[California Politics.
Bill Ray. Life]
Emerson Urizzi Cervi
Cientista Político
Professor da UFPR e UEPG
Apresentados brevemente os pontos considerados positivos na proposta de reforma eleitoral(post anterior, abaixo), passo agora a discutir os pontos negativos do texto, considerados dessa forma por permitir, direta ou indiretamente, a participação em campanhas políticas de pessoas com denúncias, processos na justiça e que não prestaram contas de despesas em disputas anteriores. Estes são definidos aqui como “políticos picaretas”. Com isso, não quero dizer que todos os políticos sejam corruptos, objetos de denúncia ou maus pagadores. O que se pretende apontar é que a reforma eleitoral abre espaço para esse tipo de comportamento, permitindo uma ampliação do número deles no total de representantes públicos. Apenas lembrando, a proposta foi votada com a justificativa de que regulamentaria as campanhas na internet. Esse novo e importante suporte tecnológico dialógico permite um contato permanente entre representante e representado. A possibilidade de comunicação mediada e dialógica (em dois sentidos) não tinha sido possível até então em democracias de massa, visto que meios massivos como rádio e televisão têm menor capacidade de interação entre emissores e receptores do que a internet.
O interessante é que nesta regulamentação da internet foi incluído um dispositivo que permite que candidatos sub judice consigam e não possam ter cassado o seu registro da candidatura. Até agora, nos casos em que o candidato era denunciado e a justiça eleitoral considerado procedente a queixa, a candidatura era anulada. A partir da aprovação da reforma eleitoral, isso não será mais possível. Um efeito prático da mudança pode ser dado a partir do que aconteceu na eleição para prefeito do município de Londrina (segundo maior colégio eleitoral do Paraná) em 2008. O então candidato ex-prefeito Antonio Belinatti teve o registro de sua candidatura cassado pelo TSE por denúncia de corrupção em mandatos anteriores. Se a reforma eleitoral estivesse valendo em 2008, Belinatti, mesmo denunciado, seria o atual prefeito de Londrina.
Além disso, a proposta de regulamentação do uso de internet em campanhas eleitorais também prevê que as dívidas feitas e não pagas por candidatos durante a campanha poderão ser transferidas para os órgãos partidários, que assumirão as contas, desimpedindo que o candidato tenha sua contabilidade aprovada pela justiça eleitoral, mesmo sendo devedor. Ou seja, a principal punição existente até agora aos candidatos maus pagadores de fornecedores de campanha, que era a rejeição das contas e conseqüente inelegibilidade nas próximas disputas, deixa de existir. Até aqui, temos dois retrocessos no texto em discussão no senado que permitem a ampliação da “picaretagem” na política.
Outro retrocesso, nesse caso para os partidos políticos, é que a falta de prestação de contas à justiça eleitoral sobre o uso dos recursos do Fundo Partidário pelos diretórios regionais não suspende mais o registro do Partido nacional. Até aqui, os diretórios nacionais dos partidos cobravam seus diretórios regionais, pois a não prestação de contas poderia prejudicar o partido em todo o território nacional. A partir da nova regulamentação, o diretório nacional só teria o registro suspenso caso deixasse de prestar suas próprias contas à justiça. Com a distinção entre diretório nacional e nos regionais, a legislação permitirá que em alguns Estados o partido esteja com registro aprovado e em outros, suspenso. Isso é um retrocesso, pois reduz o caráter de partidos nacionais no Brasil – o que, diga-se de passagem, já não é tão forte nas condições atuais.
Ainda em relação aos partidos políticos, a reforma prevê uma ampliação do percentual do Fundo Partidário que pode ser usado para pagamento de pessoal pelos partidos políticos. Atualmente, esse percentual é de até 20%. Os outros 80% devem ser aplicados em estrutura e programas de incentivo à participação política, assim como em campanhas eleitorais. A proposta é ampliar de 20% para 50% o limite para pagamento de pessoal. Ou seja, de cada dois reais que o poder público destinar aos partidos políticos, um poderá ser para pagar funcionários fixos e contratados. É um retrocesso em duplo sentido. Primeiro porque favorece o crescimento (mais do que o dobro) da burocracia partidária, que na maioria das vezes, é pouco profissionalizado e resultado de apadrinhamento político. Segundo, e principalmente, reduz o volume de recursos disponíveis aos partidos para ações relacionadas à sociedade. Quanto menos contato os partidos políticos tiverem com a sociedade, menor será a confiança do cidadão nas instituições partidárias.
Outros pontos negativos da reforma eleitoral também dizem respeito à organização das próprias campanhas. O texto original proibia o uso de imagem e som de adversários em HGPE de candidatos. Esse dispositivo claramente favoreceria os candidatos à reeleição, pois os opositores não poderiam mostrar manifestações anteriores com promessas não cumpridas. Uma emenda de plenário do PSDB excluiu esse artigo na votação da Câmara, mantendo, portanto, a regra atual.
No entanto, a Câmara aprovou que o candidato à disputa majoritária pudesse aparecer no horário eleitoral da disputa proporcional. Hoje é proibido que o candidato a prefeito ocupe espaço na propaganda de candidatos a vereador e o mesmo se dá com concorrentes a governador, senador e presidente da república. No entanto, mesmo proibido, os partidos e coligações encontravam formas indiretas de utilização do horário eleitoral. A tabela a seguir mostra o número de vezes em que os candidatos a prefeito de Curitiba foram citados diretamente em horário destinado a candidatos a vereador de 2008. Em média, temos 9,2% do tempo com citação de candidato a prefeito, apresentando grande variação entre os partidos políticos. Isso significa que mesmo proibido de aparecer no HGPE para vereador, os candidatos a prefeito ocuparam cerca de 10% do horário dos vereadores.
Com essa mudança, corremos o risco de aumentar ainda mais o processo de “colonização” do espaço destinado à disputa proporcional pela majoritária. Assim, desde o momento da campanha o legislativo brasileiro mostra-se cada vez mais fraco diante de um poder executivo forte. Isso é um retrocesso, pois o debate em relação à disputa legislativa não pode ser totalmente vinculado aos interesses dos candidatos à eleição majoritária.
Outro ponto negativo já existente na legislação eleitoral brasileira e que foi mantido na proposta de reforma diz respeito a ordem de votação na urna eletrônica. Mesmo conhecendo a prevalência do poder Executivo sobre o Legislativo na opinião pública brasileira (em alguma medida por responsabilidade dos próprios legisladores, como apresentado no parágrafo anterior), determina-se que o eleitor vote primeiro no cargo proporcional e depois no majoritário. Para os eleitores menos informados, que partem do pressuposto da maior importância do poder Executivo sobre o Legislativo, essa ordem é ilógica. Quem trabalha em dia de votação nas seções eleitorais testemunha pessoas tentando votar primeiro no candidato a prefeito, governador ou presidente da república. Como ele precisa concluir o voto antes de passar para o próximo e não sabe que a votação começa com o cargo legislativo, muitas vezes – sem querer – ele acaba digitando o voto em legenda quando pretendia votar para o cargo Executivo. Em eleições disputadas, o efeito prático é imperceptível, pois os erros tendem a se distribuir entre os candidatos e anulam-se. No entanto, em disputas onde há um candidato majoritário com ampla vantagem nas preferências eleitorais, o partido dele tenderá a ser favorecido pelo voto de legenda, pois os erros são maiores em direção a este partido. Para evitar distorções entre a vontade do eleitor e o resultado final da disputa, a legislação brasileira precisa corrigir o equívoco da sequência do voto na urna eletrônica – o que é algo meramente formal.
Por fim, ainda como ponto negativo, a reforma eleitoral não estabelece nenhum teto de gastos em campanhas políticas. Inexistente hoje continuará a ser livre o volume de gastos dos candidatos durante as disputas eleitorais. Esta liberalidade é negativa no nosso caso, pois reproduz as desigualdades econômicas do País, também na esfera de representação política. O estabelecimento de um “teto” de gastos por candidato, vinculado ao número de eleitores de cada distrito eleitoral, seria um avanço para o sistema representativo brasileiro. Pelo menos enquanto houver os altos índices de desigualdade social no Brasil. No entanto, como o teto de gastos não favorece a “picaretagem” política, o texto desconsiderou. Em resumo, o quadro abaixo apresenta os principais pontos considerados positivos; nem positivo, nem negativo; e negativos da proposta em discussão no Senado Federal.
Pontos Positivos:
- Regulamenta uso da internet por partidos e candidatos, separando o que é conteúdo produzido por políticos (sujeitos às penalidade eleitorais), de conteúdos produzidos por usuários da rede mundial de computadores (o que por natureza não pode ser regulado);
- Exige apresentação de documento com foto pelo eleitor no momento da votação, o que reduz fraudes;
- Permite doações não mais apenas em dinheiro, o que diminuirá a pressão por fraudes contábeis nas campanhas eleitorais;
- Definição de 5% do Fundo Partidário para ações políticas de incentivo à participação das mulheres, com punições para os partidos que não fizerem esses investimentos;
- Proíbe candidatos a cargos legislativos de participar de inaugurações públicas nos três meses anteriores às eleições;
- Disciplina a propaganda eleitoral em espaços públicos, tais como ruas e calçadas;
- Inclui os nomes de suplentes de candidatos ao senado na propaganda política, o que fornecerá uma informação a mais para a tomada de decisão do eleitor.
Nem positivos, nem negativos:
- Fim da verticalização das coligações partidárias, pode desconsiderar as especificidades regionais, porém, nunca teve efeito prático;
- Estabelece a possibilidade de realizar debates com pelo menos dois terços dos candidatos, o que pode ser bom no caso de grande número de concorrente ou ruim quando exclui candidatos com chances eleitorais reais;
Pontos Negativos:
- Impede a cassação de registro de candidato sub judice;
- Permite a realização de registro de candidato que responde a processo de inelegibilidade;
- Distingue diretórios regionais de nacional para a prestação anual de contas do Fundo Partidário, fazendo com que os diretórios nacionais deixem de ser solidários no caso de irregularidades com as contas dos diretórios regionais;
- Aumentou o percentual de gastos do fundo partidário com pessoal de 20% para 50%, o que reduz recursos para ações políticas com a sociedade e favorece o crescimento da burocracia partidária pouco profissional;
- Permite ao candidato majoritário aparecer no espaço de propaganda em rádio e televisão da disputa proporcional, o que tende a aumentar a predominância do poder Executivo sobre o Legislativo brasileiro;
- Mantém a ordem de votação na urna eletrônica com voto proporcional antes do majoritário, o que continuará causando confusão em parcela do eleitorado menos informada e gerando distorção entre a real vontade do eleitor e o resultado final da votação;
- Não estabelece teto de gastos para as campanhas eleitorais, o que permite a manutenção de distorções econômicas de outras áreas da sociedade brasileira no sistema de representação política.
Como afirmei no início, o texto pretende trazer à discussão elementos da reforma eleitoral que não receberam destaque por parte da mídia brasileira. Não se trata de desqualificar a proposta, mas de demonstrar que além dos avanços, a reforma também apresenta retrocessos, amplia a distância entre sistema partidário e sociedade além de favorecer candidatos com algum tipo de restrição legal, seja na justiça eleitoral ou na comum. De qualquer maneira, não devemos nos esquecer que a proposta foi apresenta para votação no dia 30/6/09 e aprovada em plenário em 8/7/09, o que é um recorde de tramitação, dada a cultura de “engavetamento” das propostas de reformas no Congresso Nacional. Essa agilidade deve-se, em grande medida, ao fato de que nas últimas eleições, por falta de legislação pertinente, o judiciário legislou. Para evitar uma continuidade da “judicialização” de regras nas disputas eleitorais, a Câmara de Deputados aprovou a proposta a “toque de caixa”, o que pode explicar alguns retrocessos apontados acima, mas não os justifica.