terça-feira, 26 de maio de 2009

O plebiscito como tiro no pé

[Iron Furniture, 1953. Al Fenn]
Celso Roma e Luiz Domingos

O referendo consiste no direito que os cidadãos têm de se manifestar diretamente sobre os assuntos de seu interesse. O plebiscito é a apreciação por voto das matérias submetidas à apreciação dos eleitores.
A consulta popular (que engloba os dois mecanismos acima), embora seja concebida pelos progressistas como um instrumento ideal para tomar decisões, tende a reforçar na prática a posição dos conservadores a respeito de como a sociedade deve se organizar. Isto tem sido atestado por algumas experiências recentes.

Há o referendo das armas realizado em 2005 no Brasil, com uma investida do discurso a favor da posse de armas como meio para defesa da violência urbana.

Entretanto, o caso abaixo, ocorrido na Califórnia, é mais sintomático de como realmente um plebiscito pode prejudicar certas medidas que estavam caminhando para uma implementação gradual no nível político-institucional.

Jornal El Mundo (Espanha) 26/05/2009

O Supremo da Califórnia mantém a proibição de casamentos entre homossexuais

Justiça| A restrição foi aprovada por referendo

"O Supremo Tribunal da Califórnia aprovou nesta terça-feira, por seis votos a um, a proibição dos casamentos entre homossexuais, embora, ao mesmo tempo, reconheceu que os 18.000 casais que formalizaram sua união durante os cinco meses em que ela foi considerada legal poderão manter o seu estado civil.

A emenda, conhecida como “Proposição 8”, foi aprovada por mais de 50% dos votos no plebiscito realizado em 4 de novembro do ano passado. A reforma consistiu basicamente em acrescentar uma frase à Lei Suprema do Estado: “Somente o casamento entre um homem e uma mulher será válido e reconhecido na Califórnia”.

A vitória do “sim” na consulta popular serviu para revogar a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, uma prática que havia sido autorizada desde maio passado, por um acórdão do Supremo californiano.

Será o fim da batalha?

A decisão da Suprema Corte pode ser considerada um balde de água fria nas pretensões das organizações favoráveis aos direitos dos gays e das lésbicas.

A recusa da Justiça, no entanto, não implicará o fim da luta pelo reconhecimento do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo na Califórnia. Seus partidários já anunciaram que estudam submeter novamente à votação popular a referida emenda, cuja reivindicação começou a ganhar força em São Francisco em 2004.

Até o presente momento, cinco estados legalizaram o casamento gay: Connecticut, Iowa, Maine, Massachusetts e Vermont, enquanto outros dois – New Hampshire e Nova Iorque – poderão entrar nessa lista em breve."
(Tradução e crédito da notícia de Celso Roma)

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Há que se discutir os procedimentos, os formatos e afirmações (mais ou menos tendenciosas ou enviesadas) presentes nos casos de referendo e plebiscito, mas os dois exemplos podem servir de parâmetro para discutir a utilidade do uso deste mecanismo - a consulta popular. Estes processos podem acionar movimentos reacionários que seriam evitados caso outros procedimentos políticos fossem adotados. Programas governamentais altamente setorializados que podem servir de amparo à grupos excluídos seriam barrados; outros, que dependem de um formato mais técnico de decisão - por exemplo, a transposição do Rio São Francisco - também tendem a lograr fracassos históricos em casos de uma disputa pública polarizada e maniqueísta.

5 comentários:

Renato disse...

Mas esse raciocínio é perigoso. Poderíamos com ele condenar o sufrágio eleitoral porque a maioria da população poderia, numa dada circunstância, escolher votar num líder reacionário. O problema não está no sufrágio nem nos instrumentos de consulta popular (que podem ser usados para o "bem" ou para o "mal" dependendo das curcunstâncias), mas na batalha simbólica que confere hegemonia aos conservadores na maioria dos temas polêmicos. A luta política ocorre em várias outras dimensões que a obsessão institucionalista da ciência política contemporânea impede de ver.

Tamer disse...

Eu estava apensando sobre isso algumas semanas atrás... concordo, mas discordo.. estou trabalhando agora, mas isso vai ser assunto pro próximo chopp.

Abraço.

Luiz Domingos disse...

Sim, Renato. Pode-se discordar do argumento de fundo, por princípio.
E nesse ponto, defende-lo arduamente pode levar à uma visão altamente minimalista de democracia - como voto de dois em dois anos. Embora este seja um ideal de democracia limitado, o ponto do post (baseado em casos recentes) é de que o mecanismo do plebiscito provoca uma maniqueização dos conflitos que parece não atender ao progressivismo implícito no mesmo. Daí que a experiência recente coloque em questão o instituto do plebiscito tal como utilizado, mas não chega a ser um manifesto contra formas de participação política menos ortodoxas.
E eu concordo com o comentário sobre a luta política/simbólica travada diariamente e fora das eleições que pende sempre para o mesmo lado da força...

Celso Roma disse...

Renato, a ideia subjacente ao argumento é de que as instituições representativas devem filtrar a preferência dos eleitores. Se uma comunidade decidisse por unanimidade adotar o linchamento como forma de justiça, esta decisão seria legítima por ser de natureza coletiva? É claro que não. William Riker assim distingue os liberais dos populistas: os liberais entendem que a democracia é um método de escolha entre tantos outros; os populistas acreditam que a democracia revela a verdade.

Renato disse...

Caros Luiz e Celso,

concordo com ambos em parte. De qualquer forma, creio que o argumento deve, num país como o Brasil (aliás, sempre vale a pena "historicizar" um pouco as discussões normativas), ser apresentado com certo cuidado. Faria ainda as seguintes observações: a) pode-se decidir linchar pessoas tanto pela via democrática como pela via autoritária. A possibilidade do linchamento não está dada pelo desenho institucional. A questão aqui é Schumpeteriana: se aderimos normativamente à democracia (seja lá como a definimos), caso ela venha a produzir um resultado como esse (o do linchamento), mantemos ou não o "procedimento"? De minha parte, não. Mas não acho que atos hediondos sejam o resultado provável apenas em consultas populares; b) "filtrar a preferência dos eleitores": eis aí algo que merece mais discussão: quais preferências? De quais eleitores? Como se trata de um filtro, o que fica de fora? Por quê? Podemos defender os procedimentos mais amplos de participação como forma de alargar os "filtros"; c) de fato, consultas populares tendem a reduzir questões complexas a abordagens maniqueístas (eu não gostaria de ser consultado sobre reforma tributária, por exemplo), mas em outros casos, menos técnicos, creio que devem ser aplicados; d) se os liberais entendem a democracia como um procedimento entre outros, então por que adotá-la? Ora, evidentemente porque para os liberais a democracia também é um valor (e não apenas um procedimento). Certamente, um valor que, em algumas circunstâncias, não ocupa o topo da escala de valores dos próprios liberais (dos brasileiros em particular). Estes, por exemplo, quando vêem a propriedade privada ameaçada pelos movimentos "populistas" não hesitam em suspender a democracia. Como se vê, nem precisamos chegar ao caso extremo dos linchamentos para encontrar situações em que se prefere suspender o procedimento a permitir que determinados resultados sejam produzidos. Creio que para todos - liberais, populistas, comunistas, fascistas etc. - há valores mais importantes que a democracia e todos eles decidirão, num ou noutro momento, suspender o "procedimento".