sábado, 26 de setembro de 2009

A política da divergência no Congresso Nacional

[Teatro Nacional, 1988.
Salomon Cytrynowicz.

Pirelli / MASP]


Valor Econômico, 18-20 set. 2009 p. A13
por Celso Roma

Houve um tempo no passado recente do país em que os congressistas agiam de acordo com o perfil ideológico dos seus partidos

De acordo com o senso comum, os partidos políticos da atualidade não têm ideologia. A crença segundo a qual eles são indiferentes aos grandes temas da política é transmitida ao público como uma verdade inquestionável sobre o Congresso Nacional. Isto, no entanto, pode ser questionado considerando-se dois momentos da democracia em curso, a saber: a feitura da Constituição de 1988 e os primeiros quinze anos da nova ordem constitucional. Ainda que seja somente durante esse período, os congressistas marcaram posição sobre os assuntos que estiveram em debate, revelando assim o perfil ideológico dos partidos.

Evidências disto podem ser encontradas, entre outras fontes de informação, nas pesquisas realizadas pelo instituto Datafolha na Câmara dos Deputados e no Senado. As enquetes conduzidas entre 1987 e 2001 perfazem um conjunto de 3.343 entrevistas por meio de questionário. Os parlamentares se posicionaram a respeito do sistema político, das leis que regulam direitos e deveres dos cidadãos e das funções a serem exercidas pelo Estado na economia. Uma análise estatística dos dados permitiu reconhecer os temas que polarizaram os partidos, bem como reconstruir o mapa da ideologia parlamentar.

No Congresso Constituinte, as divergências significativas entre os partidos ocorreram em torno do perfil das instituições políticas então em construção. A direita procurava restringir o grau de abertura da democracia, ao aceitar a presença em plenário de 23 senadores eleitos em 1982 que não receberam mandato específico para participar dos trabalhos constituintes; ao defender que o papel das Forças Armadas continuasse a abranger também a ordem interna e ao apoiar que o mandato do presidente José Sarney durasse mais que quatro anos. A esquerda tentava expandir as conquistas democráticas, seja ampliando o direito de voto para os jovens, seja defendendo a extinção do Senado - adotando-se o unicameralismo - ou propondo que a Constituição fosse submetida a referendo antes de entrar em vigor. Um centro político já podia ser observado, através do consenso ao redor de propostas menos polêmicas, como o direito de voto à baixa oficialidade das Forças Armadas, ou mesmo ao parlamentarismo, mais aceito entre os congressistas que no interior da sociedade.

No início da presente ordem constitucional, a diferença de opinião entre os partidos girou em torno do modelo de política social a ser adotado no país. Embora o diagnóstico sobre a pobreza e a desigualdade fosse o mesmo entre os grupos de parlamentares, a estratégia para combatê-las variava. A esquerda recomendava um sistema de redistribuição no qual a garantia de renda mínima fosse vinculada ao imposto de renda negativo, a reforma agrária se baseasse na desapropriação de terras particulares e os salários fossem corrigidos por um índice maior que o da inflação. O centro e a direita, por sua vez, preferiam um programa de inclusão social que, além de cumprir essa finalidade, resguardasse o direito à propriedade e gerasse menos conflito entre ricos e pobres.

O desacordo entre os partidos emergiu em outras matérias da alçada dos parlamentares. Em 1991, a direita era favorável a antecipar a Revisão Constitucional, marcada para acontecer cinco anos após a promulgação do texto, enquanto o centro e a esquerda rejeitavam essa manobra. Em 1992, diante da denúncia de corrupção e tráfico de influência implicando o presidente Fernando Collor de Mello, a direita ensaiava absolvê-lo; o centro acreditava que ele não somente era culpado mas também não estava respondendo à acusação de um modo satisfatório; a esquerda, além de concordar com essa avaliação, solicitava que o presidente se afastasse do cargo durante a investigação, cujo processo resultou em seu impedimento.

O ano de 1993 ensaiou uma ampla discussão sobre a economia que, no primeiro momento, sinalizou a liberalização do papel do Estado e do mercado, cujo caminho havia sido aberto pelo Plano Real e a empreitada de estabilização monetária. Nessa ocasião se iniciou uma guinada na conjuntura política do país, apoiada por uma aliança de centro-direita costurada para a disputa da eleição presidencial de 1994 e, depois, para a sustentação parlamentar do governo Fernando Henrique Cardoso em dois mandatos consecutivos.



A segunda fase da ordem constitucional compreendeu o período de maior polarização entre os partidos. De um lado, a esquerda bradava as bandeiras do nacionalismo estatizante, seja defendendo que o conceito de empresa de capital nacional fosse mantido na Constituição, seja recusando o investimento externo e a quebra do monopólio da União nos setores do petróleo e das telecomunicações, ou opondo-se categoricamente à privatização de empresas estatais. De outro lado, o centro e a direita se uniam em favor da abertura econômica e da retirada do Estado no papel de empresário, aprovando, para isto se realizar, medidas como a privatização da Telebrás e da Eletrobrás e o estabelecimento de regras que estimulassem a presença de empresas estrangeiras para competirem em igualdade de condição.

O Congresso se revela, em essência, pluripartidário. E os partidos se diferenciam segundo a ideologia, a qual reflete os interesses sociais e econômicos que eles representam. Mas a política da divergência não se restringe ao plano da retórica. As ideias convertidas em programa de governo marcaram a sociedade e a economia.

A conclusão pode ser iluminada por uma passagem de John M. Keynes, extraída do livro A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (Nova Cultural, 1988 (1936), página 251): “Mas, à parte essa disposição de espírito peculiar à época, as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, estejam certas ou erradas, têm mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homens objetivos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Estou convencido de que a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a firme penetração das ideias. (...) Porém, cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.”

Celso Roma é cientista político pela USP.

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