quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Lula e a Democracia

Mais um escândalo de corrupção surge no governo: o uso indevido dos cartões corporativos. Juntamente com o fato, as especulações: “mas isso já acontecia na era FHC”; “isso só pode ser coisa do governo Lula”; “vamos fazer uma CPI que abale as estruturas”; “não, vamos excluir a vida pessoal dos dois presidentes”; enfim, em meio a essa saraivada de especulações e debates sobre quem está com a razão, se os governistas ou os oposicionistas, gostaria de lançar a seguinte questão: como anda a democracia em meio a tudo isso? Melhor dizendo, podemos afirmar que a consolidação democrática no Brasil está indo de “vento em popa”? Digo isso porque alguns cientistas políticos e demais “entendidos” em política no país afirmam que a democracia começou na eleição de Collor, em 1990. Existem até aqueles que dizem que a democracia só começou a se concretizar no país a partir da primeira eleição de Lula, quando foi respeitada a “vontade do povo” e garantida a liberdade democrática (principalmente pelo fato de ser permitido um ex-metalúrgico ocupar a presidência da República).
Pois bem, usando-me de dados disponíveis sobre o comportamento eleitoral brasileiro nas últimas duas eleições recorro ao blog para colocar dados interessantes e fazer algumas reflexões sobre a relação do presidente Lula e a democracia no Brasil. Farei uma análise comparativa entre duas recentes pesquisas sobre adesão democrática, realizadas no ano de 2002 e 2006. Ambas foram organizadas e executadas pelo projeto Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB), sob coordenação do Centro de Estudos de Opinião Pública (CESOP) da Unicamp em parceria com o Comparative Study of Electoral System (CSES). O ESEB é um survey pós-eleitoral que realizou entrevistas domiciliares com eleitores em todo o Brasil. A amostra nacional foi de 2.513 pessoas entrevistadas em 2002 e de 1.000 entrevistados em 2006[1].
O primeiro dado[2] que apresento diz respeito à adesão democrática. Em 2002, 69% dos entrevistados achavam a democracia a melhor forma de governo, enquanto que em 2006, o percentual é de 71%. Trata-se de um bom percentual que indica certa satisfação com o regime no país.
Seguindo a apresentação dos dados comparativos, os entrevistados tiveram de responder se mesmo tendo problemas a democracia é ainda a melhor forma de governo. Novamente, os números indicam grande satisfação: em 2002, 77% responderam que sim; em 2006, 75%. Perguntados sobre o nível de satisfação com a democracia no país, temos 30% de brasileiros satisfeitos ou muito satisfeitos em 2002; e 43% em 2006. Há, portanto, um crescimento da avaliação positiva do grau de funcionamento do regime democrático por parte dos entrevistados[3]. E aqui, chamo atenção para o fato de que a democracia está cada vez mais, com o passar do tempo, aprofundando-se no país e isso talvez influencie nos resultados, pois começa a haver certo enraizamento dos valores democráticos entre os brasileiros; mas não deixamos de destacar que 13 pontos percentuais de diferença (na satisfação) em apenas quatro anos é significativo.
Os entrevistados também tiveram que dar sua opinião se faz diferença quem está governando o país ou não. A grande maioria concorda que de fato faz diferença qual é o presidente da República em questão. São 71% em 2002 e 79% em 2006. Nesse caso, há claramente uma associação entre o sucesso de um governo e a satisfação com o regime.
Vejamos agora a quantas anda a avaliação das instituições brasileiras. Sobre a atuação do governo federal, os brasileiros avaliam da seguinte forma: em 2002, 54% avaliam positivamente o governo enquanto que em 2006, esse percentual sobe a 64%. Percebemos, portanto, uma melhora na atuação do governo federal nesses quatro anos, segundo os entrevistados.
Foi perguntado também se algum partido político representa a maneira de pensar do entrevistado. Os percentuais crescem entre os dois períodos: 56% responderam que não em 2002 enquanto que em 2006 esse percentual foi de 67%. O descrédito dos eleitores brasileiros nos partidos é enorme. Em relação à avaliação dos partidos políticos, os dados também não são nada animadores: em 2002, a avaliação negativa é de 56%; percentual que cresce para 62% em 2006. Fato interessante é que em 2006 o eleitorado brasileiro avalia muito bem o governo federal, mas não relaciona tal fato aos partidos.
E como andaria a avaliação do Congresso Nacional? A pesquisa mostra que os números só pioram em quatro anos. A avaliação negativa que era de 51% em 2002 sobe para 62% em 2006. Mais uma vez, podemos pensar na separação que os eleitores fazem entre o governo (na figura do presidente) e os demais candidatos que eles elegem no momento do sufrágio. Isto é, independente da agremiação partidária ou da coligação a qual pertence o chefe de governo naquele momento, ele não é relacionado à sua base aliada no Congresso Nacional. Daí a alta taxa de aprovação do governo em contraste com a altíssima taxa de avaliação negativa do Congresso.
A polícia também foi avaliada na pesquisa. Os percentuais são os seguintes: 56% dos entrevistados avaliam positivamente a polícia em 2002; em 2006, esse percentual é de 63,5%. A maioria dos brasileiros, portanto, avalia a polícia de forma positiva. No entanto, o percentual mais alto é o de 2006, o que denota que nos últimos quatro anos essa instituição aumentou o seu prestígio frente ao eleitorado brasileiro. Não tenho acesso a esse tipo de informação na base de dados, mas gostaria de inferir que talvez o que tenha pesado nessa avaliação, seja a atuação da polícia federal que durante o governo de Lula vem atuando de forma nunca antes vista.
A justiça não é tão bem avaliada assim. São 54% de entrevistados que a avaliaram negativamente em 2002; e 46,5% em 2006. Há uma inversão aqui, já que os números de quem avalia positivamente a justiça esteve abaixo dos 50% em 2002 e vai a 52,5% em 2006. Apesar dos percentuais de avaliação positiva serem mais baixos que os da polícia, mesmo assim vemos que também houve uma melhora na avaliação da justiça nesses últimos quatro anos. Novamente, a inferência não poderia deixar de ser o fator “governo Lula”, já que sob o seu mandato, o Ministério Público (tanto em âmbito federal como estadual) tem agido com freqüência e isso se faz notar aos olhos do público brasileiro.
E os militares? Mais de vinte se passaram do regime militar. Como os brasileiros avaliam a atuação dos militares? Em 2002, 60% do eleitorado avaliam-na de forma positiva; em 2006, esse percentual é de 67%. Há um ligeiro crescimento no percentual de boa avaliação em 2006. Prestemos atenção: esse dado não nos autoriza a dizer que o eleitorado brasileiro é a favor de uma volta dos militares ao poder, tampouco podemos dizer que os militares sejam altamente rejeitados pelos entrevistados. Pode-se apenas sinalizar que mesmo depois de tanto tempo, os militares mantêm certo prestígio junto à população brasileira, sem que isso represente chances concretas de que em uma eventual crise política haja uma retomada do poder por eles. Logicamente que em ciência política a especialidade não é prever os fenômenos políticos, mas todos os dados acima apresentados sobre adesão democrática e avaliação das instituições democráticas denotam que a democracia está se consolidando no país.
Agora vou mostrar o último dado deste texto: a avaliação comparativa dos governos FHC e Lula. Na verdade, trata-se da avaliação do último governo de FHC (1999-2002) e do primeiro de Lula (2003-2006). Fernando Henrique tem uma avaliação negativa para 49% dos entrevistados, enquanto Lula apresenta um percentual de apenas 23,5% nesse quesito.
Em relação à avaliação positiva de cada governo, os números se invertem: 49% para FHC e 75,5% para Lula. Há uma clara diferença entre esses dois governos na concepção dos entrevistados. Lula é altamente aprovado ao final de seu primeiro mandato; Fernando Henrique tem um bom percentual, mas muito abaixo de seu sucessor.
Sabemos que nossa história política recente vem mostrando que o segundo mandato de um governante qualquer (seja em nível municipal, estadual ou federal) acaba sendo avaliado de forma diferente ao seu primeiro mandato. Geralmente, o primeiro mandato é mais bem avaliado pelos eleitores brasileiros. Mas o fato é que mesmo assim, os números de Lula são mais significativos que os de Fernando Henrique[4].
Os dados apontam para a seguinte direção: Lula, de fato, parece ter influenciado as respostas acerca da avaliação de determinadas instituições (governo, polícia, justiça, por exemplo) e da adesão ao regime democrático. Como já falamos em um momento do texto, a tendência é que os brasileiros tenham uma adesão cada vez maior à democracia, mas o fato de termos analisados um período de apenas quatro anos, faz-nos refletir que a relativa diferença para mais na pesquisa de 2006, tem sim significativa influência da figura pública de Luís Inácio Lula da Silva.
Isso ficou claro principalmente ao compararmos os percentuais de avaliação dos governos de Lula e Fernando Henrique Cardoso. De certa forma, chega a ser surpreendente tal resultado com todos os escândalos sobre corrupção no ano de 2005. Mas como os dados mostram, os brasileiros tendem a não relacionar a figura do presidente com as demais instituições democráticas.
Logicamente que todos os dados aqui apresentados permitem apenas algumas inferências, as quais podem ser reforçadas a partir do momento em que se estabeleça uma série histórica e freqüente de dados acerca da adesão à democracia e avaliação de suas instituições.
E agora? Qual será o reflexo de mais esse escândalo no governo federal, na avaliação dos brasileiros? Esperemos para ver numa próxima pesquisa. Por enquanto só podemos dizer que o ‘homem’ continua forte...

[1] Essas informações foram retiradas do site: http://www.nadd.prp.usp.br/cis/index.aspx.
[2] Gostaria de informar que todos os percentuais estão arredondados a fim de facilitar a leitura.
[3] Principalmente se levarmos em conta o grau de insatisfação: em 2002, 61% estavam nada ou pouco satisfeitos; em 2006 esse percentual cai para 41%.
[4] Para reforçar esse dado, destaco as pesquisas do Instituto de Pesquisas Datafolha ao final dos dois mandatos de FHC e do mandato de Lula. Os números são os seguintes para a avaliação Ótimo/Bom: 35% para o primeiro mandato de FHC e 26% para o segundo; Lula ficou com 52% de avaliação positiva em seu primeiro mandato. Esses dados podem ser encontrados no site: http://datafolha.folha.uol.com.br/.

Julio Gouvêa é mestrando em Ciência Política na UNICAMP.

4 comentários:

Bruno Bolognesi disse...

Grande Julião! Desatolou o dedo no melhor estilo: DADOS e mais DADOS! Excelente seu post, só gostaria de colocar uma ressalva. A democracia sempre vai bem se os eixos emprego e renda (leia-se, bom desempenho econômico) vai bem.
E um comentário só pra fazer graça. Essa discussão claramente política sobre o uso dos cartões corporativos é uma discussão sobre a concepção de Estado no Brasil. Cartão corporativo não é política pública, mas quem liga??

Um abraço.

Julio Gouvêa disse...

É bem dessa Bruno, além de tudo, o 'homem' pegou um excelente momento internacional da economia para o Brasil.
Grande abraço.

Anônimo disse...

Caro Julio,

a quantas andam os valores democráticos no Brasil pós-Lula, eu nao sei. Sei que o meu Paraguai e o partidao Colorado andam assustados com um padre que vai ganhar a presidência em abril. Isso se, e somente se, Oviedo-velho-de-guerra nao der outro golpe [espero que nao pois vou estar lá vendo a votação] e se o Paraná - SIM, o estado do Paraná - nao intervier na soberania paraguaia. Aliás, passa essa pro André. Podemos fazer uma aposta: quem leva a taça dessa vez - Padre ou partidão? O que ninguém sabe é se ainda há a possibilidade de golpe - Dahl tava certo mesmo... Um abraco, Zé.

Julio Gouvêa disse...

Pode deixar Zé, o André vai ver o seu comentário e tenho certeza que responderá, eheh...
Mas o seu Paraguai, de fato, é um caso a ser olhado com bastante atenção!
Grande abraço.