Por que o sistema eleitoral uninominal é péssimo para a democracia
[Oklahoma Politics, 1950.
Joe Scherschel. Life]
Guilherme Simões Reis, para o blog
O termo “sistema majoritário” pode se referir a dois tipos de sistemas eleitorais baseados em distintas regras da maioria, chamadas pela literatura internacional de ciência política, em inglês, de plurality e de majority. A primeira se refere à vitória daquele mais votado do que cada um dos concorrentes, enquanto que a segunda se refere à maioria com mais de 50% dos votos, podendo-se necessitar de um segundo turno para que tal percentual seja alcançado.
Ambos são sistemas uninominais (single-member districts), isto é, de magnitude igual a 1, em que o país é dividido em vários distritos nos quais apenas o candidato mais votado de cada é eleito para o parlamento. Por isso eles são popularmente chamados de “sistemas distritais”. O sistema eleitoral uninominal baseado na plurality utilizado na votação para parlamentos, o first-past-the-post, é particularmente difundido nos países de tradição britânica, inclusive nos Estados Unidos. Nele, um candidato pode ser eleito com muito menos do que a metade dos votos do seu distrito. Apenas a França e o Mali utilizam o sistema de dois turnos para as eleições legislativas nacionais, elegendo assim apenas candidatos com mais da metade dos votos (regra da “majority”).
O objetivo dos sistemas majoritários é dar a vitória, em cada distrito, àquele que representar um dos dois tipos de maioria. É bem diferente, portanto, dos sistemas proporcionais, que visam à representação das diferentes correntes de opinião da sociedade. Estes podem ser de dois tipos principais: os de lista e o de voto único transferível (single transferable vote – STV). O STV, por meio de um complexo mecanismo, permite que os eleitores ordenem vários candidatos de acordo com sua preferência, elegendo aqueles que não apenas sejam os preferidos como tenham menor rejeição. Já os sistemas de lista – que pode ser fechada, aberta ou flexível – distribuem as cadeiras pelos partidos de acordo com a proporção dos votos que eles receberam.
O sistema uninominal não foi obra de nenhuma engenharia institucional. Ele surgiu espontaneamente na Inglaterra, na Idade Média, e se tornou norma no final do século XIX. Ele se apresentava, então, como um progresso em comparação com a não-escolha dos representantes. Entretanto, a sua utilização hoje, após a criação de sistemas de representação proporcional, é um anacronismo eleitoral. O arcaico first-past-the-post viola tanto o princípio da igualdade como o da maioria. O sistema de dois turnos atende ao princípio da maioria, sendo, por isso, justificável ao menos sob algum aspecto, mas tem resultados ainda mais desproporcionais do que o de turno único quando utilizado para eleições legislativas.
Apesar disso, o sistema uninominal é exaltado, ao som do mantra da governabilidade, pela facilidade de construir maiorias, por tender a reduzir o número de partidos parlamentares e por ampliar a possibilidade de uma única organização partidária poder formar sozinha um governo majoritário, o que facilita a aprovação dos projetos do Executivo. O problema é que isso se dá às custas de o resultado não corresponder à vontade do eleitorado nacional e de excluir minorias, ao se reduzirem as opções dos eleitores forçando-os a votarem estrategicamente. Desse modo, a democracia é restringida tanto por fatores mecânicos como psicológicos.
Nos sistemas uninominais, os partidos com votação concentrada em certos distritos levam vantagem, podendo ser sobrerrepresentados em relação ao seu percentual nacional de votação, enquanto ocorre justamente o oposto com aqueles com votação mais difusa (que em geral é o caso de partidos pequenos ideológicos). Em outro texto, mostrei como a situação seria diferente no Reino Unido se lá se utilizasse um sistema proporcional (www.iuperj.br/publicacoes/forum/greis.pdf). A crítica, obviamente, não é nova: em Considerações sobre o governo representativo, John Stuart Mill, defensor da proporcionalidade, condenou o sistema majoritário uninominal, por ele configurar não só um governo da maioria, e não de todos, como um governo da maioria que pode ser uma minoria. De fato, o sistema uninominal possibilita até mesmo que um partido com menos votos, porém mais concentrados, eleja mais deputados do que outra legenda com mais eleitores; essa aberração já beneficiou uma vez o conservador Winston Churchill e, outra, o trabalhista Harold Wilson, que formaram governos contrários à decisão da maioria do eleitorado.
Os defensores dos sistemas uninominais, no entanto, não são ingênuos quanto à sua desproporcionalidade, mas lançam mão de outros argumentos, que julgam mais importantes. Afirmam freqüentemente que eles permitem maior “identificabilidade” – isto é, que o eleitor tenha maior capacidade de identificar quais são as possibilidades de formação de governo – e maior accountability – ou seja, facilitariam a identificação dos responsáveis pelas políticas, possibilitando que o eleitor os punisse ou recompensasse na eleição seguinte.
É óbvio que, como tende a gerar governos majoritários de partido único, tal sistema facilita tanto a “identificabilidade” como a accountability. A questão é que isso não é uma vantagem, pois só ocorre em função do desrespeito à vontade da maioria do eleitorado, ou, em outras palavras, em função de uma falta de democracia. De nada adianta identificar as opções e querer punir uma candidatura, se a vontade de uma determinada minoria é suficiente para definir sozinha o resultado a eleição.
Vale acrescentar que os sistemas mais proporcionais só têm um problema de “identificabilidade” no parlamentarismo. No presidencialismo, em que Executivo e Legislativo são eleitos separadamente, isso não ocorre, como é o caso do Brasil, onde a disputa claramente se concentra entre a opção liderada pelo PT e a comandada pela aliança do PSDB com o DEM. O problema, portanto, não é do sistema eleitoral e sim do sistema de governo parlamentarista. Shugart e Carey estavam atentos a isso em Presidents and Assemblies.
A accountability, por sua vez, pode ser compreendida não só no nível do governo, mas também no nível do parlamentar individual (que, no caso, seria o nível distrital). No entanto, tal accountability só poderia ocorrer, no máximo, na disputa por verbas para as localidades, a chamada pork-barrel, e não na condução de um projeto nacional coerente para o país. Além desse viés paroquialista, o sistema uninominal também favorece a política clientelista, pois, ao delimitar distritos pequenos, reduz os custos para se conseguir comprar votos de forma eficiente (ou, em outras palavras, para que os votos comprados sejam suficientes para garantir sua eleição).
Além disso, o sistema uninominal de plurality é altamente personalista. Um candidato com força eleitoral local tem – mantidas constantes as demais variáveis – muito mais liberdade do que em um sistema proporcional de lista para trocar de partido sempre que outra legenda lhe oferecer mais vantagens. Não há no first-past-the-post qualquer restrição para o cultivo do voto pessoal, pois as chances de um candidato ser eleito não são aumentadas ou diminuídas conforme se expande ou se reduz a votação do partido somados os outros candidatos a ele filiados (o que ocorre em todos os sistemas proporcionais de lista, inclusive no de lista aberta). É por isso que partidos com votações nacionais expressivas ficam de fora da Câmara dos Comuns britânica enquanto candidaturas independentes asseguram suas cadeiras com menos de 50% dos votos de seu distrito. Nas eleições gerais britânicas de 2005, por exemplo, o candidato independente Dr. Richard Taylor foi eleito para a Câmara dos Comuns com 18.739 votos, menos de 36% da votação do distrito de Wyre Forest, enquanto que quase 606 mil votos do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) foram insuficientes para ajudar a eleger qualquer dos seus 496 candidatos.
Os sistemas “distritais”, portanto, acumulam tantos defeitos que sua defesa só pode ser encarada como uma esdrúxula idiossincrasia: desproporcionalidade, possível derrota do mais votado, alijamento de minorias, personalismo apartidário, paroquialismo e esvaziamento de programas nacionais, e facilidade para o clientelismo. Se britânicos e estadunidenses querem preservar essa tradição arcaica, resta-nos esperar que isso não motive os brasileiros a ir na contramão da evolução democrática.
Guilherme Simões Reis é doutorando em ciência política no IUPERJ, bolsista CNPq.
10 comentários:
Mas e quem disse que essas distorões não deixam de acontecer no sistema eleitoral brasileiro, por exemplo?
Quais dados permitem afirmar que a desproporcionalidade dos cocientes eleitorais ou das coligações partidárias não geram distorções absolutamente anti-democráticas?
Dito de outra forma, a afirmação da hegemonia de um modelo sobre o outro, no vácuo, deixando de lado as tradições locais e uma série de outras dimensões, não seria um mito da 'engenharia constitucional'?
Super interessate essa discussão.
No Boa Política estamos tentando ter debates de alto nível como o que esse texto traz.
infelizmente, no momento que vivemos acho que esse assunto ficaria numa fila enorme, atrás de outras decisões urgentes, como o fim do voto obrigatório.
Olá Guilherme
Seu texto é muito oportuno, porque reforça o efeito personalista que vem junto com o voto distrital; em cidades pequenas, onde a clivagem do eleitorado assume uma forma de disputa por vezes fratricida, talvez estejamos diante de um risco de recrudescimento da face mais violenta do coronelismo; mas eu coloco o verbo no “subjuntivo” porque isso é SOMENTE uma especulação.
O sistema distrital nas formações de tradição britânica, do meu ponto de vista, reflete a atitude schumpeteriana daquelas pessoas com relação á política. Joe, the plumber, quer ruas limpas e impostos baixos. O resto que se “dane”. Nesse caso suspeito que a idéia de “evolução democrática” não é a mais adequada: acho que estamos diante de uma diferença cultural/estrutural (whatever, o que ficar melhor) de modo que fica meio genérico estabelecer um parâmetro.
Excelente a contribuição para o blog!
Um abraço
LM
Ótimo texto. Deveria ser lido por todos os reformistas que, por desconhecimento ou má fé, defendem mudanças no sistema político tendo por referência uma visão idealizada da experiência de outros países.
É um ótimo texto sobre os sistemas no atacado. Mas eu coloco uma discussão referente às distorções ou questões do modelo brasileiro no varejo. Refiro-me ao problema da transferência dos votos entre concorrentes intra lista:
De acordo com Anastasia, Correa e Nunes (2005), referência abaixo:
Estudando o mesmo fenômeno, porém na Câmara dos Deputados, Santos (2003)[30] constatou que também naquela Casa a transferência de votos é um fenômeno muito disseminado e concluiu que os legisladores brasileiros estão "em busca de uma constituency", já que eles "não sabem de onde vieram os votos que contribuíram para sua eleição" e não podem, portanto, orientar sua ação legislativa pelas preferências desse eleitorado que lhes é desconhecido.
Melo(2003) e Fleury (2004) discordam da argumentação de Santos e afirmam que, não obstante a operação do mecanismo de transferência de votos, os deputados permanecem cativos dos votos nominais que recebem, os quais vêm de suas constituencies reais, já que são estes votos que definem sua posição na lista partidária e, portanto, os colocam em posição de usufruir, ou não, das benesses advindas do voto virtual. Nas palavras de Melo:
"...o deputado sabe que na próxima eleição, por força da regra eleitoral, este voto virtual voltará desde que duas condições estejam presentes: a) o seu partido mantenha ou melhore o desempenho eleitoral e, b) ele mantenha ou melhore sua votação pessoal. E de uma coisa ele tem certeza: se a sua votação real, proveniente de uma constituency que ele conhece razoavelmente, não for confirmada na próxima eleição, ele irá despencar na lista do partido e sua carreira estará comprometida" (Melo, 2003:168).
Fleury (2004), por sua vez, apresenta evidências – para as eleições para deputados estaduais em Minas Gerais, em 1994, 1998 e 2002 – de que "é perfeitamente possível para os representantes identificarem a origem de seus votos até o menor nível possível de discriminação do mapa eleitoral, que é o da seção eleitoral" (2004:51-58). Isto lhes permite delimitar geograficamente seus "distritos reais" e, se esta for a estratégia mais racional para maximizar suas metas políticas (Arnold:1990), aprovar políticas que atendam os interesses paroquiais de sua clientela.
Aqui nos interessa explorar o mesmo fenômeno sob outro ângulo. Se for verdade que os representantes sabem onde estão os eleitores que lhes garantem a votação nominal - sem a qual eles não conseguem uma boa colocação na lista partidária e não usufruem as benesses do ‘voto virtual’ - o outro lado da história é o de que as maciças transferências de votos praticadas entre nós acabam por deixar a grande maioria dos cidadãos, estes sim, totalmente ignorantes a respeito do destino que foi dado aos seus votos. Supondo que o candidato no qual o cidadão votou foi derrotado e sabendo, como nós sabemos, que os votos derrotados são distribuídos pelo partido entre os primeiros colocados da lista, o problema que se apresenta refere-se aos atributos da representatividade e da accountability, próprios de toda ordem política que se pretende democrática. Retomando as diferentes concepções de Pitkin, o eleitor inconformado – trabalhando aqui, obviamente, com a suposição de um ator político sofisticado (Reis & Castro, 2001) – se perguntaria: afinal quem ele está autorizando, com o seu voto, a agir em seu nome, e de quem ele vai cobrar responsabilidade?
Fátima Anastasia, Izabela Correa e Felipe Nunes. Caminhos, veredas e atalhos: legislativos estaduais e trajetórias políticas. In Meneguello (org.) 2005.
Claro está que eu não utilizei essa longa passagem para ir na direção contrária do Guilherme. Apenas me utilizei da passagem para lançar uma preocupação posterior: supondo que eleitores se importem com seus representantes, esta distorção é aceitável ou, por outra, é funcional ao sistema? Acredito que a disfuncionalidade não é tamanha se considerarmos que o cálculo procura levar em conta a dimensão partidária na disputa.
Esses dias eu li um texto antigo mas muito informativo sobre essa discussão. K.O.May (1967) é um dos pais defensores do sistema majoritário nos EUA. Segundo ele, esse é o único sistema em que anonimato, neutralidade e fragilidade de empates, tres condições para a operação efetiva da democracia, são observados plenamente.
May não levou em conta, no entanto, que regras de super-maioria e segundo turno conseguem resolver problemas de proporcionalidade e atendem aos mesmos requisitos sem excluir minorias.
Mas há distorções que ainda precisam ser repensadas. As coligações são um bom exemplo disso.
Pessoal, agradeço muito pelos elogios e comentários.
É uma opinião muito difundida entre os cientistas políticos a de que não se pode considerar um sistema eleitoral objetivamente superior aos outros. De acordo com tal posicionamento, o julgamento sobre qual sistema eleitoral seria melhor sempre se realizaria a partir de determinando critério, o qual, por sua vez, seria subjetivamente escolhido. É isso o que se argumenta, inclusive, em trabalhos muito bons, como na notável obra “The politics of electoral systems”, de Michael Gallagher e Paul Mitchell, e no capítulo “Electoral systems”, de André Blais e Louis Massicotte, publicado no livro “Comparing democracies 2”, de Lawrence LeDuc, Richard G. Niemi e Pippa Norris.
A relativização sobre a qualidade dos sistemas eleitorais põe em cheque o próprio valor da democracia representativa. Esse ponto está na base da antidemocrática argumentação William H. Riker (“Liberalism against populism”), pela redução do Estado e da política em favor do laissez-faire: como não seria possível concluir que um sistema eleitoral fosse mais justo do que outro, e como uma mesma votação tem resultados diferentes dependendo de qual deles se adota, não se poderia considerar que a democracia eleitoral produzisse resultados justos.
Há na ciência política uma divisão entre os preocupados com a substância da democracia, que não dão grande importância para as eleições, e os interessados no método, que estão atentos aos resultados das eleições mas não à qualidade da representação. É preocupantemente incomum encontrarmos cientistas políticos em busca de identificar os melhores métodos para aproximar o resultado da substância. Esse racha não é favorável à democracia e está intimamente ligado ao esvaziamento da discussão sobre a qualidade dos sistemas eleitorais, que em geral é promovido usando-se a tradição como argumento.
Quanto ao Brasil, as distorções do seu sistema eleitoral também devem ser condenadas, e não considerar que fazem parte da nossa tradição. Minha opinião é a de que não deveria haver um mínimo de 8 e máximo de 70 deputados por distrito eleitoral e a de que deveríamos ter um só distrito ou, pelo menos, um número pequeno de distritos grandes. Não há nenhuma razão além da tradição para adotarmos cada estado como um distrito. Outra opção (que não necessariamente excluiria uma das anteriores) seria a de utilizarmos um outro nível de distrito (um outro layer) para reduzirmos as distorções. Também acho bom acabar com as coligações partidárias para as eleições proporcionais parlamentares. Ah, e é importante dizer: todas essas medidas deveriam ocorrer mantendo-se o sistema proporcional!
Defendo o sistema proporcional de lista aberta e considero que é falso que ele leva mais a uma disputa intrapartidária do que interpartidária. Se o partido for bem, um número maior dos seus candidatos consegue se eleger. É claro que haverá eleitores que votarão em candidatos que não se elegerão, mas eles estarão realmente desperdiçando seus votos se houver a transferência para colegas do partido? Só concluiremos isso se ignorarmos a dimensão partidária, se considerarmos que os membros de um mesmo partido nada têm a ver uns com os outros. A solução, portanto, não é tirarmos o direito dos eleitores de escolherem o nome dos candidatos e muito menos reduzirmos as eleições a uma disputa pela hegemonia em currais eleitorais, e sim destacarmos o caráter partidário do voto na lista. Um pequeno ajuste na lista aberta resolve isso, como eu já argumentei em outros textos.
Abraços para todos!
O voto obrigatório também pode ser uma vantagem, porque compromete o eleitor/votante com a sua escolha...a democracia não é só direitos, exige deveres do cidadão...e num país com as características do Brasil, e com um processo democrático ainda recente, faz sentido...noutros países sem voto obrigatório, como aconteceu recentemente em França, em eleições regionais, os níveis de abstenção são "obscenos"!...Ora, a democracia não é algo garantido e adquirido...se o cidadão se demite de votar, pode colocar em risco/cheque, a prazo, o próprio sistema democrático!...
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