenas para polemizar (visto que o negócio não mudou): você menciona que a lista flexível seria mais eficiente para uma cultura política democrática pois ela se orientaria por "programas programáticos partidários", ao invés do personalismo clientelista. Mas, conforme sabemos, os tais "programas programáticos partidários" não são só para inglês ver? Os "programas programáticos partidários" não são elaborados, como você ensina, por estrategistas de campanhas? Todo o problema nào está, na verdade, em mecanismos não eleitorais de controle da representação? Pergunto: no modelo de lista fechada ou flexível, o representante seria responsável perante o eleitor ou perante a máquina/oligarquia partidária?