A indignação seletiva de Gilmar Mendes
[Lawyer Bill Justice. April 1951. George Silk, Life]
Renato M. Perissinotto*
Sempre que posso, insisto numa tese: se há algo que pode ser realmente calamitoso para uma sociedade e desesperador para os seus membros, mais do que crises econômicas e problemas políticos conjunturais, é um sistema judiciário incapaz de fornecer aos cidadãos, sobretudo aos desprovidos de recursos sociais, econômicos e simbólicos, proteção e defesa contra abusos de qualquer espécie.
O Judiciário brasileiro, é trivial dizer, tem enormes problemas: morosidade, corrupção, falta de recursos humanos, excessivo formalismo. Muitos deles escapam inteiramente ao controle de seus integrantes, quase todos funcionários diligentes de uma estrutura pública perpassada por dificuldades e muita pressão social. Há, no entanto, um tipo de problema cuja solução (ou agravamento) depende, ao menos em parte, da postura dos membros do Poder Judiciário. Refiro-me à crise de legitimidade por que passa esse Poder na medida em que os índices de desconfiança da população em relação à Justiça brasileira são altos.
Não pretendemos, evidentemente, generalizar, mas há alguns membros impolutos do Judiciário brasileiro que contribuem ativamente para aumentar a sensação, amplamente presente na população mais pobre, de que, no Brasil, nem adianta recorrer à Justiça porque ela só beneficia aos mais ricos. O campeão dessa atitude é, certamente, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes.
Duas intervenções recentes desse senhor são particularmente notáveis: a sua defesa do Estado de Direito a partir das algemas colocadas no respeitável empresário Daniel Dantas e a sua crítica às supostas ações violentas do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, dizendo que o financiamento público desse movimento deve ser discutido já que “é de morte de pessoas de que estamos falando”, conforme declarou a um importante telejornal. Que fique claro desde já: o autor deste artigo não defende transformar sentimentos de vingança (pessoal ou social) em Justiça nem que se matem pessoas pelo simples fato de elas trabalharem para os adversários. Portanto, se um indivíduo tem o direito de não ser algemado e execrado em público, que se garanta a ele esse direito, e se é preciso resolver o problema agrário por meio de ações contundentes, que se cuide para preservar a vida de quem quer que seja.
No entanto, o Ministro Gilmar Mendes é o mais bem acabado exemplar do caráter seletivo da indignação de nossas elites e do seu cinismo irritante. Com relação ao problema das algemas, há década que milhares de pessoas, pobres e negras, vêm sendo humilhadas em público em programas policiais Brasil afora sem que esse senhor tenha se dignado a mobilizar a sua respeitável figura para fazer uma intervenção pública a respeito do assunto. Sabemos que há leis que impedem tais procedimentos e que a justiça brasileira garante direitos básicos a todos os cidadãos. O problema é que, efetivamente (e o advérbio é importante para funcionar como antídoto contra a mentalidade formalista de advogados e juízes), esses direitos são sistematicamente desrespeitados. Tal desrespeito, porém, só mobiliza politicamente o Ministro (e alguns intelectuais) quando cometido contra um membro das classes dominantes (sim, isso ainda existe!). O cinismo de vir a público defender o “Estado de Direito” somente quando um tipo como Daniel Dantas é ofendido e quando sabemos que ele, o Estado de Direito, simplesmente não existe de fato para grande parte da população, é de deixar furioso qualquer um minimamente comprometido com os mais básicos princípios do ideal republicano.
O que falar então da humanitária preocupação do Ministro com a vida das pessoas supostamente (mais uma vez o advérbio é importante, pois o Ministro fala como se o caso já estivesse resolvido) mortas pelo MST? Há quanto tempo trabalhadores são assassinados por esse país, tanto por grandes fazendeiros como por agências do Estado que seriam responsáveis por “proteger a vida humana”? Alguém se lembra de alguma manifestação pública (e política, pois qualquer manifestação pública do Presidente do Supremo é, ao mesmo tempo, política) em relação a essas outras mortes? Por que se indignar apenas agora e somente em relação a esses pontos?
Por essas e por outras é que a impressão que se tem da Justiça brasileira não é nada boa. Gente como Gilmar Mendes torna pouco crível a idéia de que somos todos iguais perante a lei. Esse senhor é astuto porque assume sempre a estratégia de apresentar a defesa dos dominantes como se fosse defesa do Estado de Direito, bastando para isso vir a público falar das maravilhas desse Estado somente quando os dominantes são prejudicados. Ao assumir posturas ativas e públicas em defesa dos dominantes, o Ministro contribui enormemente até mesmo para o aumento da violência, tanto individual quanto aquela supostamente perpetrada pelos movimentos sociais. Afinal, de que adianta recorrer a uma Justiça cujo máximo representante se esforça em mostrar à população que ela, a Justiça, só se mexe mesmo quando a movimentação dos de baixo ameaça os de cima? Não seria a violência uma reação racional ao caráter seletivo da Justiça brasileira?
Renato M. Perissinotto é cientista político e professor da UFPR.
Um comentário:
realmente....contundente.
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