terça-feira, 15 de abril de 2008

Notas sobre a corrida presidencial no Paraguai: candidatos, discursos, dúvidas...

Por José Szwako*

Há “apenas” 61 anos o Partido Colorado está à frente e dentro do Estado paraguaio. Mesmo após o fim do regime stronista em 1989, a Associação Nacional Republicana, como também é conhecida a organização, logrou preservar para si a Presidência da República, em certa medida, com a ajuda indireta das idiossincrasias e das cisões no interior da oposição tradicional (Partido Liberal Radical Autêntico), bem como da esquerda. No contexto político dos anos 1990, a agenda de transição no Paraguai ficou fortemente reduzida à realização periódica de eleições, sem avançar a níveis elementares na constituição de um Judiciário forte e independente e, como se vê, sem um revezamento mínimo entre elites políticas. Com a corrida presidencial de 2008, porém, a velha hegemonia colorada, se não entra de fato em jogo, parece dar fortes sinais de cansaço.

Para falar destas eleições é preciso voltar a fins de 2005, quando Nicanor Duarte Frutos, atual presidente do Paraguai, anunciou candidatura inconstitucional à presidência do Partido Colorado. A manipulação do Judiciário com vistas à ocupação da chefia do partido, ao mesmo tempo em que ocupava a presidência da República, foi “a gota da água”, na expressão de L. Bareiro, “que [em março de 2006] de fato levou à mobilização” nacional. Durante esse ano, a articulação de oposição, também orientada contra a tentativa de re-eleição de Duarte Frutos, se deu em dois níveis: por um lado, levando à conformação da ’Resistência Cidadã’ de cunho mais civil-popular e, por outro lado, à ’Concertación Nacional’, rótulo que agrupava no anti-coloradismo a extrema-direita (UNACE), centro-direita (Partido Pátria Querida), além da oposição tradicional (PLRA). A posição de destaque ocupada pelo então Bispo Fernando Lugo nesse processo fez dele uma “figura aglutinante” capaz, não apenas de unificar a oposição, mas de competir efetivamente contra o Partido-estado colorado. Em fins de 2006, Lugo renuncia à função religiosa e anuncia sua intenção de candidatura. Na segunda metade de 2007, o PLRA passa a apoiar o ex-bispo em troca de indicar vice-presidente da chapa, e, no bojo da coalizão de oposição denominada ’Alianza Patriótica para el Cambio’ (APC), Lugo entra oficialmente na disputa eleitoral pelo Partido Democrático Cristão.

Como notou D. Abente, as desventuras de Duarte Frutos em 2006 e a posterior composição da Aliança colocaram o Paraguai “à beira da transformação”. Hoje, em um cenário bem distinto, a corrida presidencial tem quatro principais candidatos. O ex-general Lino Oviedo (estrategicamente solto da prisão em setembro de 2007, acusado de tentativa de golpe em 1996) concorre pela legenda ultracolorada da União Nacional dos Cidadãos Éticos, UNACE. Algo entre Perón e Chavez, Oviedo conta com o apoio de parte dos estamentos militares e de parte da população rural miserável, e sua retórica é permeada por pontos fascistas, enfatizando lemas como ‘compromisso e segurança‘ ou ‘Deus, Pátria e Família’. No meio das farpas trocadas com Duarte Frutos, e frente às controvérsias quanto à liberdade do ex-general, o ritmo incessante de ofensas pessoais dirigidos contra Fernando Lugo permite ver a função de Oviedo no sentido de deslegitimar a ‘Alianza‘ e de tentar uma migração de votos para fora dela.

Candidato pelo Partido Pátria Querida, Pedro Fadul é um empresário bem-sucedido com base de apoio sobretudo urbana – ponto fraco num país altamente rural como o Paraguai – e cujo discurso conservador, embora agrade parcelas votantes como industriais e agro-produtores, não chega a seduzir o voto de massa. Sem chances reais de vitória na reta final, o candidato de centro-direita afirma publicamente que não pretende apoiar a Lugo, pois, segundo ele, “não se trata de mudar de cor [em alusão ao rubro-colorado versus azul-liberal], se trata de mudar o sistema”.

Com o apoio irrestrito de Duarte Frutos, a ex-Ministra da Educação, Blanca Ovelar, teve sua candidatura após um conturbado e duvidoso processo nas internas do Partido Colorado, quando disputava a vaga com o ex-vice-presidente do Paraguai, L. Alberto Castiglioni. A campanha de Ovelar conjuga elementos de modernização cultural (especialmente por meio da idéia de ter uma mulher no poder, como que ligando o País aos exemplos de Argentina e Chile) e o tradicional populismo do partido oficialista. A estratégia eleitoral colorada repete uma velha fórmula: intimidação e extorsão de funcionários públicos; agressões físicas, algumas delas fatais, contra a militância opositora; comícios nas seccionales com churrasco e transporte gratuitos, para apenas citar algumas. Já no nível da disputa para o Senado, a estratégia consiste em impedir que o eleitorado saiba quem compõe a ‘Lista1‘, talvez porque os altos níveis de reprovação do presidente atual, primeiro candidato dessa lista, preocupam e chegam a roubar votos de Ovelar. Além disso, o coloradismo conta com uma base histórica, porém amorfa: desde uma pequena burguesia produzida durante o regime militar até frações do mundo rural desmobilizado, passando por empresas ‘públicas‘ e pela burocracia estatal partidarizada, sua estrutura e base (militante ou não) surpreendem pelo alcance amplo e enraizado.

A candidatura do carismático Fernando Lugo sintetiza a frustração social ligada aos níveis de pobreza e de corrupção que atravessam o país. Fortemente influenciado pela Teologia da Libertação e advindo da atuação junto aos movimentos campesinos, o discurso de Lugo alterna posições de centro e de esquerda light: mantendo a pobreza como pano de fundo ao tratar de temas como reforma agrária e justiça social, sua campanha permanece estrategicamente ligada ao lema “a mudança segura”. O tom de oposição moderada da ‘Alianza‘ pode ser entendido em relação a três pontos: i) um eleitorado urbano com forte imaginário anticomunista, herdado do stronismo; ii) a idéia difundida pelo oficialismo de que a chegada de Lugo à presidência significaria uma ‘caça às bruxas‘ contra colorados e contra funcionários públicos afiliados; e iii) a difícil equação ideológica entre aqueles que compõem a ‘Aliança patriótica para a mudança‘, a saber, políticos profissionais (liberais e de esquerda), intelectuais, campesinato organizado, católicos divididos, universitários, profissionais urbanos, além de alguns colorados dissidentes. A gama de interesses e de posturas ideológicas dentro da APC (por exemplo, entre o tradicional PLRA e o Movimento Popular Tekojoja), tanto quanto sua capacidade de construção de agenda com prováveis maiorias opositoras no Congresso e no Senado, são algumas das dúvidas levantadas por uma ‘Alianza‘ que abarca mais de 15 legendas e cuja base de apoio é de difícil definição, dado que alcança frações ideológica e socialmente muito heterogêneas do eleitoradoe fundo e.

O tema que agiu como catalisador da corrida e da expectativa popular em torno dos presidenciáveis, apesar de ter perdido fôlego nas duas últimas semanas, foi Itaipu. Enquanto a propaganda do ex-militar falava em “respeito aos contratos”, Lugo ficava numa incômoda posição: para fora, abrir mesas de diálogo, para dentro, trata-se de soberania e justiça. No País e fora dele, diversos analistas concordam que o Tratado de Itaipu é, como afirmou A. Nickson, “escandalosamente injusto para o Paraguai”. A hidrelétrica de fato esquentou a discussão entre votantes. Entretanto, ninguém no processo foi mais enérgico e mais anti-colorado que o ‘ABC Color‘, um dos principais jornais paraguaios, que, não apenas afirmou que um “preço justo em Itaipu pode acabar com a indigência paraguaia em um ano”, como sugeriu, em primeira página, um suposto clima tenso entre os países ligados pela Ponte da Amizade (as matérias foram publicadas nos dias 06 e 09 de abril, respectivamente).

Os pontos críticos da corrida presidencial ficam por conta da escassa exposição de programas substantivos de governo e, especialmente, por conta dos altos níveis de desconfiança no processo e na Justiça eleitoral. Neste último registro, as dúvidas recaem sobre a paquidérmica maquinaria do Partido Colorado, acionada seja por meio de sua ampla capacidade logística para literalmente levar votantes até as urnas, seja através da prática ainda usual da compra de votos. Em contrapartida, são positivas as formas civis de mobilização que pretendem fornecer mais informação aos eleitores, contribuir para a transparência eleitoral, ou fomentar a participação ativa e massiva do eleitorado (exemplos são os seguintes sítios eletrônicos) aquieneselegimos.org.py e saka.org.py.

Na reta final, a menos de 10 dias da eleição, discurso e investimento colorados se intensificam: nas seccionales e nos comícios, falas de tom bélico pedem vigília dos correligionários e o partido dá início à sua contagem de votos a partir de instituições públicas. Os meios de comunicação falam em mais de R$300 mil investidos apenas pelo oficialismo na última semana da disputa. Enquanto isso, a base opositora canta “já ganhou” nos comícios, mas sorri apreensiva devido às inquietações em torno das mesas de votação e também devido à expectativa de ampla participação (quanto maior a participação, maiores as chances de Lugo) no próximo domingo.

O fato é que nunca na história paraguaia a chefia do Executivo passou pacificamente de um partido a outro por vias eleitorais legítimas. As dúvidas não apenas quanto ao resultado das eleições, mas em torno do processo político como um todo impedem um prognóstico seguro, mas uma coisa pode ser dita: o Paraguai pós-Stroessner não é mais o mesmo, o coloradismo e a oposição, também não.

*José Szwako é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde pesquisa as transformações na relação Estado-Sociedade Civil na Transição Paraguaia. Está no Paraguai como observador internacional da eleições.

Nenhum comentário: