terça-feira, 22 de junho de 2010

Futebol e sinceridade: falas e metáforas da democracia brasileira

[Sem título, 1989. Belo Horizonte, MG. Miguel Aun. Pirelli/MASP]
José Szwako*
Cada seleção com a sua crise e cada crise encerra uma bela metáfora das respectivas políticas nacionais: entre os franceses, diferentes tons e sotaques se digladiam com e contra as hierarquias internas, já os jogadores nigerianos se vêem ameaçados por seus próprios conterrâneos, ao passo que, no Brasil, a imprensa (ou parte hegemônica dela) se desentende com Dunga e com alguns de seus jogadores.
Um suposto aceno com tom de reprovação foi suficiente para que Dunga soltasse alguns insultos infantis e truculentos contra um jornalista da Rede Globo. A troca de farpas, por sua vez, despertou um dos pilares da nossa imaginação democrática: ‘a imprensa merece’, ‘a Globo merece’, ‘o jornalista merece’ – diz a avalanche de opiniões que celebram a incivilidade do técnico brasileiro.
Aos olhos da maioria que aplaudiu Dunga, este foi ‘destemido’, ‘peitou a Globo’, ‘teve caráter’, enfim, ‘Dunga 1 x 0 Globo’. Nessa ovação toda, o tom médio girou ao redor de uma oposição: uma rede de televisão má e manipuladora versus um cara de respeito – com todas as analogias de gênero correlatas, um cara que ‘mete o pau’, ‘cabra macho’. E de respeito porque foi sincero consigo e, nessa veia, com o jornalista e com o público.
Feliz pela sinceridade de Dunga, nossa classe média supostamente ilustrada não perde uma oportunidade de se mostrar supostamente crítica “Bem feito[,] a Globo acha que tem que dar o amém em tudo, [acha] que é a dona da verdade (...), cadê a democracia, achei certíssima a atitude do Dunga com a rede esgoto de televisão”.
Nas entrelinhas desse imaginário, o que é ‘certíssimo’ e ‘democrático’ é a atitude sincera: eu tenho uma ideia qualquer e a prova da minha correção moral está em minha capacidade de expor (sinceramente) tal ideia sem referência a um outro – o jornalista, a Globo ou o público – e sem uma mediação mínima. Falo o que penso, logo existo. Essa proposição sintetiza um dos pilares daquilo que o público brasileiro pós-autoritário chama de democracia.
A despeito do que pode imaginar ‘a imprensa’, autoproclamada guardiã da democracia, cultos e incultos se encontram nessa síntese, pois o que parte importante dos jornais e jornalistas brasileiros vê como uma ‘defesa das liberdades democráticas’ consiste em acusar pessoas públicas sem provas, ou seja, em ter ideias e expô-las sem mediações e, obviamente, sem ônus – porque inquirir os inquisidores é sempre ‘um-perigo-para-a-nossa-democracia’.
Que esse tipo tosco de sinceridade, verdadeiro avesso da civilidade, corrói nossa imaginação política pode ser conferido também nos aplausos à oposição da candidata do Partido Verde com relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo: ao se dizer contrária ao casamento de homossexuais, diferentemente dos demais candidatos, Marina Silva estaria apenas dizendo o que realmente pensa, estaria apenas sendo ‘sincera’. "Agora”, nos diz alguém supostamente ‘crítico’, “ter opinião sobre um determinado assunto virou preconceito, parabéns Marina, se fosse os outros candidatos seriam falsos como sempre”.
*José Szwako é doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.

11 comentários:

Okupação disse...

Absolutamente certeiro!

Monica disse...

Zé, caríssimo, acho que assim não cola... você formalizou de maneira exagerada, o que significa que reduziu todo o assunto a uma questão moral de "sinceridade".
Falta o contexto, e informações mais precisas...
Não é disso que se trata, parece-me. Não se trata de "elogiar" o Dunga, pouco importa. Trata-se do desgaste e do chega-pra-lá que a Globo levou, e com ela a CBF.

Do lado do Dunga, isto é um assunto privado, e tanto faz (o motivo ou intenção não contam); mas do lado da Globo é um assunto político: uma combinação feita diretamente com o Ricardo Teixeira não foi obedecida, a viagem da Fátima Bernardes tornou-se inútil, senão ridícula, e tudo começou quando as entrevistas exclusivas previstas para o fantástico foram negadas... e ela disse que já havia falado com o superior dele, truculenta...
Justifica a grosseria dele? Talvez não, talvez sim. Mas isso não importa.
Leia, sobre isto, essa ótima análise: http://www.tijolaco.com/?p=18985

A analogia formal, que usa a mesma forma geral da "sinceridade", parece muito bem aplicada nas últimas linhas, a respeito de um assunto ABSOLUTAMENTE DIFERENTE. Neste caso, achei suas opiniões perfeitas. (aqui a alegação da suposta "crítica" é esta, da sinceridade, o que dá sentido e força à sua crítica)

Beijo.

Anônimo disse...

Mônica, minha cara, o meu ponto é menos a contenda entre Dungas, Fátimas e Globos - o que é evidentemente passível de críticas honestas como a sua - e mais as formas primeiras de classificação através das quais as pessoas ordinárias ou nao (incultas ou nao)se julgam 'democráticas'. É daí, dessa forma primeira, a que chamei de 'sinceridade', que minha comparacao com algo ABSOLUTAMENTE DIFERENTE ganha força e sentido.
Ora, quantas vezes vc nao escuta isso: Eu tenho o direito de dizer isso PORQUE é assim que eu penso, "cadê a democracia", se pergunta uma pessoa ordinária.
Embora vc esteja estritamente correta quanto à querela entre pessoas privadas, a sua crítica nao macula minha posicao que pretende ir a uma das bases do imaginário democrático brasileiro.

Monica disse...

Zé, não é difícil te dar razão, pelo menos dizer que essa chave da "sinceridade" pode ser interessante para pensar a idéia de democracia no "imaginário" brasileiro (bastante geral...).

Mas acho que a contenda, da qual você partiu (!), não te ajudou nisso - de repente não foi uma boa maneira de discutir este assunto da sinceridade/democracia, por várias razões, que eu pretendo ter apontado acima. Só isso, então, já que não era a idéia...

a discussão não macula a sua tese, mas também não ajuda... e a questão é saber se o exemplo do qual se partiu não atrapalha a tese, e vice-versa.

Renato disse...

Acho que os dois estão certos. Todo esse episódio revela várias dimensões do imaginário político no Brasil. De um lado, uma imprensa que transforma, de maneira oportunista, qualquer obstáculo ao seus objetivos (no caso da Globo, ter exclusividade em tudo que diz respeito à copa do mundo) num suposto ataque à liberdade de expressão. Desse ponto de vista, foi uma delícia ver seus jornalistas constrangidos aos mesmos limites de outras redes e se submeterem à vontade de Dunga. Ver a Fátima sem ter o que fazer, melhor ainda. De outro lado, um comportamento absurdo de um sujeito que acha que pode dizer o que bem entende só porque ocupa um cargo de mando, no mais puro caudilhismo gaúcho. Concordo inteiramente com o Zé nesse ponto: Dunga não pode dizer o que disse porque cumpre ali a função de um homem público. Virou uma praga essa mania nacional de achar que as pessoas têm o direito de serem sinceras. Eu não quero ser obrigado a conviver com a subjetividade de ninguém rs rs rs.

Anônimo disse...

Dunga nao pode faze-lo do mesmo modo que a Marina, como candidata a uma posicao que exige razoabilidade e racionalidade, nao pode se declarar publicamente contrária à uniao (e à correspondente protecao) legal de dois homens ou duas mulheres.
Isso que hoje chamam democracia faz com que uma opiniao como a dela seja perfeitamente nao-contraditória: "eu nao tenho nada contra gays, nao tenho nada contra o direito de luta dos gays, mas SINCERAMENTE é o fim da picada achar que (héteros ou nao) valeríamos todos igualmente, a ponto de liberar e rebaixar o casamento a esse tipo de gente".
Eu sei, Mônica, essa nao é a sua opiniao, mas desconsiderar a funcao do direito à sinceridade no que imaginam da democracia pode te cegar pra esse tipo de violência.

Monica disse...

Renato,
o Dunga não "saiu por aí" falando o que bem entende, ele disse certas coisas em um contexto específico: uma briga, uma disputa com a Globo. E sem isso, não importa o que o levou a isso, você não veria nada acontecer com a Globo, como estávamos acostumados há anos... Não importam tanto as intenções do Dunga quanto os efeitos.

Poxa, você não quer "ser obrigado a conviver com a subjetividade de ninguém rs rs rs"? Vai ser difícil sair de casa... rsrsrs

Ok, Zé, então me explica, pra eu não ficar cega: o que é realmente democracia? Dizer que a Marina não pode defender esta opinião? É achar que o Dunga deveria se calar diante do repórter que falava ao telefone sobre a negativa dele (à exclusiva) durante a coletiva? É achar que o tapete da Globo/CBF deveria ficar intacto porque puxá-lo com grosseria ou sem intenção "política" não vale?

Anônimo disse...

Mônica - como vc sabia que era eu? - minha cara, democracia é um jogo minimamente regulado entre atores morais (dotados de alguma razao) e públicos (capazes de dialogar). Na medida em que prescindo de regras mínimas de civilidade (mediacoes, eu dizia) e em que digo o que vem à cabeca, sou tendencialmente amoral (sincero), incapaz de discernir e de fazer política, portanto.
No movimento contrário, o uso público da razão impele os atores a degladiar (conversar, eu dizia) a partir de suas personas, a partir de suas máscaras fun-da-men-tais à política, e dela constitutivas.
A Marina pode sim defender essa opiniao, longe de mim censurar porque afinal vale tudo, ou nao?
O que nós, eu e vc, nao deveríamos fazer é ir na onda da choldra e ver nessa opiniao e na sinceridade dela um indício de 'democracia'.

Monica disse...

Vixe, Zé, a conversa ficaria muito longa... deixemos para um bar. Isso porque não compreendo bem - e acho que discordo - de sua idéia de "democracia".
De todo modo, isso que você chama de "sinceridade" está longe de ser um indício de "democracia", seja lá o que isso for. Acordo.

Agora a carcaterística da sinceridade voltou, como no texto e na primeira resposta, ao ponto de vista do eleitor. ok. Na resposta anterior, o ponto de vista era da Marina. De repente isso confundiu as coisas.

Mas, vamos nos falando.
Só espero que a política continue sendo algo que concerne os "morais", os "imorais", e até os "amorais"... rsrs

Luiz Domingos disse...

Mas eu não vi em lugar nenhum que o Dunga se irritou com o Alex Escobar (jornalista que sacodiu a cabeça ao telefone) por causa da entrevista exclusiva...
Ele se irritou porque viu que o Alex Escobar repelira (com o balançar da cabeça) a afirmação do treinador sobre a implicância dos jornalistas em geral (e nao da globo apenas) sobre a falta de gols do Fabiano.

Esse detalhe só para dizer que o Dunga não comprou briga com a Globo nesse episódio, isso parece claro. Ele foi truculento - como costuma ser sempre - com um comportamento ocasional de um jornalista qualquer. Ele é bronco com outros, da ESPN, do Lance, de diversos canais...
Para mim também é claro que acabar com o privilégio da Globo é um ponto positivo do treinador... Mas talvez isso seja mais efeito do comportamento dele com a imprensa do que uma intenção muito declarada. O Dunga não é o Che Guevara nem o Plínio de Arruda Sampaio.

O Dunga é daqueles que afirmam que a ditadura não foi ruim para o país, mesmo achando que afirmar isso é a plena garantia democrática de sua liberdade individual i.e., seu direito como cidadão.

Então, me parece que a "sinceridade" é um pretexto pra afirmações bizarras resguardadas sob o mantra do "direito à opinião", seja ela qual for...

Naturalmente, o Dunga aparece como muito mais radical, ao passo que Marina aparece muito mais encoberta, "equilibrada"... Trata-se de um caso mais disfarçado do uso da mesma lógica..., do direito à fala "embasada" e moralmente discutível a respeito de qualquer coisa.

Bruno Bolognesi disse...

Zé, excelente ponto. Essa discussão sobre o conteúdo da democracia é central. Seja moral, amoral ou como pretendem as diversas qualificações.

Concordo plenamente com o Domingos sobre o uso indiscriminado da sinceridade como preceito de direito individual. Não é possível que ofender homossexuais e negros (apenas para citar dois exemplos dos mais corriqueiros) seja aceito como manifestação de sinceridade democrática. Isso independe se é dito por um ator público ou privado.

Por outro lado, queria apenas fazer um comentário sobre a posição de fala. O Dunga, segundo o cidadão médio, é macho ao peitar a "Globo" (por mais que ofender um jornalista com "cagão" me soe pessoal demais). Mas é aceitável o mesmo Dunga dizer que é contra o casamento homossexual? Ou aí estamos sendo sinceros demais? Ou seja, não se trata de ser sincero ou não, mas sim de fazer uso do poder de posições e/ou reputações (ou a ausência delas, no caso do cidadão ordinário) para que a democracia deixe de ter conteúdo. Seja apenas forma (longe do Bobbio, por favor).