Notas sobre como analisar a taxação de capital especulativo
Por Lucas Massimo
25/10/2009
25/10/2009
A oposição essência versus aparência no conjunto da obra de Karl Marx é freqüentemente tomada como uma oposição do tipo verdadeiro versus falso: o que acontece no mundo sensorial, aparente é um falseamento do que acontece no plano do concreto, do real. Certamente, não é assim que Marx lidava com a mesma idéia – e note-se, essa afirmação não está fundamentada numa inferência psicanalítica, sobre como o cara pensava, não, isso está no 18 Brumário, basta ler: a oposição essência x aparência reporta-nos a um teatro, onde o que aparece é o que esta no palco (o proscênio), e a essência é aquilo que, pensando de forma rigorosa, NÃO APARECE, ou seja, é o que fica nos bastidores. Quem quiser entender o binômio de essência x aparência como sinônimo de falseamento, como VxF, deve ler a crítica de Cícero Araujo a Armando Boito Junior que foi publicada aqui (clique); quem quiser se familiarizar com a oposição essência x aparência sem a idéia de falseamento, deve ler o artigo do Adriano Codato que foi publicado aqui (clique).
Tanto um como outro não são acessíveis para quem não é cientista.
Eu puxei esse ponto para mostrar como se deve entender a decisão do ministério da fazenda em taxar a entrada de capital especulativo que passou a vigorar essa semana. Durante os anos 90 um consenso religioso orientou o debate acerca do controle a taxação dos movimentos dos fluxos de capitais pelo mundo. Segundo o fulcro desse argumento, a taxação não pode ser sequer cogitada porque ela não faz sentido quando se acredita na preponderância do mercado como mecanismo para distribuição dos recursos entre os agentes: ao taxar os fluxos de capital, o aparelho estatal põe o dedo numa seara que não lhe é particular, ele modifica as condições do cálculo racional que permite aos atores maximizarem suas utilidades individuais, e ao fazê-lo promovem o bem da sociedade burguesa em geral.
Mas o que o primeiro parágrafo tem a ver com o terceiro? É muito simples: sem a noção de essência x aparência como palco x bastidores não se compreende a relação articulada entre a regulação política e a clivagem de interesses econômicos; o motivo deste post é afirmar que essa decisão significa um balanço, um tremor na hegemonia que o capital financeiro exerce sobre o capital industrial no capitalismo periférico que se pratica no Brasil. Rendendo-me a pretensão de explicar tudo sobre tudo e de maneira organizada, permito-me indicar minhas referências: Florestan Fernandes, Celso Furtado, Chico de Oliveira e João Manuel Cardoso de Mello para entender a situação periférica, Armando Boito Junior, Nicos Poulantzas e escola da regulação para entender o predomínio da finança, e Adriano Codato para entender essa versão do binômio essência versus aparência no 18 Brumário.
Ao taxar a entrada de capital especulativo o governo acena que sua convicção quanto à capacidade do mercado em produzir utilidade coletiva não é mais tão solida; essa IDÉIA é imprescindível no conjunto de circunstancias que sustentam a prevalência do capital financeiro em nível global. Tal prevalência não aparece na conjuntura que redundou decisão do ministério da fazenda brasileiro, mas isso não significa que a estrutura foi alheia a ela.
Eu enfatizei algumas conseqüências dessa decisão do ponto de vista ideológico, mas acho que é importante frisar que as conseqüências no plano da economia – é bastante razoável pensar em uma queda na cotação do dólar, o que azeita a competitividade dos jatinhos da Embraer – são muito mais abrangentes, tanto como o são as conseqüências políticas da decisão – o chairman do IMF já fez valer um comentário a respeito da política brasileira. Num plano ou noutro, temos uma importante distinção face ao fundamentalismo com o qual a ekipekonômica do governo FHC lidava com a questão. Mas essa é outra história, e ficará para outro post.
12 comentários:
Lucas, é nessa linha mesmo que passamos mais de 5 horas discutindo isso em BH. Mas eu vou copiar a parte do cálculo racional.
"...ele modifica as condições do cálculo racional que permite aos atores maximizarem suas utilidades individuais....".
Isso está no mundo das práticas ou não?
Ps: vou guardar esse trecho no meu computador! Hehehe.
Bruno é isso mesmo, ali a reflexão se direciona para o nível das práticas.
Valeu pela dica de colocar a reflexão no blog!
Abs
LM
Diferentemente do que se afirmou, no final na década de 1990, sobretudo após a crise da Rússia, foram apresentadas propostas para taxar o capital financeiro, bem como reformar as organizações econômicas, como o FMI e o Bird.
Em 1999 na Itália na conferência "O Governo Progressista para o Século 21", FHC retomou a recorrente proposta de regular e taxar o fluxo internacional de capitais.
A proposta foi mal recebida naquele momento por três líderes mundiais: Bill Clinton, presidente dos EUA, o primeiro-ministro alemão Gerhard Schroeder e primeiro-ministro da Inglaterra Tony Blair. Faltou o impulso da realidade econômica.
Ao atribuir a adoção da taxa à vontade do governo, você se contradisse. Por que Lula não fez isto antes? Por que o juro básico foi baixado só em 2008? Por que, até dois anos atrás, a meta de superavit primário estava em nível superior ao do governo FHC?
Como as ideias orientadas para o mercado se transformaram em política econômica na década de 1990? Como a crise atual resgatou o papel do Estado na economia?
A história não acabou. Foi apenas um ciclo que se completou. A década de 30 enterrou a ideia de "mão invisível" do mercado. Foi significante reler o prefácio do livro de Keynes. O mesmo debate, as mesmas críticas ao liberalismo. Quatro décadas depois, o keynesianismo é sepultado pelos monetaristas. E o monetarismo reina por quatro décadas. Com a crise de 2008, o debate regressa ao ponto de partida. E um novo ciclo se inicia.
Enfim, faltou tecer o fio, isto é, ligar ideias e realidade.
ADRIANO CODATO "Contra a autonomia da política, das suas leis exclusivas e dos seus movimentos próprios, o recurso marxiano por excelência consiste em tecer o fio que liga as instituições (políticas) e as representações (ideológicas) à realidade econômica, isto é, às contradições da vida material".
Celso, onde está a especificidade do político em seu argumento? A crer nele, não há diferenças entre governos e nos resta aguardar as determinações cíclicas da economia, correto?
Celso
Suas considerações são pertinentes, mas creio que há algumas proposições exageradas. O título do post é inequívoco: notas sobre como analisar a taxação. Ora, eu não pretendi ter explicado a dita cuja, por isso não precisei me perguntar acerca do contexto que presidiu sua implantação, o que me conduz ao seguinte problema: onde está a contradição (um), e de que tipo seria ela (dois)? Veja, eu não poderia encampar sua crítica porque há uma distinção que precede a decisão política, a distinção entre Estado e Governo. No marco teórico marxiano, essa é uma distinção imprescindível para compreender a cena política; quando eu penso a respeito da taxação de capital eu penso na reorganização de instituições de político-econômicas que, a partir de um novo arranjo de dispositivos constitucionais, produzirá um novo tipo de regulação econômica.
De fato, faltou fazer a ligação, mas essa não é a crítica, já que, como ficou expresso no texto, eu recuso-me a explicar tudo sobre tudo e de maneira organizada; eu lamento retomar o texto, mas preciso esclarecer-lhe que está não é uma proposição retórica, muito pelo contrário, nela eu informo o meu leitor que estou pensando em um momento que precede a análise do concreto, estou pensando em, mais uma vez, como analisar essa decisão.
Eu acho que a crítica ao meu argumento (traduzir a decisão política pelo binômio essência x aparência) consiste em fazer sempre a avaliação a posteriori, ou seja, dado um determinado arranjo de aparelhos, cumpre ao analista explicitar os interesses de classe na decisão política. Penso que a crítica vai nessa direção, ou de forma mais precisa, ela se situa nesse nível de abstração. Na minha leitura suas considerações são pertinentes, porém elas estão num momento seguinte ao meu, então não acho que, efetivamente, tenha sido realizado o contraditório.
Luiz
Estou aceitando os termos propostos por Lucas. Se fôssemos debater o que é específico da política, a discussão tomaria outro rumo.
Lucas
Não entendi a resposta. Foram feitas observações. Só isto.
Você disse que "nos anos 90 um consenso religioso orientou o debate acerca do controle a taxação dos movimentos dos fluxos de capitais pelo mundo".
Lembrei que a taxa Tobin e o controle sobre o movimento do capital financeiro foram ideias que permearam o debate econômico na década de 1990, em face das crises na Asia, na Argentina e na Rússia. Foi a agenda perdida.
Você disse: "Ao taxar a entrada de capital especulativo o governo [do PT] acena que sua convicção quanto à capacidade do mercado em produzir utilidade coletiva não é mais tão sólida..."
Ponderei que a taxação foi adotada neste momento porque a atual crise da economia tornou essa medida possível. A realidade econômica tem influência sobre as decisões que os governos tomam.
Recordei ações do governo Lula em sentido favorável aos preceitos do mercado: concessão de autonomia ao Banco Central, meta elevada de superávit primário, observância à Lei de Responsabilidade Fiscal. Isto é um paradoxo. O presidente foi eleito pelo Partido dos Trabalhadores, cuja origem e trajetória são bem conhecidas.
Você disse: "fundamentalismo com o qual a ekipekonômica do governo FHC lidava com a questão".
Contraargumentei que FHC foi favorável à taxação e regulamentação do mercado financeiro. De fato, o governo tucano privatizou empresas estatais, quebrou monopólios e expandiu o mercado. Em contrapartida, o mesmo governo instituiu agências reguladoras em setores-chave da economia. Isto, para citar um exemplo, destoa do fundamentalismo de mercado.
Você afirmou que tem "a pretensão de explicar tudo sobre tudo e de maneira organizada". Acreditando nisto, formulei algumas perguntas a serem respondidas.
A taxação do capital financeiro, até este momento, teve um efeito modesto. O índice Bovespa, de fato, registrou queda. Por outro lado, os especuladores têm como alternativas mercados que não cobram taxa. Para os investidores de médio e longo prazo, o IOF será contabilizado como custo operacional, um dos fatores avaliados no momento de investir.
A crítica que faço - agora sim - é quanto à falta de clareza do texto, que dificulta o entendimento dos leitores.
Celso, nosso debate não se fechou. A sua posição é essa: economia enquanto determinante ou não? Com relação ao fecho do Lucas, eu concordo completamente, ainda há resposta ali para dizer e de forma mais propositiva.
Esqueci de dizer, Celso. Em sua resposta há uma dose de posição. A resposta do Lucas foi tangencial em igual medida da sua intervenção anterior. Portanto, estamos perdendo o fio "partidos > cargos > políticas"
e há um vacuo de conversa aqui.
Luiz
O que você propõe discutir merece postagem com comentários. Fica em aberto, por enquanto. Não afirmei que a economia é determinante.
Chamei a atenção para que: 1) há uma crise econômica e cíclica em curso, embora isto nem sequer conste das Notas; 2) a afirmação de que o governo FHC professou o "fundamentalismo de mercado" pode ser relativizada com a apresentação do contraditório; 3) governo e Estado estão sendo interpretados como se fossem uma entidade.
Pessoal, Vai o coment em duas partes.
Celso, obrigado, de fato, o texto não ficou claro.
O verbo render ali é dúbio; o sentido que eu procurei expressar é “por de lado”, e não “submeter”, logo, eu não tenho a pretensão de falar tudo sobre tudo e de forma organizada. Você tem razão em fazer essa observação.
Luiz e Celso
Eu tangenciei o tema porque o Celso traz ao debate as hipóteses que eu levanto para pensar (veja bem, pensar, não “testar”) a minha tese. Já que a tese não está em questão, vou comentar o que vocês trazem a partir dessas hipóteses. Creio que posso resumir as considerações do Celso em dois temas, o tempo da taxação no governo Lula (porque agora e não antes), e a diferença entre os dois governos que se pode derivar dessa medida.
1. Celso, meu palpite é que estamos diante de um falso debate: você afirma que a medida foi tomada agora porque a conjuntura internacional assim permitiu e não porque o governo do PT seja contra o mercado. Ora, porque essas duas idéias são contraditórias? Eu vejo essas duas posições de maneira complementar, da seguinte maneira: o governo do PT implementou uma política econômica que permitiu acumular reservas em dólar; a entrada de capital de curto prazo valoriza o real frente ao dólar; o Banco Central fica mais pobre, porque o real se valoriza e as reservas diminuem. Como evitar isso? Desestimulando a entrada de capital de curto prazo. O que isso diz a respeito da crença do governo petista no mercado? Absolutamente Nada.
O governo do PT acredita menos no mercado por outro motivo: ele concebe mobilizar instrumentos cujo princípio é “o mercado não é necessariamente mais eficiente ao distribuir recursos”. Porque esse INSTRUMENTO foi utilizado agora? Por conta de uma conjugação de fatores locais e globais (retomada da volatilidade/liquidez global+ reservas do Bacen+taxas de juros aqui praticadas, etc).
2. Quanto à diferença entre os governos FHC e Lula, aí sim eu creio que temos um debate. Eu afirmo que essa medida revela uma diferença ideológica fundamental quanto ao grau em que os policy makers acreditam numa idéia (o mercado como mecanismo de produção de utilidade coletiva), e você contrapõe a isso (1) a crença do presidente-sociólogo na validade dos controles de capital e (2) o modelo das agências reguladoras (esse segundo tópico você levantou agora).
Começo pelo mais fácil: Celso, o modelo de regulação por agências é um aspecto central no capitalismo neoliberal porque pressupõe que os bens públicos devem ter a sua oferta regulada por critérios técnicos, ou seja, não políticos. Isso explica a política da ANAC em Congonhas.
CONTINUAÇÃO
A crença de FHC neste princípio (taxação de capital); Celso e Luiz, eu me permito abstrair um pouco para fazer o debate forte no argumento teórico e rigoroso ao pensar o concreto. A distinção aqui é entre Estado (conjunto de instituições) e Governo (conjunto de pessoas). FHC foi um dos arquitetos de uma reforma no Estado Brasileiro implementada durante os anos 1990. Isso significa que suas decisões e não decisões produziram um escalonamento das instituições política pelo qual a vontade do presidente em taxar o controle de capital (não discordo quanto a isso) conta pouco, ou não conta. Segundo esse ordenamento, o COPOM está no vértice de um feixe de instituições que produzem política econômica, e que submete todos os demais ramos do aparelho de Estado. A presidência está numa posição privilegiada no sistema estatal, sem dúvida, mas ainda assim num patamar inferior ao COPOM; por isso que é irrelevante a crença de FHC quanto aos controles na movimentação de capitais de curto prazo.
Luiz: eu receio que a linha de raciocínio [Partido>Cargo>Política] não seja compatível com a distinção Estado x Governo; digo isso porque “Cargo”, nesse raciocínio, seria Estado, é uma atribuição funcional. “Partido” seria governo, ou seja, é um mecanismo como se constitui o conjunto de pessoas. E “Política” é a combinação das duas coisas, ou melhor, é o resultado objetivo, é a regulação da atividade econômica.
Como inserir o interesse de classe nessa linha de raciocínio? Pela via do “Partido”? É possível, mas eu prefiro pensar que há um pré-requisito IDEOLÓGICO que deve ser atendido para exercer a função “COPOM”, em outras palavras, há um nexo ideológico entre os agentes que ocupam os aparelhos econômicos do Estado e os gestores que respondem pelos capitais especulativos. Esse nexo ideológico tem a sua contrapartida empírica: nos anos 2000 os dois presidentes do Bacen (Armínio e Meireles) foram recrutados como operadores de fundos que gerenciam capitais especulativos (George Soros e BankBoston respectivamente).
O Estado é Neoliberal porque a disposição das instituições atende a um modelo calcado sobre o superávit primário, o câmbio flutuante e as metas de inflação. O governo que assume terá de trabalhar nesses parâmetros; mas ele não é puramente determinado pela estrutura. A focalização das políticas sociais é central na agenda neoliberal (contrapõe-se ao universalismo do Welfare State). Este princípio neoliberal assumiu um formato institucional com o programa Bolsa Família; vocês fazem idéia do custo político que qualquer governo vai pagar para modificar esse programa? Será tão “paradoxal” ver um governo de direita operando o Bolsa Família quanto o é ver um governo de esquerda pagando o superávit primário. Eu usei o termo paradoxal entre aspas para me contrapor ao Celso: na verdade, a distinção Estado e Governo explica isso, portanto não é paradoxo.
Essa explicação está incompleta porque fala pouco, e de forma indireta (porque derivada) sobre o interesse econômico das classes sociais – isso muda tanto quanto o governo. Mas o coment já está muito longo, e se o debate continuar bom, quem sabe possamos publicá-lo como um post. Fica a sugestão.
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