segunda-feira, 9 de março de 2009

Os partidos políticos brasileiros têm ideologia?*

[A sign on the Avenida Atlantica
proclaiming the Brigadeiro Gomes
as pretty. Rio de Janeiro, 1946.
Thomas D. Mcavoy. Life]


Celso Roma**


De acordo com o senso comum, os partidos da atualidade – assim como do passado – são pragmáticos por excelência: em vez de ideias, têm interesses; em vez de recrutarem filiados tendo por critério a adesão às bandeiras, facilitam a entrada indiscriminada em seus quadros; em vez de implantarem o seu programa, preocupam-se antes em preencher cargos e em receber verbas do governo. Essa percepção sobre nossos partidos é transmitida por gerações como uma verdade inquestionável. Mas ela pode ser facilmente questionada.

Longe de serem baluartes do bem comum, os partidos têm desempenho positivo o suficiente para serem reconhecidos como tais. O mais importante quesito que eles atendem se refere à ideologia. Como grupos políticos, os partidos têm sistemas de ideias que os diferenciam quanto aos assuntos da economia, política e sociedade. Tal afirmativa pode ser corroborada pelas enquetes realizadas na Câmara dos Deputados entre 1987 e 2001**.

No Congresso Constituinte de 1986 a 1988 configurou-se uma clivagem ideológica entre os partidos. Em que pese o caráter incipiente dos partidos da época, devido ao retorno do pluripartidarismo sete anos antes, é possível identificar uma esquerda (PT, PDT, PCB, PCdoB), um centro (PMDB) e uma direita parlamentar (PTB, PFL, PDS, PDC, PL, PSC). O Centro Democrático – ou Centrão – foi constituído por parlamentares de centro e direita, que rivalizou com um bloco formado por partidos de esquerda. Mais: os deputados federais se revelaram capazes de se posicionarem uns aos outros no espectro da ideologia.


Congresso Constituinte (1987-1988)
E S P E C T R O I D E O L Ó G I C O
esquerda centro direita
PT PDT PCdoB PCB PSB PMDB PDS PDC PTB PFL PL PSC


As divergências mais significativas entre os partidos ocorreram em torno do perfil das instituições democráticas em construção. Enquanto a direita, cujo bloco era composto pelo PDS, PFL, PTB, PDC, PL e PSC, procurava restringir o grau de abertura democrática das novas instituições políticas – por exemplo, defendendo que o papel das Forças Armadas continuasse a abranger também a ordem interna –, a esquerda, constituída pelo PT, PDT, PCdoB, PCB e PSB, tentava expandi-lo, seja ampliando o direito de voto ou defendendo que o texto fosse submetido a referendo antes de entrar em vigor. Além de criticarem o presidencialismo, que contava com o apoio majoritário apenas pelo PDT e PTB, os esquerdistas apoiavam outras mudanças, como a instituição do voto facultativo, a ampliação do direito ao voto aos cidadãos com idade entre 16 e 18 anos e a adoção de um Poder Legislativo unicameral. No entanto, um centro político já podia ser observado, através do consenso em torno de propostas menos polêmicas, como o direito de voto à baixa oficialidade das Forças Armadas, ou mesmo ao parlamentarismo, mais aceito entre os congressistas que no interior da sociedade. O PMDB encampou esse centro parlamentar.

Na nova ordem constitucional, marcada pelo surgimento e fusão entre as legendas, o espectro ideológico foi levemente alterado. O ano de 1993, previsto para a Revisão Constitucional ensaiou uma ampla discussão sobre a economia, que, num primeiro momento, sinalizou a liberalização do papel do Estado e do mercado. Nessa ocasião se iniciou uma virada decisiva na conjuntura política do país, apoiada por uma coalizão de centro-direita montada para a disputa das eleições presidenciais de 1994 e a formação do governo Fernando Henrique Cardoso em dois mandatos consecutivos.

Essa agenda opôs os partidos, criando blocos parlamentares de esquerda e centro-direita. O PT e os pequenos de esquerda rejeitavam a possibilidade de aprovar uma emenda para permitir a reeleição dos mandatários do Poder Executivo. Em 1993, PMDB e PFL conseguiram criar um consenso mínimo em torno dessa proposta, enquanto o PSDB se manteve dividido ao meio, aderindo a ela apenas em 1995. PT, PDT e os pequenos partidos de esquerda defendiam a garantia dos direitos dos trabalhadores à aposentadoria pelos critérios definidos. PFL, PSDB, PPB e PMDB propunham mudanças na aposentadoria, embora discordassem sobre a fórmula a ser empregada. PT e seus aliados defendiam o direito irrestrito à greve, inclusive para os funcionários públicos, a unificação do salário mínimo e a manutenção do tamanho das terras indígenas. Os demais partidos aceitavam restringir o direito de greve, principalmente dos setores essenciais, quebrar a estabilidade no serviço público em alguns setores, regionalizar o salário mínimo e alterar o critério para demarcar as terras indígenas. De um lado, o PSDB e o PMDB apoiavam a quebra do monopólio da Telebrás. A contenda entre os partidos envolveu também a entrada de capital estrangeiro no setor do petróleo, embora a esquerda tenha se dividido quando o setor em debate era o de telecomunicações. PFL, PSDB, PPB e PMDB propunham modificar ou retirar a definição de empresa de capital nacional da Constituição, contrastando com os partidos de esquerda, que defendiam mantê-la.


Nova ordem constitucional (1989-2002)
E S P E C T R O I D E O L Ó G I C O
esquerda centro-direita
PT PDT PCdoB PCB PSB PMDB PPR/PPB PSDB PTB PFL PL


Em linhas gerais, os partidos brasileiros assim se diferenciaram em termos de ideologia em dois momentos marcantes da política: a feitura da Constituição Federal de 1988 e os primeiros treze anos de atividade legislativa sob a nova ordem constitucional.

* Esta análise recobre apenas o período 1987-2001. O autor informa que ainda não dispõe dos dados necessários para a análise do período do Governo Lula.

**Para baixar o paper que embase esta análise (com as evidências e recursos utilizados) em formato PDF, clique aqui.

** Celso Roma é cientista político pela USP.

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante, nunca tinha visto esse tipo de material sobre os partidos. Entretanto, mesmo sem ter em mãos os dados mais recentes, como parece se dar a relação de aproximação entre o PPS e o PSDB, na maioria dos estados, uma aliança certa para 2010? Pelos dados apresentados aqui, não parece uma aliança ideológica.
Ou seja, parece que algumas alianças são pragmáticas/circunstanciais (em primeiro lugar, do ponto de vista cronológico), para depois se tornarem ideológicas (supondo que o PPS passe a adotar a agenda mais liberalizante) para encorpar sua posição atual?

Embora não haja dados, podemos discutir esse traço que contraria o argumento proposto...

Anônimo disse...

Ao longo dos últimos anos, alguns partidos (e.g. PPS) mudaram o seu perfil ideológico. Isto pode ser observado no mapa de votações da Câmara dos Deputados. Os deputados do PPS, que antes votavam mais próximos do PT e do PDT, agora estão posicionados mais ao centro. Ou seja, o PPS se afastou do bloco da esquerda. Posicionado ao centro, o partido pode se costurar aliança com qualquer partido. Recentemente, o PPS está se alinhando com o PSDB. Tanto, que a imprensa ventilou a possibilidade de o PPS se fundir com os tucanos. Os partidos brasileiros, assim como os de outros países, podem alterar suas plataformas de ação. O caso dos partidos social-democratas europeus é exemplar. Vide (1) Herbert Kitschelt 1994"The transformation of European social democracy". Nova York, Cambridge University Press. (2) Frank Wilson 1994 “The sources of party change: the social democratic parties of Britain, France, Germany and Spain”, in K. Lawson, How political parties work perspectives from within, Londres, Praeger Published.
Celso Roma