[Pierre Bourdieu. Photos d'Argelie. 1960]
Lucas Massimo
Até a crise dos subprimes, desencadeada em 2006, para afirmar a heteronomia do mercado financeiro diante do mercado “real” era necessária pedir uma série de “licenças teóricas”, e recorrer à versão mais antiquada do conceito de classe social. Depois da crise, a co-relação entre o mundo das finanças e o mundo da produção não apenas ficou evidente, como assumiu seu colorido mais dramático com o desemprego e o desalento de uma população extremamente endividada. Nesse momento de rescaldo da crise, a correlação entre estes dois circuitos de valorização de capital (finança e produção) é tão evidente, chega a ser tão óbvia, que a experiência esvazia a reflexão, e de novo, precisamos pedir “desculpas” para pensar em termos de “classe social”.
Ora, mas afinal de contas, porque esse conceito importa? Ou melhor, para que ele serve? E ainda, para que ele não serve?
Na última quarta-feira (28/04/2010) o COPOM determinou uma alta na taxa básica de juros da economia Brasileira, a SELIC, que passou de 8,75% para 9,5% ao ano. Subtraindo a inflação, temos uma taxa real de 4,5% de juros ao ano. Como amplamente divulgado pela mídia especializada, essa taxa de juros é mais elevada entre as 40 principais economias do mundo (Na Índia, que pratica a taxa mais baixa dessa lista, a taxa real é 9,7% negativo; segue o link da fonte no final da postagem). Como os juros indicam o preço do dinheiro, a sua elevação sugere que se coloque mais dinheiro em aplicações financeiras do que na “economia real”. Em resumo, e de acordo com a arquitetura do sistema monetário internacional, as aplicações que lá gorjeiam, não gorjeiam como cá.
Uma semana após a elevação doa SELIC o jornal Britânico Financial Times (FT), no editorial de 05/05/2010, afirma que “Luck has played a large role in the region’s recent good fortune. Scarred by past crises, its banks spent much of the noughties at home rather than venturing abroad. They therefore avoided the sub-prime junk that so poisoned their peers in the west.” Ora, atribuir o sucesso ou insucesso de uma economia nacional aos ventos da sorte, é no mínimo uma explicação superficial: o Brasil não está sangrando pela crise financeira internacional porque é o primo pobre do capitalismo neoliberal, ponto. Como a crise tem se disseminado com mais vigor na “economia real” dos primos ricos, nossa tapioca ainda dá para o gasto. Mas isso não explica coisa alguma.
Um ensaio de interpretação deve pelo menos levar em conta o tipo histórico de capitalismo – o neoliberal – e sua relação com os Estados nacionais (esse blog publicou algo a respeito no tópico “A crise financeira e o Estado”). Além dos fatores exógenos, é preciso pensar as especificidades da conjuntura brasileira, para se contrapor com substância à peça ideológica do folhetim britânico.
Ao se pensar em termos de classe social, podemos articular as clivagens “externo x interno” e “centro x periferia” através de uma noção-chave: “modelo de desenvolvimento econômico dependente e subordinado”. Segundo essa idéia, o capital financeiro brasileiro ocupa uma posição inferior na estratificação das classes financeiras em escala global, mas apesar disso, sua atividade acumula mais capital do que no circuito produção e consumo – de resto, uma propriedade do neoliberalismo em geral, como tipo histórico de formação capitalista. Como resultado de crise financeira global, toda a capacidade de investimento das economias capitalistas foi drasticamente afetada, e os circuitos mais arrojados de valorização de capital financeiro foram subitamente esvaziados. Exatamente porque posicionada às margens desses circuitos, a economia brasileira não foi diretamente afetada pela seca de crédito. Como se trata de modelo de desenvolvimento subordinado, os mecanismos de crédito brasileiros não estavam atrelados aos “ativos podres”, outrora tão rentáveis nas carteiras dos primos ricos, e a crise não implicou em fechamento completo dos canais de investimento.
Já sobre o caráter dependente do modelo econômico, pode-se questionar até onde estamos diante de uma característica do modelo brasileiro e até onde não estamos lidando como características de uma economia internacional fortemente integrada. Num caso ou noutro, o ponto é que a maioria esmagadora da nossa pauta de exportações é formada por produtos de baixo valor agregado, ou seja, produtos cuja cadeia produtiva não enseja um “ciclo endógeno de inovação tecnológica” – o que em termos muito superficiais poderia ser traduzido por uma cadeia produtiva que prescinde de uma população criativa e educada. Para efeito de comparação, e segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior, a exportação de petróleo bruto em abril de 2010 cresceu 182,7% com relação a abril de 2009, ao passo que o aumento na exportação de produtos manufaturados no mesmo período foi bem menor: automóveis (13%), celulares (8,9%) e aviões (7,1%). Ou seja, inserção da economia brasileira ainda é extremamente dependente de commodities, do petróleo em particular. O que se depreende disso? Um arranjo entre classes sociais cuja dinâmica não é controlada endogenamente, em uma palavra, uma economia dependente.
Poder-se-ia objetar que a crise fragilizou os principais mecanismos de ação da finança globalizada, porém isso é ponderável, na medida em que a arquitetura do sistema financeiro internacional segue inalterada: a distribuição dos custos da crise é extremamente diferente em cada contexto nacional, e o arranjo entre as classes é um bom indicador para estabelecer tais distinções – que o diga o diretor do departamento da economia da FIESP, Paulo Francini, em entrevista à radio CBN. Para escutar a entrevista
, clique aqui.
Assim, idéias como classe social servem para resolver algumas confusões da ideologia econômica dominante:
- como podemos ter a taxa de juros mais alta do mundo se a economia brasileira vai muito bem, obrigado!?
- como atribuir ao acaso o sucesso do modelo brasileiro se ele é um experimento de sucesso fabricado nos laboratórios do FMI?
Essas confusões se resolvem com interpretações tributárias do marxismo teórico, e nesse marco, a idéia de classe social se nos apresenta como uma ferramenta poderosa.
Nesse nível de abstração mais geral idéias como classe social ainda não produzem versões economicistas da estória, entretanto, ao nos aproximamos um pouco mais do mundo político, essas categorias requerem mediações. A elevação da SELIC nesse momento “pré-campanha-eleitoral” é um importante aceno: ela nos indica que apesar do discurso orientado para o capital produtivo (e frações) de Serra e Dilma, o eixo do modelo econômico não está em disputa. Mas essa conclusão está longe de ser neutra em termos político-partidários: com isso, se está a um passo de esvaziar os ganhos que programas como o bolsa família, o reuni, o luz para todos, entre muitos outros, representam para milhões (sublinhe-se), milhões de brasileiros. Uma análise política séria deve observar a especificidade dos problemas políticos, e não esvaziar objetos políticos em problemas cuja raiz advém do pensamento econômico.
Lucas Massimo é pesquisador do Grupo de Pesquisas sobre Neoliberalismo e Relações de Classe, e mestrando em Ciência Política pelo IFCH/UNICAMP.
Fontes