sábado, 5 de fevereiro de 2011

À que serve a transitologia/consolidalogia? O processo político paraguaio entre a 'crise de abril' e o 'marzo de 1999'. (Parte 1)

Marzo Paraguayo
FOTOGALERÍA MARZO DE 1999
Arquivo Última Hora

José Szwako*

A transição paraguaia teve seu fim com a eleição de seu primeiro presidente civil, o colorado Juan Carlos Wasmosy. Enriquecido com as prebendas e contratos ao redor de Itaipu, Wasmosy era a face civil do pacto colorado-militar herdado do stronismo. Contudo, no bojo do intenso faccionalismo que atravessava o coloradismo desde a queda de Stroessner, antes de disputar e vencer a eleição presidencial, o nome de Wasmosy teve de lutar dentro do Partido Colorado contra outro possível candidato, José Maria Argaña – Ministro da Corte Suprema durante o stronismo e Ministro das Relações Exteriores durante a transição. Em ambos os casos, a escolha colorada não tinha qualquer credencial democrática: ‘Argaña’s discourse had traditionally been aggressive, and he managed to get the support of a majority of the Colorado faction that followed Stroessner to the end. Wasmosy was clearly the candidate of the government establishment, the business elite connected to it, and especially the powerful First Army corps commander, General Lino C. Oviedo’ (ABENTE, 1996).
Wasmosy teve de lutar pela vaga e lutou com todos os meios, legais ou não. Depois de ter sido derrotado nas internas coloradas, a ala militarista do partido forja uma convenção extraordinária, passa por cima do tribunal eleitoral e garante o nome de sua preferência – Wasmosy – na lista colorada para a disputa pela Presidência. Além de ter sido maculada pela atuação aberta dos militares em favor de seu candidato, a eleição de 1993 foi marcada também pela voracidade com que colorados militaristas e colorados stronistas se enfrentavam na vida intrapartidária. Ao fim da transição, a cena ‘era politicamente complexa, mas aceitável para todos; para o general Rodríguez, entenda-se as Forças Armadas, porque foi eleito seu sucessor oficial e para a oposição porque ela conquistou maioria parlamentar’ (RODRIGUEZ, 1993).
A receita política que tinha levado Wasmosy à Presidência podia até ser aceitável para todos, mas acabou se mostrando bastante indigesta para ele próprio. De um lado, seu mandato teria que assegurar, dentro de um marco legal democrático, os interesses daqueles atores que o tinham catapultado; de outro, o oficialismo enfrentava uma inédita oposição parlamentar no Senado e na Câmara dos Deputados; e, para piorar a situação, os políticos colorados ligados à figura de Argaña (argañistas) se agruparam no Movimento de Reconciliação Colorada (MRC) e compuseram uma das bases da oposição ao governo de Wasmosy – ‘a falta de maioria parlamentar e a forte oposição de dentro de seu próprio partido limitaram severamente sua capacidade de governar’ (NICKSON, 1997), tirando os colorados pró-Wasmosy de posições-chave no Congresso.
Com algumas tréguas e pactos de governabilidade entre 1993 e 1994, as relações entre oposição e Executivo, na primeira metade do governo Wasmosy, se concentraram em duas questões intocadas na agenda da transição: a composição da Corte Suprema de Justiça no país e a despartidarização das Forças Armadas. Certamente essas duas tarefas não se completaram no mandato de Wasmosy, mas uma delas ultrapassou a esfera das tensões e negociações entre a oposição e o Presidente, que chegaram ao consenso de que o Poder Judiciário não poderia responder a uma vontade colorada, apontando para um ‘início de avanço maior na Corte’ (NICKSON, 1997). A despartidarização do estamento militar tocava direta e indiretamente nos interesses de militares, em especial, do general Lino Oviedo – de quem, desde fins de 1994, Wasmosy paulatinamente dava mostras de distanciamento.
Embora essas tarefas fossem sumamente necessárias, o nível institucional em que se desenrolou a agenda política pós-transição deixou pouco espaço para políticas econômicas e sociais. Algumas empresas estatais foram à época privatizadas, mas essas privatizações não mostravam retornos visíveis e se davam em áreas periféricas da economia paraguaia. Além disso, entre 1995 e 1998, o Paraguai passou por três crises em função de seu mercado paralelo e do sistema financeiro ilegal a ele ligado. A incapacidade estatal de dar resposta a essas crises levou a um aumento expressivo nas mobilizações de trabalhadores rurais e urbanos e na repressão a elas. De um ponto de vista mais amplo, o descontentamento social não ressoava em políticas públicas, que mostravam baixa capacidade de resposta ao público e não tinham em sua grande maioria fins redistributivos, no governo de Wasmosy e depois dele.
De fins de 1994 em diante, ao mesmo tempo em que a oposição pressionava o Executivo no sentido de dar impulso à despartidarização efetiva das Forças Armadas, o nível de tensão entre o Presidente e o general Lino Oviedo aumentava devido a um jogo de forças que passava pela decisão do orçamento e salário de militares e, sobretudo, pela voz de comando sobre a distribuição de posições dentro da hierarquia militar paraguaia. Esse jogo de forças mostrava, na verdade, aquilo que J. Lara Castro chamou de os ‘limites do poder dual’ nos quais a capacidade de decisão político-institucional era dividida e disputada entre o Executivo e o chefe das Forças Armadas. Enquanto Wasmosy chegava a consensos institucionais mínimos com a oposição, Oviedo se lançava em discursos, paradas e campanhas assistencialistas, e aumentava sua influência no Congresso, junto a atores de oposição ou colorados, e nos aparatos militar e estatal-administrativo. Em médio prazo, o investimento do militar tinha como alvo a Presidência, mas um percalço atravessou seu caminho: em abril de 1996, Oviedo é destituído do cargo de chefe das Forças Armadas por Wasmosy, mas o militar responde negativamente ao poder presidencial, insubordinando-se e colocando o Paraguai em uma delicada situação institucional.
Em nota, a embaixada dos Estados Unidos bradava: “A negativa do general Oviedo de acatar a decisão do Presidente representa um desafio direto à ordem constitucional (...) nosso governo vê com grave preocupação esta ameaça à democracia no Paraguai”. Antes mesmo do Presidente tornar pública a insubordinação do caudilho militar, as embaixadas de Estados Unidos, Argentina, Brasil e Chile, não apenas demonstraram seu apoio incondicional a Wasmosy e à continuidade institucional, como também intervieram, por razões realistas e por outras, de forma rápida e efetiva na estabilização dessa crise. Com resultados positivos, a pressão internacional negocia e logra a saída pacífica de Oviedo da chefia castrense e, como parte da negociação, Wasmosy chega a cogitar o nome de seu inimigo íntimo para o Ministério da Defesa. Em oposição a essa virtual nomeação, jovens estudantes e outros grupos organizados vão às praças ao redor do Palácio do Governo e Oviedo, agora civil, não ganha a pasta ministerial.

*José Szwako é doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.

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