Sócrates, a revolução social futebolística e as quimeras populistas
[Crowded soccer fans. United
Kingdom, 1951. Cornell Capa. Life]
Fernando Leite
Há algum tempo atrás, recebi um e-mail de uma amiga numa dessas listas de discussões. O e-mail continha uma série de frases politicamente polêmicas; a maioria bastante engraçada. Uma delas, além de curiosa, parece-me trágica. Trata-se de (mais) uma proposta de "revolução", proferida por nosso Doutor Sócrates, sim, o mago dos campos tupiniquins "alegremente baldios" dos anos oitenta.
Trascrevo-a na íntegra, da mesma maneira que a recebi:
"Os mais conservadores e os reacionários têm um verdadeiro pavor da politização das torcidas. É que neste país nada mobiliza e agrega mais que o futebol e poderá ser por meio dele que teremos os exemplos que determinarão os caminhos que devemos seguir para transformar nossa sociedade em algo mais humano e da qual possamos nos orgulhar" (Sócrates, ex-jogador de futebol, Carta Capital, 13/03/3009).
Entendo o "argumento" de Sócrates da seguinte maneira: ele diz que os "conservadores e reacionários" têm medo da "politização das torcidas" supondo (1) que o futebol é o fator que mais "agrega e mobiliza" os organismos humanos desta República; (2) que um movimento social pode surgir dessas virtudes futebolísticas e (3) que tal movimento seria positivo, pois transformaria nossa sociedade incivilizada nalgo "mais humano" etc.
Em primeiro lugar, existe um veículo de difusão ideológica que pensa de forma semelhante a Sócrates, isto é, que acha que futebol é mais importante do que um bom sistema de ensino e políticas democráticas eficazes: a Rede Globo. Seria impossível contemplar a vasta quantidade de material empírico disponível para mostrar a crença (ou o rebuço) globista no "poder transformador" do esporte e, em especial, do futebol. Mas um evento é especialmente ilustrativo. Em 2 de junho de 2006, há poucas semanas da Copa do Mundo, a Globo dedicou um Globo Repórter ao tema. Como era de se esperar, a finalidade que orientava as matérias não se reduzia a apresentar o cotidiano dos craques, a celebrar o espetáculo e a pressionar por bons resultados (ainda que tudo isso esteja presente).
O fio condutor de todo o programa consistiu em uma comparação entre Brasil e Alemanha. Cada bloco do programa era dedicado a um desses países: um sobre o Brasil, o seguinte sobre a Alemanha, e assim até o fim do programa. Nunca vi uma manifestação tão perfeita de nosso eterno drama tupiniquim, que consiste em cultivar os valores e a realidade dos países avançados, projetados como ideais de um futuro próspero e reunidos sob a alcunha do "país do futuro"; enquanto tacitamente acreditamos que nossas disposições sejam intrinsecamente incompatíveis com ele. Assim, os blocos dedicados à Alemanha celebravam invejosamente os feitos sociais, tecnológicos, econômicos e culturais daquele país. Os blocos dedicados ao Brasil mostravam o rumo para o progresso: o futebol, que tanto salva jovens retirando-os da pobreza e oferecendo a oportunidade de "vencerem na vida"...
Consulte a matéria por si próprio:
http://grep.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-10603-2-170919,00.html
http://grep.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-10603-2-170917,00.html
(Ressaltamos a genial expressão Tino Marquiana, que conseguiu transformar "favela" e "habitação subumana" no eufemismo "campos alegremente baldios". Não consigo deixar de pensar que o raciocínio e as sensações que passaram pelo cérebro desse repórter da Globo são homólogos aos que acometem o Dr. Sócrates.)
Em segundo lugar, existe uma palavra que descreve perfeitamente no que consistem as frases de Sócrates (e seus análogos globistas): uma mitologia.
Ora, nosso país já possui problemas demais. Não precisamos que as torcidas se agremiem e se organizem politicamente. Já são tirânicas o bastante sem qualquer mobilização política. Já temos problemas demais do jeito que são. Caso se organizem, seu ímpeto de violência só se tornará mais destrutivo, pois os atos de violência seriam racionalizados, aumentando seu escopo e seus efeitos. Sua desorganização, embora seja mais um sintoma de sua boçalidade anárquica (e anti-republicana, anti-racionalista, irrascível, autoritária, intolerante...), garante que a violência se restrinja a conflitos difusos entre machos-alfa lutando por territórios.
As torcidas não são as massas de operários e de intelectuais orgânicos que conduziriam à sociedade de abundância e de bem-estar internacional. São, simplesmente, puras manifestações das profundas tensões sociais que atravessam o país. A violência que acomete os estádios - e especialmente suas redondezas - não passa de uma pequena dimensão da violência que acomete todo o país. Remete aos mesmos esquemas que produzem anualmente mais de 40 mil cadáveres, produtos de assassinatos de todo tipo, e provavelmente também aos esquemas que produzem número semelhante de corpos nas estradas do país dos campos alegremente baldios. Vou além, e especulo que esteja provavelmente ligada aos fatores estruturais (políticos, sociais, econômicos...) que fornecem o fundamento a partir do qual as espécies de mentalidade tupiniquim agressivas, autoritárias e intolerantes se desenvolvem.
Provavelmente não há princípio de divisão, no Brasil, mais eficaz que o futebol para dividir, classificar e opor indivíduos. Em muitos casos, antes de tudo, o homem médio brasileiro é um partidário de algum clube. E de alguma torcida. O futebol é uma guerra supostamente dissimulada, lutada por outras vias; no Brasil, isso nem sempre é verdade, tornando-se uma guerra de fato. Não há disposição mais anti-democrática que aquilo que comanda as torcidas brasileiras. A influência do futebol já é grande demais. O espírito que o comanda, se feito Estado, mais se assemelharia a um estado de guerra civil constante, numa sociedade dividida por milícias lutando pelo extermínio do partido alheio.
Carlos Alberto Pimenta escreveu um interessante artigo sobre o assunto, intitulado "Violência entre tordicas organizadas de futebol", apresentando argumento semelhante ao meu.
(Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392000000200015&script=sci_arttext Acesso em: 30.mai.2009.)
Em terceiro lugar, o raciocínio de Sócrates é análogo a um sistema de mistificações típicas do esquerdismo populista (no qual a proposta de Sócrates se insere, ainda que, até onde se saiba, ele não seja intelectual, mas apenas ingênuo) que virou moda nos últimos tempos: parte de estereótipos e de mistificações das classes dominadas. Tudo o que se assemelha, por seus aspectos mais superficiais, com o "povo", com a "cultura popular" (e seus correlatos e eufemismos de "pobre" e "pobreza") é associado a virtudes altamente rentáveis simbolicamente: "humilde", "solidário", "altruísta", "consciente", "mobilizado", "passional", "inovador"...
Aqui atingimos o ponto principal de nosso raciocínio.
Que se diga desde já: as virtudes associadas ao "Outro" implicam na condição subalterna e mesmo dominada do "Outro". Há uma relação muito próxima entre a conservação das condições sócio-econômicas dos dominados e as virtudes que são associadas a eles.
É preciso perguntar: quem confere as qualidades ao dominado (e seus eufemismos aprazíveis: "outro", "povo", "popular" etc.)? É o próprio dominado? Compartilha com ele das circunstâncias e das condições objetivas nas quais está inserido? Qual o interesse de alguém celebrar aqueles que ocupam uma posição inferior à sua própria?
Temos uma horda de intelectuais e de outros membros das profissões "alternativas", indivíduos das classes médias e altas, que compartilham das premissas de Sócrates. E, assim como Sócrates - ou mais -, lucram quantidades incomensuráveis de capital simbólico com sua "representação popular": como se estivessem descolados do espaço social, os virtuosos das classes superiores virtuosamente transformam-se nos representantes e nos ideólogos dos fracos e dos oprimidos.
A projeção romantizada e idealizada que fazem do "povo" não passa de um constructo puramente abstrato: o "povo" do esquerdismo populista tem corpo de povo, mas cabeça de intelectual.
Esse constructo, essa mistificação, tão corrente nos espaços sociais e simbólicos onde sucede a vida dessa classe muito específica de privilegiados, opera como uma forma bastante perspicaz de produzir e reproduzir capital simbólico. É como se esses indivíduos, por meio das operações de construção daquele mito, se amalgamassem a ele, atribuindo para si todas as características virtuosas que atribuem ao "povo": o esquerdismo populista "se transforma" no "povo"; o representante dos fracos e dos oprimidos se veste como o "povo"; ele tenta viver como o "povo"; tenta falar e pensar como o "povo". E de fato consegue, pois trata-se do povo entre aspas, isto é, a mistificação idealista e virtuosa dos dominados - um processo que, aliás, o dominado está excluído.
Tal alquimia simbólica, evidentemente, só existe e só é eficaz porque ocorre dentro de um espaço social sociologicamente compatível com ela. Sendo auto-referente, fechado em si mesmo, o universo social da esquerda vulgar confere suas recompensas aos seus próprios membros. Os próprios pares são responsáveis por reconhecer as empreitadas individuais de incorporar as propriedades do "povo" - lembramos, do "povo", o povo-intelectual entre aspas, que confere muito mais prestígio, reconhecimento e afirmação ontológica (além de outros derivativos do capital simbólico, como o capital sexual) que o povo real, isto é, as classes dominadas, fadadas a uma vida de sobrevivência que não se assemelha em nada com a aristocrática arte de vida dos ideólogos do "povo".
Associando-se com o "povo", tornando-se o "povo", o intelectual da esquerda vulgar acessa, assim, todo tipo de lucro simbólico. Transforma-se no ser humano mais nobre do mundo, num detentor de todas as virtudes - virtudes que os donos do poder econômico e político, seus inimigos diretos, não possuem.
Pois é lógico que o futebol, este substantivo popular por excelência, cumpra um papel importante na mitologia do esquerdismo vulgar brasileiro, essa espécie de estilo e arte de vida que toma coloração política (e, freqüentemente, científica).
Não precisamos de torcidas mobilizadas ou de políticas sociais futebolísticas. Precisamos daquilo que todos sabem, que compõe o senso comum: instituições democráticas eficazes; fortalecimento das instâncias representativas e do controle social dos legisladores e administradores públicos; políticas que distribuam a riqueza econômica; um forte sistema de ensino público, que distribua universalmente as condições de acesso aos valores mais importantes da sociedade e que valorize o professor e o conhecimento etc.
Precisamos de instituições verdadeiramente racionais e, ao mesmo tempo, democráticas.
Talvez seja precisamente o alto grau de vulgaridade que acomete esses imperativos, o fato de fazerem parte do senso comum, que estimule as frações de classe "alternativas" a buscarem receitas simbólica e socialmente mais rentáveis, ainda que irrealistas e perversas na mesma proporção.
Um comentário:
Fernando
Parece-me que seu texto utiliza o futebol como o pretexto para pensar uma questão mais geral, a representação que intelectuais de esquerda fazem do povo. Eu acho essa abordagem interessante e válida, mas temo que ela acabe por estirar uma associação, mesmo que indireta, entre violência e pobreza. E nessa linha de raciocínio, a principal causa da calamidade dos estádios brasileiros permanece na obscuridade. Ela se chama insegurança.
Ainda que esse não seja o sentido do seu texto, é pertinente pensar o problema dos estádios para dentro deles, para o espetáculo em si – e nisso revelo-me um louco por futebol. Isto posto, retomo uma categoria marginal em seu texto, mas que fala muito, que é a idéia de civilização. Durante os anos 1980 um fenômeno identificado como hooliganismo consternou a sociedade inglesa. A escalada da violência produziu, após a Tragédia de Heysel a retirada dos times ingleses das competições européias por cinco anos – a equipe de Liverpool ficou seis anos suspensa.
Como país civilizado, o Reino Unido pôs-se a pensar numa solução civilizada para o problema; isso começou pela identificação das causas do problema. Disso resultou um documento que se tornaria conhecido como Taylor Report: o relatório elaborado Peter Taylor identificou nas más condições dos estádios ingleses, associada à sua superlotação, as principais causas da violência. É Claro que o saneamento definitivo do problema implicou em uma série de mudanças, desde a colocação de assentos numerados nos estádios até a proibição de bonés em pubs britânicos em dia de futebol (para facilitar a identificação, via câmeras, de bêbados arruaceiros). Quem tiver a oportunidade de assistir uma partida num estádio europeu percebe que está num ambiente seguro, limpo e civilizado. Qualquer comportamento agressivo ali é pura e simples anomia.
Resumo da ópera: pessoas tratadas como animais reagem como animais. Não vejo como a clivagem de classe escapa a essa máxima. As condições de higiene e segurança nos estádios brasileiros são deploráveis, e isso não pode ser silenciado numa compreensão honesta dos senões que circundam o certame.
Concordo que daqui decorre um prognóstico bem maroto: o problema dos estádios brasileiros é um problema de public manager, cuja solução passa, impreterivelmente, pela qualidade dos gestores públicos. O discurso é tucano de berço, de fato, sobretudo no Brasil, onde a própria noção de civilidade só faz sentido num universo de elites. Apesar disso, se ainda houver alguma alternativa à elitização do espetáculo, ela deve começar pela reforma dos estádios brasileiros.
Abs
LM
ps.: eu soube desse relatório através de um cara chamado Oliver Seitz. Tem um texto dele que trata do assunto aqui
http://www.universidadedofutebol.com.br/Universidade09/Jornal/Colunas/Detalhe.aspx?id=10782
Postar um comentário