segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

"ditabranda" e "democradura"

[US Army officer's regulation cape, overcoat, jackets & raincoats hanging from clothes rack. Dmitri Kessel, 1941. Life]

Adriano Codato


O barulho que se fez nos círculos acadêmicos e jornalísticos em torno do editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro último tem lá sua razão de ser.

Comentando o plebiscito na Venezuela, naquele tom professoral dos que acreditam ter o dom da Revelação e o monopólio sobre o segredo e o sentido da Democracia Verdadeira, o diretor daquele poderoso rotativo decretou: “[...] se as chamadas ‘ditabrandas’ – caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru”, e continuado agora por Hugo Chávez, “faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente”.

Como seria de se esperar, choveram cartas à redação.

O motivo da indignação geral não foi a censura ao presidente venezuelano, mas a referência ao modelo político que vigorou no Brasil entre os governos Castello Branco e Figueiredo. A expressão “ditabranda” (neologismo derivado da contração da palavra ‘ditadura’ com a palavra ‘branda’) evoca, para qualquer um, uma forma de dominação cujo traço distintivo é sua amenidade e, como quer o jornal, o caráter autolimitado do exercício do poder pelos militares. As ditabrandas seriam portanto a alternativa educada aos regimes tirânicos, arbitrários e opressivos, como foi o caso das ditaduras nada suaves que usaram e abusaram do recurso à violência física contra os adversários.

Boa parte dos leitores protestou lembrando as perseguições, as prisões, as torturas, os assassinatos políticos da ditabranda brasileira. Impávido, o jornal reafirmou seu ponto de vista dois dias depois: “Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”.

Como não se define um regime político pela contabilidade de mortos que ele produz, mas pelas regras do jogo que ele estipula e que decidem como serão as relações no interior do governo (o exercício do poder) e como serão as relações entre o governo e a sociedade (o controle do poder), penso que vale a pena aprender um pouco mais sobre a cultura política nacional a partir dessa discussão. Assim, essa querela semântica interessa mais pelo que ela deixa de fora do que por aquilo que inclui.

No debate público, os conceitos teóricos perdem aquela estampa de neutralidade e objetividade que os justifica para tornarem-se acusações políticas. Talvez por isso todos aqueles circunlóquios inventados, seja por especialistas, seja por protagonistas, para evitar o termo cientificamente correto – ditadura militar – para discriminar o “caso do Brasil entre 1964 e 1985”: situação autoritária, Estado de Segurança Nacional, democracia relativa, regime forte e outros parentes do tipo. O próprio Manual da Redação da Folha adverte seus funcionários para utilizar “com critério” o termo ditadura. “É melhor qualificar regimes autoritários de forma objetiva: governo militar”. Além disso, solicita-se não usar “a expressão ditadura militar”. Solicita-se também não escrever “Revolução de 64 para designar o movimento militar ocorrido no Brasil naquele ano”.

As razões de tanta objetividade não são um mistério tão grande assim. Ditadura, ditador, ditatorial são vocábulos do mesmo gênero daquelas expressões condenadas pelo dicionário dos políticos e dos seus assessores de imagem. Ninguém quer ser populista, oligarca, tecnocrata etc. A propósito, partidos de esquerda e de centro-esquerda não se referem bondosamente à ditadura do Estado Novo (1937-1945) como “o primeiro governo Vargas”?

Empenhado em encontrar um designativo mais de acordo com sua própria concepção histórica de como foi o regime brasileiro “entre 1964 e 1985”, o redator da Folha enganou-se duas vezes.

A primeira vez porque, como lembraram vários intelectuais que se mobilizaram para repudiar a versão do jornal (corre inclusive um abaixo-assinado na Internet; assine aqui), a repressão não é uma questão de grau (mais, menos, médio...), mas uma questão de método. A forma de excluir os oponentes do regime não passava apenas pelo monopólio das posições políticas através da manipulação de dispositivos eleitorais, mas pela eliminação física dos adversários.

Fosse a polarização ideológica tão crítica como no Chile, fosse a politização tão intensa como na Argentina, fosse a esquerda armada brasileira mais representativa socialmente, quem garante não teria havido mais baixas?

Acrescentaria que o redator enganou-se uma segunda vez porque empregou de maneira displicente, e errada, a expressão ditabranda. Esse emprego é sintomático de uma certa disposição da cultura política nacional.

Ditabranda é um termo inventado por Guillermo O’Donnell e Philippe Schmitter, dois cientistas políticos que se especializaram em estudar transições do “regime autoritário”, como querem eles (ver o livro Transitions from Authoritarian Rule: Tentative Conclusions about Uncertain Democracies).

Ela não designa um regime político, mas uma fase intermediária entre um regime ditatorial e um regime democrático. Portanto, “ditabrandas” não são ditaduras incompletas, limitadas ou amenas, com baixo grau de repressão política e pouco controle social. São estruturas políticas que já deixaram de ser completamente autoritárias, mas que ainda não são plenamente democráticas. As ditabrandas são definidas pelo grau de liberdades políticas que toleram. Digamos que parte do governo do general Figueiredo e o governo de José Sarney se encaixam aqui.

Sua continuação são as “democraduras”, palavrão dos mesmos autores acima. Esses regimes intermediários são democracias limitadas onde a competição política ainda é restrita a alguns grupos confiáveis e onde há formas atípicas de consulta eleitoral, como plebiscitos, assembléias corporativas, apelos diretos ao “povo” etc. O governo Collor seria o exemplo.

Essas classificações não dizem respeito a palavras, como é óbvio.

No entanto, chama a atenção a resistência difundida ao emprego da expressão ditadura militar, tão corrente, por exemplo, na imprensa da Argentina ou do Chile. Penso que esse fato tem menos a ver com o placar de mortos e desaparecidos dos três regimes e mais com a interdição que pesou sobre o debate político no Brasil a respeito dos governos “entre 1964 e 1985”. Qual foi a natureza, quais foram as razões, qual o legado desse período para o imaginário político nacional?

A pressa com que se decretou o restabelecimento da democracia no Brasil em 1985 impediu inclusive de matutarmos sobre a democracia tutelada que se seguiu e seus efeitos sobre o sistema político.

Nenhum comentário: