sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ações afirmativas como armação ideológica?

[Rogério Reis.
Rio, 1991]


Folha de S. Paulo
26 set. 2009

Crítica/"Uma Gota de Sangue"

Magnoli faz livro de combate contra cotas
MARCELO LEITE
Colunista da Folha


Não se iluda o leitor com o título da obra. O livro do geógrafo e colunista Demétrio Magnoli não é um compêndio. Trata-se de um texto de intervenção no debate brasileiro sobre cotas raciais.

Seu mérito maior é ter muito menos defeitos que o best-seller "Nós Não Somos Racistas", do jornalista Ali Kamel. A tese é a mesma: as ações afirmativas e o movimento negro resultam de uma armação ideológica. Ela conspira contra o princípio da igualdade perante a lei, contra a ideia de nação e, no caso brasileiro, contra seu generoso mito fundacional, a mestiçagem.

É uma tese boa de briga. Toma partido da sociologia de Gilberto Freyre, em sua oposição com a escola de Florestan Fernandes. Até Barack Obama entra nessa capoeira, como mestiço vingador na pátria da dicotomia entre brancos e negros. Kamel e Magnoli prestam um serviço ao debate insistindo na denúncia da prestidigitação estatística que apagou diferenças entres pardos (mestiços) e pretos, juntando-os na categoria binomial de "negros". Se funciona mal nos Estados Unidos, ainda pior no Brasil.

Magnoli é academicamente mais cuidadoso. O leitor terá de procurar bastante até encontrar passagens tão definitivas e duvidosas sobre o caráter nacional quanto esta: "No Brasil, [...] a fronteira racial não existe na consciência das pessoas" (pág. 366).

Digressões histórico-geográficas sobrecarregam um tanto a leitura com exemplos de países, instituições, movimentos e autores que comprovariam a tese. As partes três e quatro, por exemplo, poderiam ser saltadas sem prejuízo para o fulcro do debate brasileiro.
Seria uma perda pular, contudo, a reconstituição do papel da Fundação Ford na disseminação mundial das ideias "multiculturalistas", chave do esquema interpretativo de Magnoli. É o ponto alto do volume. É, também, o que mais deixa vontade de entender melhor o que possa estar por trás da conspiração denunciada. Fica a impressão de que se trata de minar os movimentos sociais, segmentando-o em demandas identitárias estanques (etnias, gênero, orientação sexual etc.).

Permanece enigmático, porém, por que tal agenda foi encampada nos Estados Unidos tanto por republicanos quanto por democratas. Não se examina a fundo a hipótese de que seja uma tentativa de responder a demanda social legítima: enfrentar iniquidades que não se dissolvem diante do princípio da igualdade.

Não se busque neste livro de combate a propalada generosidade da mestiçagem. Para Magnoli, políticas racialistas ressuscitam o racismo e, em essência, não diferem das políticas do nazismo e do apartheid. Pouco importa se de um lado está o sujeito do preconceito e, de outro, seu objeto -a crença em raças os irmana.

Não há e não pode haver aperfeiçoamento das ações afirmativas. Aos pardos e pretos pobres de hoje, no Brasil, sob o fardo extra de descender mais obviamente de escravos, resta a esperança de que um dia a nação brasileira cumpra a promessa de dar oportunidades iguais para todos -seja em que geração for.
.

20 comentários:

Giovana disse...

Me impressiona como esses intelectuais evitam fazer uma sociologia - ou uma auto-análise mínimas - de si próprios e do que dizem. Geralmente seu conforto os leva a não compreenderem a relevância de demandas - urgentes - de movimentos sociais pontuais. Bem pontuado por Marcelo Leite: nessa perspectiva, parcelas da população pagam o preço por manter simbolicamente intacta a idéia de "harmonia racial da nação brasileira".

Esvaziar essas demandas do seu teor emancipatório, porque especificas e pretensamente fragmentadas e seja lá por quem financiadas, nada mais é do que um refinamento de um tipo de ainda mais perverso de racismo, se é que é possível: aquele que rejeita em origem a legitimidade da formulação de interesses de grupos específicos, sob o pretexto da manutenção de abstrações
que pouco ou nada têm de material, a não ser atuar como sustentáculos históricos da desigualdade .

Anônimo disse...

Bem colocado, Giovanna. Mas, vem cá, é possivel que a gente continue chamando mais de metade da populacao brasileira de 'grupos especificos'???

Luiz Domingos disse...

No domingo (4-10-09) o autor do livro foi 'entrevistado' no programa Canal Livre, da tv Bandeirantes. Está disponível no youtube e pode-se perceber como a ideologia da "harmonia racial" é defendida não apenas como verdade, mas como única posição possível no debate, sob o risco de, não estando ao seu lado, só se pode ser burro, totalitário ou mal intencionado. Ridicularizar a demanda é o caminho mais prático para derrubá-la.

Celso Roma disse...

O Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestará em breve sobre a constitucionalidade da adoção de cotas raciais para o acesso a universidades públicas. Se o Pleno do STF cumprir a Constituição de 1988, julgará inconstitucional. Já existem leis para punir o racismo, que constitui, do ponto de vista moral e legal, um comportamento repugnante. Antes de criticar o livro, é preciso lê-lo, entender e debater os seus argumentos. Embora tenha errado ao se esconder, o Anônimo disse algo substantivo: como considerar "grupos específicos" a maioria da população? Sou a favor da adoção de cotas sociais como forma de dar oportunidade aos desfavorecidos, sejam eles brancos, negros, pardos, amarelos e suas variantes.

Celso Roma disse...

A Câmara dos Deputados aprovou ontem o Estatuto da Igualdade Racial, que representa um avanço em relação ao resgate da história das minorias no Brasil. O Senado vai se manifestar sobre a redação final do Estatuto. Depois disso, o presidente da República pode sancioná-lo ou vetá-lo.
Embora os extremistas do movimento negro estejam insatisfeitos, o Estatuto pretende corrigir o passado de injustiça, com a aprovação de matérias para ensinar a contribuição das minorias para a História do País, com incentivos fiscais a políticas de inclusão praticadas pelas empresas, com a proibição de exigência de foto e "boa aparência" por parte dos empregadores, com o estabelecimento da cota de 10% nos partidos.
Foram retirados do texto os pontos considerados extremistas, entre eles, a imposição de cotas raciais no acesso ao mercado de trabalho, a identificação dos estudantes pela cor da pele no Censo Escolar.
Várias decisões da Justiça em primeira instância já condenaram o acesso na universidade via cota racial. O STF precisa se manifestar em caráter definitivo sobre o mérito do assunto.
Radicalizar não é o melhor caminho para se combater a desigualdade social no Brasil.

Adriano Codato disse...

vamos combinar o seguinte (como dizem os cariocas): quando algum pobre, preto e "excluído" afirmar que há harmonia racial, que no Brasil há tolerância, que o racismo aqui é duave etc., a gente começa a levar a sério os argumentos dos anticotas.

Luiz Domingos disse...

Mas as cotas raciais são um extremismo? Os inúmeros relatórios educacionais e econômicos relatam dados gritantes sobre o acesso dos pobres-negros ao ensino superior. As duas variáveis cruzadas (cor da pele e situação econômica) apontam para níveis abissais de desigualdade entre os pobres brancos e pobres negros - de onde emerge que a cor da pele excluí, sim. Transcrevo um trecho de um artigo de Marenco dos Santos já publicado neste blog, que é bastante completo:

"A probabilidade de um branco ingressar na universidade é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de violência e criminalidade, enquando nossa classe média vive seu Baile da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual."

As cotas sociais colocam na mesma vala indivíduos com posições de saída desiguais, continuando a tratar o problema como se fosse causado por desigualdade econômica estrutural, sem o corte de raça/cor. Este corte é causador da desigualdade. É tergiversar sobre o problema, sem dúvida. Bem como os argumentos contrários que evocam a qualidade do ensino e sobre o racismo às avessas. Porque utilizar o argumento da qualidade do ensino é colocar as consequencias como único ponto a se ressaltar (e ignora as pesquisas que as universidades têm feito com os cotistas, afirmando que eles conseguem ter desempenho igual ou superior aos não cotistas). Assim como o argumento do racismo às avessas, que é antropologicamente honesto, também nega qualquer possibilidade pedagógica de afirmação da diferença e de marcação de identidades.


E, sobretudo, não se pode anuir com o argumento de que o STF se manifestado, é ponto para a Constituição e o suficiente para ocupar-nos de outra coisa: mudam a Constituição para tudo, menos para consertar injustiças fundamentais da sociedade. Em 1993 qualquer transação (compras, fusão) entre grandes corporações seria proibida no país, e trataram de "adaptar" a Constituição aos "novos tempos", e o STF não é chamado. Não é preciso ir muito além para achar essa ingerência excessiva e confirmar a covardia dos partidos e do parlamento, basta vermos o caso da fidelidade partidária.

Celso Roma disse...

De fato, os cotistas não são levados a sério. Se tivessem bons argumentos, teriam convencido a maioria dos congressistas e dos juristas do País.
Queiram ou não, no Brasil, há miscigenação e harmonia racial. A realidade é mais forte que números mal interpretados e argumentos vazios. A desigualdade social opera por mecanismos mais complexos. Reler Florestan Fernandes.
A minoria raivosa quer se impor à vontade da maioria e menosprezar as instituições democráticas.

Renato disse...

Meus caros, evidentemente, quando se fala em "minorias" não se está enfatizando o aspecto númerico da coisa. Mas há outro ponto mais importante: o autor diz que "não há consciência de raça no Brasil". Segundo o IBGE, contudo, os bens sociais (saúde, média de vida, renda, escolaridade) são distribuidos desigualmente no Brasil há décadas e, também há décadas, os negros SISTEMATICAMENTE
ocupam a base da pirâmide. Portanto, como a distribuição da desigualdade não é aleatória e nem é produzida por uma máquina que funciona no piloto automático, alguém, imagino eu, deve diferenciar negros de não-negros na hora de distribuir tais bens. O que se pretende é (re)produzir um silêncio sobre o assunto que, desde sempre, beneficia alguns em detrimento de outros. Outro ponto de vista normativo que eu gostaria que os anti-cotas explicassem: por que não expor/radicalizar os conflitos?

Luiz Domingos disse...

Ora, Celso,
se os argumentos fossem tão ruins, as universidades não teriam começado o movimento na direção das cotas raciais, pois é o local no qual o debate chegou a patamares minimamente claros. Esperar que a maioria dos congressistas encampem qualquer reforma com base em argumentos é fechar os olhos para a política real e crer que eles sejam o homem bom de Rousseau.

Ademais, onde a harmonia racial se confunde com direitos e oportunidades iguais (já que não se discorda que as oportunidades são distintas)? Não é porque brancos e negros jogam futebol juntos que iremos acreditar, tal como o Da Matta, que esta caricatura encerra tudo o que se passa entre o céu e a terra do país. Afinal, negro continua sendo jogador de bola, uma carreira que termina aos 35 e depois sequer viram comentaristas e televisão.

Adriano Codato disse...

"Queiram ou não, no Brasil, há miscigenação e harmonia racial."
Como assim, Celso?
Ao invés do tom professoral e arrogante, você deveria nos ensinar o que uma coisa tem a ver com a outra, ou melhor: porque o fato "miscigenação" IMPLICA no fato "hamonia racial"? QUALQUER PESSOA NÃO BRANCA É VÍTIMA DE PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO NO BRASIL. Faça a experiência: pergunte à sua mucama ao invés de vir me dar aulas de sociologia por correspondência. Se vc achar a experiência empírica demais acesse os dados na Internet. Talvez vc branco como eu como eu não saiba que cor faz parte do jogo permanente das representações sociais, definindo sim oportunidades desiguais.
Um dos problemas dos defendores abstratos da igualdade abstrata são justamente essas manobras retóricas: igualdade racial significa falar em raça; ora quem fala em "raça" é racista; logo, pau neles. Este é, meu caro, o resumo acabado do livro do Demétrio Magnoli. E olhe que eu o li, as duzentas e tantas páginas, em pé e no aeroporto. Essa mesma idéia é repetida como numa ladainha. Portanto, mesmo eu entendi.
Outra tolice, que seu tom professoral e condescendente revela, é a sugestão, óbvia, que "A desigualdade social opera por mecanismos mais complexos". Obrigado. Não sabia...
Pois bem, complexos ou simples, A COR DA PELE DA PESSOA (que só um sujeito muito vulgar e de ma fé como o Demétrio Magnoli pode igualar a "RAÇA", visto que existe uma Estatauto da Raça etc.) não seria um dos fatores da sua engenharia explicativa?
Depois, porque supor que os favoráveis às cotas "raciais" desconhecem que a reprodução das desigualdades NÃO pode ser explicada pela simples existência de categorizações de base racial?
Por último, porque a sua arrogância me encheu o saco: desça, por favor, à portaria do seu prédio; procure a zeladora ou a faxineira; pergunte se ela tem uma filha ou filho de 18, 19 anos. Pergunte se ele/ela quer estudar na USP. Caso sim, sugira que eles façam o vestibular e suba de volta para o conforto do seu apartamento. Aí podemos continuar debatendo. Eu no conforto do meu e vc no seu. Enquanto os pretos esperam que o Brasil melhore.
p.s.: talvez você não desconfie, mas eu também tenho diploma de Ciências Sociais. Então fiz o que você me mandou. Fui ler o Florestan. Esse texto: FERNANDES, Florestan. (1955) A luta contra o preconceito de cor. In: FERNANDES, F. & BASTIDE, R. (orgs.). Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo. São Paulo, Unesco-Anhembi, p. 193-226. E não é que ele fala o OPOSTO do que os advogados brancos da harmonia racial imaginam...
Para uma atualização do debate, quem ler este comentário ganharia se lesse alguém muito mais sabido que eu no assunto: GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Rev. Antropol., São Paulo, v. 47, n. 1, 2004 .

Celso Roma disse...

A frase não expressa tom professoral nem arrogante. Esses adjetivos sempre são evocados para desqualificar os interlocutores, em especial aqueles que afirmam o contrário daquilo que acreditamos. Os manuais, além de condenarem o uso da “falácia da autoridade” para intimidar os debatedores, recomendam que os argumentos sejam avaliados pelo critério de consistência e veracidade.
Estou plenamente de acordo com o argumento de que o Brasil é caracterizado pela miscigenação e a harmonia racial. Isto não quer dizer que não há racismo. O racismo existe e é um dos fatores da desigualdade social no país, assim como gênero, tradição etc. Embora atinja em maior proporção pessoas definidas como “negras” na pesquisa do IBGE, a pobreza extrapola a fronteira desse grupo. Há milhões de pobres “brancos”.
Quem defende cota social está amparado numa visão ampla do problema. Pelo critério social, o estudante pobre, seja ele “branco”, “negro” ou “pardo”, teria incentivo para cursar a universidade; um estudante “negro” não teria o benefício se a família dele conseguiu ascender economicamente. O critério deve ser a situação econômica da família. Quem defende cota racial se limita a um aspecto da pobreza.
As políticas afirmativas, em vez de serem copiadas de outros países, deveriam ser adequadas ao contexto brasileiro. Há um intenso debate nos EUA sobre a eficácia (melhor dizendo, a ineficácia) da adoção da política de cotas raciais.
Radicalizar a questão do racismo interessa aos radicais de ambos os lados. Dos racistas que rejeitam a criminalização do racismo e a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial aos extremistas do movimento negro que pretendem dividir a sociedade e fomentar o ódio. Houve um avanço considerável nos últimos anos. O primeiro grupo rejeita as conquistas, enquanto outro grupo as menospreza.
Demétrio Magnoli, longe de revelar a verdade, aborda em seu livro "Uma gota de sangue" o outro lado da história. Sugeri a leitura do livro para os críticos em geral. Não citei ninguém em particular. Mesmo assim, vestiram a carapuça.
Se meu comentário soar como lição de Sociologia, que assim seja! Não era minha pretensão. Mas às vezes nos subestimamos.

Bruno Bolognesi disse...

Caríssimi,

O que eu não entendo é a argumentação anti-cota. Ora, se os efeitos das cotas não são perniciosos e se não há problema racial no Brasil, deixem as cotas em paz. De certo nenhum preto irá tentar entrar por elas, já que ele se não se considera excluído, mas sim um elo harmônico da desigualdade social.

Mais do que isso, discutir o efeito imediato sobre a consistência e eficácia das cotas é um erro sociológico imenso. Não se espera que a pobreza seja sanada no prazo de 10 anos com a adoção de cotas, mas o poder simbólico (e a intersecção entre duas condições: preto+pobre) que as cotas irão possuir a longo prazo é incomensurável.

Para além do acesso a determinados benefícios sociais e civis, é preciso enxxergar mais adiante, na diferença expressiva que teremos quando a proporção de professores "mestiços" for equivalente à populacional.

Abçs

Giovana Bonamim disse...

Exatamente, Bruno.

Cabe ressaltar que efeito simbólico já é notável, antes mesmo de se considerar a futura trajetória de alunos provenientes de cotas rumo à docência e seu impacto.

Os efeitos da mudança - ainda que mínima - no padrão da origem social dos jovens pesquisadores podem ser verificados na emergência de novos objetos e perspectivas de pesquisa e estudo.

Isso é visível no curto prazo nas universidades que adotaram o sistema de cotas, o que já tem um impacto simbólico imenso.

Por meio da presença e da atuação de pesquisadores oriundos de cotas sociais, a produção do conhecimento nas universidades deixa de ser imune a alguns dilemas erroneamente considerados encerrados.

Isso já faz valer a iniciativa.

Unknown disse...

Quando o Celso diz que "Se tivessem bons argumentos, teriam convencido a maioria dos congressistas e dos juristas do País.", esquece de um fator essencial à questao, pois, esses mesmos juristas e congressistas náo sáo, em sua absolutíssima maioria, negros... afinal, e aí cabe o questionamento sobre a existência fática dessa "harmonia racial", os negros náo estáo entre quem dirige, julga e faz as leis no nosso país.

A pergunta que me faço e que gostaria de trazer para o debate é a seguinte: o negro que ascende socialmente no Brasil, deixa de sofrer preconceito? Deixa de ser discriminado? Será que Milton Santos, intelectual, professor honoris em inúmeras Universidades, náo sofria preconceito, uma vez que “ascendeu”… a questao é sim social, mas o social náo abarca a “complexidade” do problema racial no Brasil..

Unknown disse...

Se os poderes Legislativo e Judiciário fossem tão reacionários assim, não haveria avanço na questão racial ao longo dos últimos anos. Mas houve. Podemos citar, entre outros pontos, a criação da Universidade de Palmares, a criminalização do racismo e o Estatuto da Igualdade Racial.
O Estatuto foi aprovado por unanimidade em uma comissão da Câmara dos Deputados. Não foi necessária votação em plenário. Houve um consenso. Se os pontos polêmicos foram excluídos do projeto, houve razões para isto.
Vamos resumir. A discórdia gira em torno da adoção de cotas raciais para o acesso ao ensino superior público e ao mercado de trabalho.
O que se debate é a legitimidade de um tipo de política afirmativa.
Os Democratas (DEM) entraram com uma ação no STF para questionar a adoção de cotas raciais na UnB. O mérito da questão será avaliado em breve pelo plenário.
O cenário está indefinido. (Uma exceção pode ser o voto de Joaquim Barbosa, adepto e criticado por seu "ativismo no Judiciário"). Não é novidade que os votos dos ministros refletem ideais e interesses. Embora sejam o resultado de uma interpretação particular da lei, os votos serão longos, preenchidos com termos rebuscados, citação de filósofos etc., uma ladainha para dar aparência de isenção e universalidade aos interesses em jogo.
Por exemplo, no ano retrasado, os ministros do STF evocaram a defesa do "pluralismo" para declarar inconstitucional a cláusula de barreira de 3% para os partidos terem acesso às cadeiras das Casas Legislativas.
Alunos prejudicados pelo sistema de cotas conseguiram liminares na Justiça. Cabe ao STF se manifestar como último intérprete da Constituição. O que não pode persistir é a dúvida sobre a constitucionalidade do sistema de cotas raciais.

Bruno Bolognesi disse...

Bom, de fato o que é importa aqui é o real, o fato. Diante disso só quero dizer o seguinte. O fato do plenário ter apoiado em peso o Estatuto da Igualdade Racial reflete o indizível. Ou será que algum político tem coragem de se dizer direita, como os estudos do Celso mostram. Ou seja, o marco é o tema ter chego ao Congresso. Caso não fosse aprovado, como fica a percepção sobre o político? Ou algum político iria aprovar algum PL que desse poder decisório ao Exército?

Renato disse...

Caros,
eu escrevi um longo email, mas acho que deu algum problema. Resumo os meus argumentos (que, espero, sejam bons) a fim de tentar convercer o Celso.

(i) O tema da "harmonia social" é estranho ao debate. Se por "harmonia social" se entende que no Brasil náo há luta racial aberta, concordo inteirmanete com o Celso. No entanto, esse problema nada tem a ver com a política de cotas raciais. Seus defensores não pregam uma vingança racial ou uma demanda para que se suspenda o enformcamento de negros. O que a política de cotas raciais diz é que no Brasil há racismo e que este produz desigualdades sociais sistemáticas, afirmação com a qual concorda o próprio Celso. Pergunto então: se se concorda que há racismo e que ele produz desigualdade, por que não apoiar a política de cotas raciais?

(ii) A resposta poderia ser: eu não discordo do princípio (atenuar as desigualdades provocadas pelo racismo), mas discordo do mecanismo, ou seja, a política de cotas raciais não produz os resultados desejados e aumenta desnecessariamente o conflito. Eu responderia a esse argumento de quatro maneiras: 1) Cotas sociais não atingem o problema da desigualdade racial com a mesma intensidade que as cotas raciais extamente porque não são desenhadas de acordo com esse critério. Sendo assim, não contemplam adequadamente os negros, que, entre os pobres, são os mais pobres exatamente porque são negros; 2) não há qualquer razão lógica ou operacional para pensar essas duas políticas como excludentes (aliás, a esmagadora maioria das federais adotaram ambas); 3) a avaliação da política de cotas raciais tem mostrado que ela é eficiente para mudar a paisagem étnica das universidades (e não apenas nos cursos despretigiados, como ciências sociais e pedagogia) sem prejuízo de desempenho (quanto a esse ponto, políticas de apoio a alunos cotistas têm sido essenciais, como as bolsas permanência); 4) o conflito em torno das cotas raciais é alto porque essa política redefine a distribuição de um bem escasso e altamente valorizado (vagas nas universidades), até hoje monopólio de um setor reduzidissímo da população brasileira. Não se trata de uma defesa da isonomia jurídica(o que exigiria fazer o mesmo barulho, por exemplo, contra a cotas para mulheres nos partidos políticos), mas da defesa de um status quo quanto à distribuição de um bem socialmente valorizado. Essa situação é potencialmente conflitiva. Para que o conflito apareça, basta que os sistematicamente prejudicados passem a lutar para mudar a situação. A política de cotas raciais tem sido, sim, um meio efetivo de redefinir tal distribuição e por isso é tão odiada. A insistência (de inspiração gilbertofreiriana) em negar o conflito apenas contribui, objetivamente, para beneficiar os que sempre ganharam. Seria possível diminuir o conflito em torno da redistribuição das vagas definida pelas cotas raciais aumentando radicalmente o número de vagas, mas isso não tem sido colocado na luta política atual. Apesar de o governo Lula ter dobrado o número de vagas nas federais, isso não compensou a estagnação dos últimos anos.

(iii) Não há nada de inerentemente verdadeiro no meio-termo, assim como não há nada de inerentemente falso nos radicalismos. Chamar os supostos radicais de "minoria raivosa" é também uma forma de desqualificar o adversário (forma, aliás, em conformidade com o que fazem os mais destacados apolegetas da ordem, como a Revista Veja, por exemplo).

Celso Roma disse...

O debate sobre os efeitos da política de cotas raciais no Brasil merece outra postagem. Algumas notícias não têm sido positivas. Ora se questiona a eficácia ora se questiona a legitimidade. Site G1 - Cota racial na Universidade Estadual de Ponta Grossa tem demanda zero; Justiça nega a aluna aprovada por cota racial retorno a universidade federal.

Concordo, no entanto, que faltam estudos para avaliar o impacto da política de cotas raciais no médio e longo prazos. Mesmo porque, a medida foi adotada há poucos anos.

O jornal Estadão resumiu alguns Indicadores Sociais de 2008. O histórico permanece. A desigualdade social opera por diferentes mecanismos, entre eles, "gênero", "idade" e “raça”. Mulheres, crianças e negros são mais vulneráveis do ponto de vista social. Isto não quer dizer, porém, exclusivamente.
MÉDIA DE ANOS DE ESTUDOS NO BRASIL - brancos (9 anos); negros (7,1 anos). A diferença está em 1,9. A situação educacional é problemática para ambos os grupos.
RENDA MÉDIA NO BRASIL – brancos (3,7 salários mínimos mensais) e negros/pardos (2 smm). A pobreza, embora atinja com mais intensidade negros e pardos, define a situação de uma boa parte dos brancos.

http://www.estadao.com.br/especiais/desigualdades-sociais-ainda-sao-desafio,74100.htm

É difícil justificar uma política calcada em apenas uma dimensão da desigualdade social. Por exemplo, 10 vagas por cotas sociais. Uma distribuição hipotética: 5 vagas para negros pobres, 3 vagas para pardos pobres e 2 vagas para brancos pobres. Se a população negra é mais pobre, ela preencheria o maior número de vagas por cota social. Não vejo contradição.

Atualizando o placar do STF. José Antonio Dias Toffoli estará impedido de julgar a matéria, porque, a frente da AGU, se manifestou favoravelmente a ela.

Errei ao utilizar o termo "minoria raivosa". Foi uma resposta ao ataque grosseiro aos meus comentários. Eu deveria ter relevado a provocação.

Renato disse...

Sim, a desigualdade tem vários aspectos. A política de cotas raciais contempla um deles e não é incompatível com outras políticas, como cotas sociais.

A renda dos brancos é quase o dobro das dos negros, segundo os dados apresentados por você.

A sua distribuíção hipotética para cotas sociais não me parece adequada. Quem garante que, automaticamente, o grupo mais pobre - os negros - ocupará uma maior número de vagas? É plausível supor que a sua condição de maior pobreza potencializa ainda mais as desvantagens, dificultando concorrer em condições de igualdade até mesmo com os seus irmãos de pobreza (isto é, menos pobres).

Por fim, discussões operacionais e avaliativas à parte (sempre muito importantes), o que me incomoda é a produção do silência em torno da "raça" no Brasil. Se você concorda que há racismo e que, portanto, pessoas orientam a sua conduta em função da cor da pele dos outros e que isso produz desigualdades, insisto em perguntar: por que não políticas que levem isso em consideração? Por que temer tanto o assunto? A meu ver isso é inclusive contra-producente do ponto de vista da construção de uma sociedade mais harmoniosa (o que, efetivamente, não somos). Como não temos um histórico de violência aberta nessa área (combates raciais), esse tipo de política poderia ser valorizado inclusive pelo seu aspecto simbólico. Como se disséssemos: "a sociedade brasileira reconhece a injustiça histórica e está fazendo algo para repará-la". Seria uma forma de evitar que chegássemos ao ponto que vcs querem evitar pelo silêncio. Creio que os efeitos são, feitas as contas, mais positivos do que negativos.

Por fim, Celso, o exemplo de Ponta Grossa suscita curiosidade. Não sei não, mas creio que não há demanda ali por vagas de cota, entre outras coisas, pelo número reduzido de negros na população da cidade. É uma especulação.