Dinheiro e política na reforma dos EUA
Valor Econômico, 20 de agosto de 2010, pA.13
Celso Roma*
Aprovação da lei Dodd-Frank levanta dúvidas sobre a velha ideia de que o lobby do mercado financeiro tem força o suficiente para impor seus interesses sobre os demais
A Lei Dodd-Frank da reforma de Wall Street e Proteção ao Consumidor, sancionada em 21 de julho pelo presidente Barack Obama, criou agências e regras para fiscalizar as atividades do setor e proteger os consumidores contra abusos por parte de bancos ou corretoras de investimento - o que contrariou a indústria do dólar.
O episódio levanta dúvida sobre a velha ideia de que o lobby do mercado financeiro tem força suficiente para impor seus interesses sobre os demais. No Congresso americano, onde a prática de lobby é legal, os financistas são o grupo econômico mais poderoso em atuação. Eles acompanham as atividades dos congressistas e contribuem com dinheiro para as campanhas. A despeito dos meios e dos recursos que dispõem, os financistas não evitaram a aprovação das novas regras para o manejo do dinheiro e dos títulos que o representam. A reforma de Wall Street foi aprovada por uma ampla maioria de votos na Câmara dos Representantes e no Senado.
Isso não teria ocorrido se os congressistas tivessem votado com o bolso, retribuindo as contribuições de campanha. De acordo com o Center for Responsible Politics, 509 dos 535 congressistas receberam dinheiro de grupos com interesse na reforma financeira. O levantamento inclui doações para deputados nos últimos dois anos e para senadores nos últimos seis, excluindo o repasse para os comitês dos partidos e o custeio do lobby. Com maior poder econômico, associações de bancos, cooperativas de crédito e câmaras do comércio doaram para parlamentares em mandato US$ 19,6 milhões. Por outro lado, sindicatos da indústria e comércio, cooperativas de agricultores e associações de defesa do consumidor doaram uma quantia menor - US$ 16,4 milhões.
O voto dos congressistas não correspondeu aos interesses dos doadores de campanha. Congressistas que receberam dinheiro por parte dos financistas aprovaram a reforma. Congressistas que registraram contribuições dos intervencionistas rejeitaram a reforma. Vejamos alguns exemplos. Os senadores Max Baucus e Thomas Carper captaram cerca de US$ 200 mil dos interessados em barrar a reforma mas votaram a favor. O deputado Roy Blunt captou mais de US$ 170 mil dos grupos pró-reforma mas votou contra.
São ainda mais ilustrativos os casos dos parlamentares que introduziram o projeto de lei nas casas legislativas. O senador Christopher Dodd e o deputado Barney Frank foram homenageados por meio da inserção do sobrenome no título da Lei, em reconhecimento aos esforços para aprová-la. Surpreendentemente, eles figuram na lista dos congressistas mais favorecidos pelos grupos econômicos contrários à reforma financeira.
A forma pela qual o projeto se tornou lei fortaleceu a nova ideia sobre os partidos americanos. Democratas e republicanos ditaram os rumos da reforma financeira, marcando posição sobre o assunto e disciplinando as bancadas em votações-chave.
O Partido Republicano lutou contra a ingerência do governo no setor financeiro. Seus partidários usaram o regulamento do Congresso para atrasar ou até mesmo impedir que o projeto fosse enviado ao plenário, seja apresentando requerimento para devolvê-lo às comissões ou dificultando quórum para a votação. A bancada republicana votou em bloco: 98% dos deputados e 93% dos senadores rejeitaram a reforma financeira. Os republicanos fracassaram, na maioria das investidas, por serem minoria.
O Partido Democrata aprovou a reforma financeira porque detém a maioria das cadeiras da Câmara e do Senado. A situação proporciona a liderança da Câmara, a presidência e o controle das comissões, bem como os votos necessários para aprovar proposta sobre a qual fecham questão. Com o aparato em mãos, o partido Democrata controlou a tramitação do projeto de lei, desde a introdução, passando pelo processo de emendas, até a votação em plenário. O partido impediu que o lobby do dólar desfigurasse o texto original e evitou, ao mesmo tempo, que nele fossem aprovadas propostas radicais de mudança. A bancada democrata registrou a disciplina de 234 deputados (92%) e 55 senadores (93%), obtendo número de votos acima do exigido para passar o projeto consolidado.
No momento mais decisivo, quando a íntegra do projeto foi submetida à deliberação em plenário, os congressistas obedeceram à recomendação do líder do partido, ainda que isso implicasse votar contra os interesses daqueles que contribuem para a campanha. Só 26 deputados e 4 senadores foram indisciplinados, se abstiveram ou faltaram às sessões.
A reforma financeira pôs à prova o lobby de Wall Street e os partidos políticos. Ao fim e ao cabo, a política subjugou o dinheiro. Citando John Maynard Keynes, "a dificuldade não está nas novas ideias, mas em escapar das velhas, que se ramificam, para aqueles que foram criados como a maioria de nós foi, por todos os cantos de nossas mentes."
Celso Roma é cientista político, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC)
E-mail: celsoroma@cedec.org.br
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