domingo, 5 de dezembro de 2010

II Fórum Brasileiro de Pós-graduação em Ciência Política - UFSCar 20, 21 e 22 de julho de 2011




Esta aberto o call of paper para o II Fórum Brasileiro de Pós-graduação em Ciência Política. Os resumos podem ser submetidos pelo site www.forumcienciapolitica.com.br . Alunos de pós-graduação podem submeter papers e alunos de graduação painéis.
O II Fórum ocorre na Universidade Federal de São Carlos durante os dias 20, 21 e 22 de julho de 2011.
Informações: secretaria@forumcienciapolitica.com.br

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Entrevista com Sebastião Velasco sobre política externa do governo brasileiro



Vitória de Dilma é garantia de estabilidade na América do Sul
Do Site do Zé Dirceu.

A análise é de Sebastião Velasco, cientista político e professor da Unicamp.

O papel desempenhado hoje pelo Brasil no contexto mundial, sua liderança na América Latina e as inovações da política externa do governo Lula, imprimindo posição mais soberana frente aos países economicamente hegemônicos, são temas destacados pelo cientista político e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Sebastião Carlos Velasco Cruz.

Especialista em Ciência Política, com ênfase em Economia Política e Relações Internacionais, nesta entrevista, Velasco explica porque “a vitória da presidenta Dilma Rousseff é uma garantia de estabilidade política na América do Sul”. Uma previsão feita com base nos resultados da política internacional praticada nos últimos oito anos pelo governo Lula, do qual, Dilma representa a continuidade.

Em sua análise, o professor da Unicamp -- pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) -- avalia, ainda, as inovações da política externa brasileira, a relação do Brasil com os Estados Unidos, a importância do MERCOSUL; e alerta, sobretudo, para a necessária postura soberana conquistada pelo país frente a um contexto internacional cada vez mais multipolar.

[ Dirceu ] Velasco, qual a inovação da política internacional adotada pelo governo Lula? Em quais aspectos ela se difere, por exemplo, da postura do governo anterior?

[ Velasco ] Até a chegada do governo Lula, em linhas gerais, a política externa do governo FHC era regida pela ideia de que o Brasil, país continental, poderia almejar um papel relevante, porém, modesto no cenário internacional. Isso tinha como implicação um perfil muito baixo no relacionamento com o mundo, em especial com os Estados Unidos. Privilegiava a diplomacia comercial e adotava uma atitude muito cautelosa na defesa dos interesses do país. A crítica que a oposição e o PT faziam à essa política incidia nestes pontos.

A política externa do governo Lula mostrou sua diferença antes mesmo de o governo se constituir, já na resposta dada à crise venezuelana: Marco Aurélio Garcia (assessor especial de relações internacionais da Presidência da República) viajou ao país como emissário pessoal do presidente eleito. Houve, portanto, um apoio para dar conta daquela situação que ameaçava a Venezuela com o espectro da guerra civil. Logo depois, a atitude afirmativa da política externa do governo Lula expressou-se na posição do Brasil durante a crise que culminou na invasão do Iraque.

A novidade não foi tanto a condenação deste ato de violência. Isso o ex-presidente Fernando Collor tinha feito em 1991, quando da Guerra do Golfo. O Brasil não a apoiou, ao contrário da Argentina. O que houve de inovador no governo Lula foi a desenvoltura da diplomacia brasileira e da atuação pessoal do presidente, que participou ativamente da frente internacional de oposição à guerra.

Como bem disse o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o Brasil não tem a alternativa de ser um país normal, uma potência média como a Espanha ou a Holanda. Pelo seu tamanho, população, dotação de recursos, ou ele supera suas enormes disparidades sociais – e ao fazê-lo passa a ocupar no mundo um espaço proporcional a seu tamanho -, ou ele não supera esses entraves e se transforma em um país problemático.

[ Dirceu ] Como você avalia a relação EUA e Brasil, em especial, a questão dos tratados de livre comércio?

[ Velasco ] Historicamente, desde o século XIX, o Brasil mantém uma boa relação com os EUA. Em alguns momentos, como nos governos de Getúlio Vargas e do general Ernesto Geisel marcamos nossas diferenças. No caso do Getúlio Vargas, inclusive, como forma de encaminhar uma negociação favorável aos interesses brasileiros. A implantação da indústria brasileira, por exemplo, é resultado disso.

Na América do Sul, os EUA sempre viram o Brasil como um país de grande influência. Na realidade, o problema da relação entre os dois países não é a relação propriamente dita entre eles, mas a relação dos EUA com o mundo. Desde o final do século XIX, os EUA se voltaram para fora com um impulso muito grande, ocupando espaços e caminhando rapidamente para o exercício de uma posição hegemônica, condição que conquistam efetivamente após a II Guerra Mundial. No sistema de alianças que Washington montou nesse período, o Brasil é um país que tem um papel localizado, regional. Isso ficou muito evidente durante o golpe de 64, e no que se passou daí em diante.

O estremecimento que houve nos anos 70, com o Geisel e a política externa do seu governo – o “pragmatismo responsável” conduzido pelo chanceler Antônio Azeredo da Silveira – se deu porque o Brasil começou a se afastar do script e passou a exibir uma pauta de conduta autônoma. O episódio emblemático desta postura foi o reconhecimento da independência das colônias portuguesas na África.

O alcance desses conflitos, porém, era limitado. Apesar de ocasionalmente marcadas por problemas, nossas relações com os EUA nunca chegaram perto de um rompimento, ou de uma situação de hostilidade. Esse é o contexto no qual se dá o episódio do surgimento da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

A questão ALCA

A ALCA surge nos anos 1990, quando o Brasil estava realizando um movimento de enorme importância cujo resultado foi a constituição do MERCOSUL. Com ele, houve uma inflexão no relacionamento sempre delicado com a Argentina e tivemos a transformação de uma relação problema em uma aliança capaz de alavancar os dois países no plano internacional e, ao mesmo tempo, contribuir para a consolidação da transição democrática que estava em curso em ambos. Esse processo, como se sabe, foi muito mais complicado na Argentina do que no Brasil.

Então, quase que simultaneamente o primeiro Bush, presidente George Bush (pai), lançou a iniciativa, a ALCA, para as Américas: a proposta de se criar no hemisfério uma grande área de livre comércio que iria do Alaska à Patagônia. A diplomacia brasileira percebeu claramente essa iniciativa como uma ameaça ao seu modesto – ainda que importante – projeto de integração no Cone Sul.

Em 1994, essa ideia se converteu num acordo formal, assinado por todos os presidentes que participaram da reunião de cúpula em Miami. Desde então, o governo brasileiro passou a negociar a ALCA, ainda que com muitas reservas. Este processo termina em 2005, com a evidência de que ele não era viável e - naquilo que poderia ser - não interessava mais a nenhuma das partes. Então, a ALCA é uma carta que saiu do baralho.

[ Dirceu ] A ALCA começou no governo FHC e terminou no governo Lula. Quais as diferenças quanto a condução da questão nos dois governos?

[ Velasco ] Durante esse longo processo de negociações, há uma nítida diferença de comportamento entre o governo Fernando Henrique Cardoso e o governo Lula. A diplomacia brasileira nunca ficou encantada com a ideia da ALCA, mas nunca imaginou a possibilidade de dizer não à proposta. No governo Lula, a questão da ALCA já se apresentou de uma forma completamente diferente. Ela tinha sido tema da campanha eleitoral e houve mobilizações importantes da sociedade brasileira, com abaixo assinados contra a sua instituição.

Por outro lado, a América Latina havia se transformado enormemente. Já tínhamos Hugo Chávez na Venezuela, a crise argentina, enfim, as condições para a realização do que os EUA intentavam com o projeto da ALCA, em meados da década (2005), já não estavam mais presentes.

Brasil e Argentina: da rivalidade à aliança

[ Dirceu ] Qual a importância do MERCOSUL para o Brasil e para o continente?

[ Velasco ] O MERCOSUL é uma iniciativa de enorme importância, não apenas pelo seu significado econômico, mas pela mudança no relacionamento político entre o Brasil e a Argentina que se cristaliza no bloco. A necessidade imperiosa desta mudança já se fazia sentir ao longo dos anos 70.

Nessa época, o renomado cientista político Hélio Jaguaribe escreveu um trabalho sobre a inserção do Brasil no mundo, em que dizia exatamente que a condição para o nosso país ampliar seu grau de liberdade no relacionamento com os EUA era a transformação da rivalidade histórica com a Argentina em uma aliança sólida.

A importância do MERCOSUL, então, é enorme. A América do Sul hoje é completamente diferente do que era no passado. Os planos, os cenários de guerra com que as Forças Armadas de um lado e do outro trabalhavam não existem mais. No plano comercial e econômico, a Argentina é um dos principais parceiros do nosso país.

O MERCOSUL viveu um problema muito grande, que tem relação direta com as crises financeiras no final da década de 90 - a desvalorização do Real (1998), sobretudo, e mais adiante a crise dramática do peso argentino. Essas crises levaram os governos a tomar uma série de medidas defensivas. Mas o MERCOSUL continuou vivo e é o elemento decisivo, a mola propulsora, a plataforma de lançamento de um projeto maior que é a integração sul-americana.

O contrapeso da China

[ Dirceu ] Em relação a Ásia e a China, como você vê essa região e esse país hoje no mundo e o envolvimento deles com os EUA?

[ Velasco ] A China é a grande novidade da virada do século. É um país que se constrói como um contrapeso à potência ou potências hegemônicas. Terminada a Guerra Fria, os EUA detiveram não só uma posição de supremacia inconteste no sistema financeiro e uma base industrial muito forte, mas também uma predominância militar indiscutível.

Essa situação deu margem a um enorme debate, logo no inicio dos anos 90, após a Guerra do Iraque. Tratava-se de saber se essa situação era circunstancial ou se era uma estrutura permanente, se caminharíamos para um processo de desconcentração do poder mundial. Isso que era objeto de especulação nos anos 90, no final da primeira década do século XXI, parece uma questão superada.

Os EUA continuam sendo o país predominante, mas o sistema caminha para uma configuração multipolar e o pólo que cada vez mais ascende como o contrapeso é a China. De saída, pelo seu dinamismo econômico fora do comum, nunca visto. Nós vivemos algo parecido no Brasil, mas a China é um país muito maior, com uma população de mais de um bilhão de habitantes. Os números absolutos são incomparáveis.

Há alguns anos, li em um estudo do embaixador Amaury Porto de Oliveira, grande conhecedor da China, que o número de trabalhadores sazonais – que saem do campo e circulam pelo país em busca de trabalho – era de cerca de 80 milhões. Uma coisa impressionante. É como se fosse um México todo. Então, os números absolutos são outros.

O Brasil cresceu muito, a taxas comparáveis (à China), em certo período. Mas a China vem mantendo taxas de crescimento “milagrosas” há décadas. Isso envolve transformações estruturais muito grandes. A China integra a economia asiática, é o principal parceiro da Índia, Coréia, mesmo do Japão etc. Mas não é só isso, tem uma face financeira deste crescimento – fundos soberanos, aplicação em papéis americanos, investimentos em ativos reais, etc. Então, entre os dois países, EUA e China, existe uma relação de complementaridade e de tensão neste campo.

Agora, a China tem uma enorme dependência enérgica e investe pesadamente no mundo todo - na África e na América Latina - em busca do que é necessário para a alimentação deste sistema econômico tão dinâmico. O problema do relacionamento da China com os EUA e a Europa é que ela não faz parte do sistema de segurança montado pelos EUA.

O Japão também cresceu de forma extraordinária em passado não muito distante. Só que o Japão não apenas fazia parte do sistema de alianças dos EUA, como mantinha tropas americanas em seu território. Então, o dinamismo econômico do Japão não tinha o mesmo impacto, nem o significado geopolítico da expansão chinesa.

Como a China não está na órbita política dos EUA, o Estado chinês não pode apostar no mercado para regular o abastecimento dos recursos essenciais a seu sistema econômico. Porque os circuitos desse mercado são protegidos pela força militar da potência hegemônica, e nada garante que essa força não venha a se voltar contra a China em dado momento. Então, o tratamento da questão energética pela China não é e não pode ser estritamente econômico. As considerações de segurança se fazem presentes nas relações comerciais e nos investimentos. Os chineses tratam de estabelecer relações políticas com seus parceiros, e, mais recentemente, preparam-se para garantir militarmente as rotas marítimas vitais para a sua economia.

Forças progressivas na AL

[ Dirceu ] Depois de duas décadas de vitórias eleitorais, de avanços que se expressaram nas rebeliões e refundações com Constituinte da Venezuela, Equador, Bolívia; de avanços políticos e institucionais na Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, nós tivemos o golpe de Honduras, a eleição de Juan Manuel Santos (Colômbia) e de Sebastián Piñera (Chile). Como você vê essa realidade combinando isso com a política agressiva norte-americana? Como vê as vitórias e o período de mudanças progressistas e essa nova correlação de forças que vai se estabelecendo?

[ Velasco ] Eu chamaria atenção, em primeiro lugar, para o caráter contraditório do desenvolvimento. Houve a vitória da direita no Chile depois de 20 anos do governo da Concertación. Mas ela era uma esquerda muito comportada e distanciada das experiências que você citou e que marcaram esta década na América Latina. Além disso, o Piñera fez um movimento de tomada de distância daquilo que foi o elemento definidor das políticas de direita (ditadura Pinochet, principalmente), ao reivindicar o voto da população chilena, que em sua grande maioria apoiava a presidenta Bachellet.

Tenho a impressão de que no Chile houve de um lado, uma condução prudente da oposição de direita e, de outro, um desarranjo na Concertación que impediu que uma presidenta com grande popularidade se envolvesse na campanha eleitoral. Ela se manteve à margem e só no final do 2º turno se manifestou.

A Bolívia viveu uma crise que quase levou o país a uma guerra civil, no final de 2008. Ela foi contornada com a ajuda muito importante de um mecanismo diplomático criado pela diplomacia brasileira: a União das Nações da América do Sul (UNASUL). Na sequência, o presidente Evo Morales vence plebiscitos e depois se reelege com grande maioria.

Então, temos situações muito diversas. Mesmo a Colômbia é uma interrogação, porque o (presidente Joaquim Manuel) Santos não é exatamente o (ex-presidente Álvaro)Uribe. Vamos ver como as coisas evoluem. A decisão da Suprema Corte colombiana em relação às bases militares dos EUA no país foi muito importante.

A impressão que tenho é que a América do Sul está em movimento e eu não vejo com pessimismo o que acontece. As preocupações maiores da diplomacia americana não estão voltadas para este subcontinente. Os EUA têm problemas muito graves para tratar no Oriente Médio, no Afeganistão, sem falar dos seus problemas internos. Mas essa dinâmica – integração econômica e intensificação das comunicações políticas na América do Sul – desperta alguma inquietação.

O papel militar na política externa

[ Dirceu ] Como você vê a relação entre poder militar no Brasil e a política externa?

[ Velasco ] Houve uma transformação muito grande do papel militar na política brasileira. Desde a Proclamação da República, os militares foram elementos decisivos na condução dos assuntos internos. Exerceram esse papel, aqui e em outros lugares, tomando posição em relação aos acontecimentos da política nacional, estabelecendo projetos e eventualmente dando golpes.

Após a transição, sobretudo depois da Constituinte, essa dimensão da relação militar e civil foi contida. Nós passamos por crises importantes no país e pela primeira vez os militares não estiveram presentes como um fator relevante.

A minha percepção – embora não possa afirmar, pois não faço pesquisa sobre o tema – é que os militares perceberam claramente que estamos no caminho do fortalecimento do Estado nacional, que tem como premissa a promoção social e a retomada do crescimento. Esta tarefa o governo vem realizando muito bem nesses últimos 8 anos. Isso é algo que casa com suas expectativas.

[ Dirceu ] Qual sua avaliação sobre a posição brasileira em relação ao Irã? O que você diria da sentença de apedrejamento aplicada contra Sakineh?

[ Velasco ] O que há no Irã e também no Afeganistão é uma interpretação distorcida da lei islâmica que para alguns tem essa implicação incompatível com qualquer noção minimamente aceitável de convivência humana no mundo moderno. A atitude do governo brasileiro foi de se manifestar contra o ato de apedrejamento. A opinião pública brasileira e de quase todo o mundo repudia essa violência.

O que é importante dizer a este respeito é que não é no Irã apenas que há violações e restrições à liberdade em geral, ocorre a discriminação contra a mulher. Basta pensar na Arábia Saudita. Há claramente, neste caso, o fato deplorável que é a utilização do escândalo como peça de uma campanha que é muito anterior a ele, contra o Irã.

[ Dirceu ] Como você vê a posição dos EUA contrária à pesquisa nuclear do Irã para fins pacíficos? Por que eles dizem exatamente que não é com esses fins que o país desenvolve essa política?

[ Velasco ] A questão nuclear é muito simples: formou-se desde 1968 um cartel, com o tratado de não proliferação nuclear, um projeto de congelamento do poder mundial, como dizia o Embaixador Araujo Castro. Embora nunca tenha tido a pretensão de desenvolver armamento nuclear, o Brasil sempre o denunciou como desigual e inaceitável.

Agora, esse tratado de não proliferação nuclear envolvia, até mesmo para que fosse aceito, algumas cláusulas. Entre elas, estava o compromisso dos países industrializados de se desarmarem e de transferirem ou facilitarem a difusão do conhecimento da tecnologia nuclear para fins pacíficos ao conjunto dos signatários.

Na prática, isso não aconteceu. O Brasil, desde 1977, teve problemas com os EUA porque o propósito de construir usinas nucleares através de acordos com a Alemanha esbarrava no veto americano. É exatamente este veto, agora, que cai sobre o Irã.

Naquela região extremamente crítica, tensa e nuclearizada – Israel é um país dotado de cerca de 200 ogivas nucleares, se não me engano - os EUA procuram bloquear o programa nuclear pacífico do Irã, alegando que não é pacífico e que não foi provado que era pacífico. O problema de fundo é que, dominado o ciclo do enriquecimento do urânio, a transição do uso pacífico ao militar da energia nuclear é muito fácil. É esta possibilidade que afeta o equilíbrio estratégico na região.

O Brasil, como a Turquia – que negociou um acordo com o Irã, rejeitado pelos EUA - preocupa-se com a escalada, que tem como estágio final o emprego da força, seja por iniciativa de Israel, seja dos EUA. Esta é uma hipótese que as autoridades americanas sempre fizeram questão de afirmar que estava na mesa. No primeiro semestre deste ano, o Brasil e a Turquia fizeram um movimento muito bem sucedido, quando todos achavam que era inviável: a aceitação por parte do governo iraniano de um entendimento que reproduzia quase literalmente os termos da negociação proposta pelos EUA.

Este fato gerou inclusive a carta do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama ao presidente Lula. O problema é que a posição brasileira na negociação com o Irã foi muito bem sucedida. A resposta grosseira e brutal do Departamento de Estado americano deve ser interpretada como uma mensagem ao Brasil e à Turquia: “nós não aceitamos este papel que vocês pretendem desempenhar na solução da crise.”

Comunicação: alimento da vida democrática

[ Dirceu ] Queria que você falasse sobre a mídia latinoamericana e sua associação com os golpes de Estado no continente. Grande parte dela cresceu sob a influência e apoio norte-americanos, de corporações daquele país ou até mesmo da CIA, à sombra das oligarquias nacionais ou durante as ditaduras militares. Hoje, a imprensa brasileira, na sua imensa maioria, faz um papel de partido político. E agora, temos essa discussão a respeito da regulação. Como você vê e analisa tudo isso?

[ Velasco ] É uma coisa muito grave. A comunicação é o alimento que mantém a vida democrática. Por isso a censura é a primeira medida das ditaduras. Agora, a censura não é estabelecida apenas pelos regimes ditatoriais. Se você controla os órgãos de imprensa, controla também as informações que circulam na sociedade. Tradicionalmente esse risco era minimizado pela possibilidade de vozes muito diferentes e pela desconcentração do mercado jornalístico. No século XIX os jornais eram contados às centenas.

O problema é que o processo de concentração e centralização se desenvolveu neste espaço também. E agora com as novas tecnologias, mais ainda. Nós não temos apenas grupos com presença predominante na imprensa escrita, mas na TV aberta ou fechada também. No Brasil - e isso vale para outros países - existem hoje 3 ou 4 grupos que controlam os grandes veículos de comunicação. Grupos familiares. Basta pensar na Globo, no Estado de São Paulo, na Folha, na Veja e estamos conversados. Existem diferenças entre esses veículos, mas a convergência é muito forte. Quando eles assumem uma pauta de partido político, e pior, quando agem como partidos sectários, eles distorcem de forma muito nociva, desfiguram o processo democrático.

No Brasil, esse problema é um pouco menor porque temos uma legislação que garante espaço na imprensa e na TV, pelo menos nos períodos eleitorais. Seja como for, esse é um tema crucial na agenda política no Brasil e um enorme desafio para a teoria e a prática democráticas.

Significado da vitória de Dilma Rousseff


[ Dirceu ] O que significa a vitória da Dilma Rousseff e a continuidade da política internacional do governo Lula daqui para frente?

[ Velasco ] A melhor forma de responder a esta pergunta é olhar os posicionamentos da oposição sobre os temas da política externa. Os dois partidos (oposicionistas) mais importantes nesse campo, o PSDB e o PFL/DEM, não dão muita prioridade à política internacional, mas os pronunciamentos de seus dirigentes (e dos diplomatas aposentados que circulam em seu meio) são eloqüentes: eles queriam a ALCA, mesmo que em troca de concessões mínimas por parte dos EUA; foram contra a diversificação dos laços comerciais e políticos com os países do Sul, o “Terceiro Mundismo”, na forma depreciativa que usavam para qualificar a diplomacia do governo Lula; e condenaram ruidosamente a disposição brasileira de negociar uma solução aceitável com a Bolívia, em 2006 (na questão do gás).

Eles chamaram repetidamente o governo de fraco por não rejeitar liminarmente os pleitos de países vizinhos – a Argentina e o Paraguai, em particular. Eles votaram contra o ingresso da Venezuela no Mercosul, e fizeram coro com a direita norte-americana no trato que o Brasil deu à crise (golpe militar de julho deste ano) de Honduras.

Tendo em vista esse currículo - bem como as declarações, durante a campanha, de José Serra - o mínimo que se pode dizer é que a vitória de Dilma em 31 de outubro é uma garantia de estabilidade política na América do Sul.

O Brasil, no governo Lula, exerceu um papel de liderança no processo de integração e de aprofundamento da democracia na região. O êxito da oposição aqui fortaleceria a direita em todo o continente, e abriria o caminho para novos ensaios golpistas como os que vimos ainda há pouco no Equador. A vitória de Dilma encerra a promessa de avanços significativos em ambas as direções. Mas seu significado pleno só fica evidente quando levamos em conta o enorme retrocesso que ela evitou.

E não é só isso. Essa oposição, muito enfática na denúncia, não fez o dever de casa e nunca desenvolveu uma concepção estratégica sobre o papel do Brasil no mundo.

Ora, contrariando as expectativas ingênuas criadas pelo fim da Guerra Fria nos bem pensantes, o mundo no século XXI tornou-se um lugar interessante, mas perigoso. Crises financeiras, violência terrorismo, guerra... são faces distintas do perigo que nos cerca. Em 2008, a crise financeira global levou os níveis de incerteza a um patamar bem mais elevado. Em meio às turbulências de um mundo assim, a clareza de objetivos, a noção precisa do rumo a seguir, e a coragem para avançar são bens inestimáveis. Na preservação desse patrimônio está o significado maior da vitória de Dilma para o Brasil e sua política externa.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

evento debate as eleições 2010 no contexto da democracia brasileira


Seminário

AS ELEIÇÕES DE 2010 E A DEMOCRACIA BRASILEIRA

17, 18 d 19 de novembro, às 19h


Promoção: Cursos de Ciência Política e Relações Internacionais (Uninter), Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (UFPR), NUSP, TRE-PR.

Local: UFPR, Campus Reitoria, Ed. Dom Pedro I., Segundo Andar. Rua Gal. Carneiro, 150, Centro.



Entrada Franca



  • MESA 1 - 17 novembro, quarta
AS REGRAS E OS ATORES NA DEMOCRACIA ELEITORAL BRASILEIRA
Coordenação: Karla Gobbo (Uninter)

1. Emerson Cervi (UFPR) – Financiamento de campanhas e partidos políticos no Brasil: do público ao privado, do Estado à Sociedade

2. Doacir Quadros (Uninter) – Partidos Políticos e Propaganda Política

3. Bruno Bolognesi (UFSCar) – Recrutamento político no Brasil: desafios e qualidade da representação política

  • MESA 2 - 18 novembro, quinta
A DEMOCRACIA DE MASSAS NO BRASIL
Coordenação: Adriano Codato (UFPR)

1. Renato Perissinotto (UFPR) – Como anda a Poliarquia Brasileira? Uma análise sobre as eleições de 2010

2. Pedro Floriano Ribeiro (UFSCar) - As transformações internas do PT e as eleições de 2010: balanço e perspectivas

3. Luiz Domingos Costa (Uninter) – Os descompassos nas mudanças da classe política brasileira

  • MESA 3 - 19 novembro, sexta
INFORMAÇÃO E DEMOCRACIA
Coordenação: Fernando José dos Santos (TRE-PR)

1. Marden Machado (TRE-PR) – O Papel das Assessorias de Comunicação da Justiça Eleitoral
2. Maria Sandra Gonçalves (Gazeta do Povo) - Desafios e armadilhas da cobertura eleitoral na imprensa diária

3. Sérgio Braga (UFPR) – O papel da internet nas eleições de 2010: mapeamento de um debate e algumas evidências preliminares

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Vícios nas eleições presidenciais = virtudes nas eleições estaduais


Luiz Domingos Costa

A semana de análise das eleições presidenciais é um manancial de leituras enviesadas sobre o processo democrático brasileiro. Com as raras exceções, os articulistas da grande imprensa enfatizaram aspectos “negativos”, apontaram supostos “retrocessos” em relação eleições presidenciais desse ano. A indignação é seletiva e arbitrária. Mais que isso, é uma indignação que só vale para os adversários, para os outros. Esse tipo de hipnose analítica é uma ferramenta corrente para engendrar crenças e realidades sociais facciosas destinadas a um acirramento político-ideológico que deixa de lado questões importantes e cristaliza preconceitos grotescos.

Podemos sintetizar o ressentimento das críticas em três linhas de pensamento equivocadas, mal informadas ou que almejam adulterar os aspectos tipicamente políticos das competições democráticas. [1] Há uma divisão entre o bom/consciente e o mau/pragmático eleitor. Aquele vota bem; esse, vota mal. Essa divisão se reflete no mapa eleitoral do Brasil e demonstra como os maus (pobres, não escolarizados e dispostos a venda do seu voto por qualquer miolo de pão) escolheram renovar o mandato do PT. [2] A candidatura vencedora se valeu de uma concorrência desleal porque usurpou o Estado em favor de sua campanha, inclusive obtendo a participação ativa do Presidente que deveria estar cuidando dos interesses da nação. [3] O perfil da candidatura governista é patético, mulher sem experiência em eleições, criatura sem autonomia-marionete nas mãos de seu criador.

1.
Não me aterei ao primeiro argumento, que já foi objeto de combate de bons artigos, incluindo um que parece ter levado a demissão de uma articulista do Estadão.

2.
A forma de enxergar as nossas virtudes em vícios dos adversários é especialmente clara no argumento sobre a instrumentalização do Estado por parte do PT. Trata-se da ideia de que o partido tomou o Estado para si com fins eminentemente mesquinhos, eleitoreiros, de autoperpetuação no poder. Nenhuma leitura pode ser mais retórica e viciada, porque só vale para o governo federal e ignora categoricamente outras disputas partidárias em nível sub-nacional. Isto é, fala-se do “uso da máquina” do governo federal em favor de uma candidatura governista, mas não há nenhuma vírgula sobre o domínio tucano em São Paulo, que somará 20 anos em 2014, com 5 mandatos consecutivos do mesmo partido político. Ora, onde falta revezamento subsiste democracia? Sem resposta aqui, o silêncio significa o êxito acachapante das políticas do governo do PSDB, com o correlato absurdo que seria afirmar o uso de qualquer tipo de propaganda governista para promoção de seus próprios sucessores na “locomotiva da federação”.

3.

Menos claro é o argumento que enfatiza o caráter forjado, fabricado ou artificial da candidatura de Dilma Rousseff, uma mulher que jamais havia concorrido a qualquer cargo público em eleições, ocupando apenas pastas de indicação político-partidária e/ou técnica. Mas também aqui duas medidas valem para “analisar” as trajetórias de lideranças de partidos distintos. Ora, parece sempre que Dilma foi uma criatura de Lula, uma figura antes insignificante que foi pouco a pouco alçada a cargos de destaque única e exclusivamente para conquistar o cargo máximo da política nacional. Nenhuma palavra sobre a trajetória de Antônio Anastasia, que tem uma trajetória vasta em cargos de indicação político-partidária na burocracia federal e estadual mineira. A semelhança com Dilma é gritante, a exceção de ter concorrido como vice-governador ao lado de Aécio Neves em 2006 e que, registre-se, representa uma experiência eleitoral praticamente insignificante, ainda mais perante um líder com tamanho potencial de ofuscar os companheiros de chapa como é o seu padrinho político. No exemplo mineiro temos eficiência de gestão e sinal de grandeza de um líder que conseguiu reverter uma eleição dura com um candidato jovem e interessante. Na eleição federal temos um espetáculo horroroso de uma candidata plasticamente fabricada, levada pela mão por seu criador e que não sabe se olhar no espelho e reconhecer a própria face.

Todos os casos aqui elencados – do PT no governo federal e do PSDB em São Paulo ou Minas Gerais – podem ser rotulados sob a pecha de “continuísmo”. Mas os possíveis (ou supostos) efeitos perversos são apontados apenas em se tratando do governo petista, dando lugar a ideias como “mexicanização”, falta de republicanismo, declínio democrático e assim por diante.

Esse tipo de inversão é o típico exemplo da alquimia semântica que procura empreender um conteúdo moral distinto para fenômenos (ou conceitos) muito parecidos. Na verdade, por mais aparentes que sejam as sentenças, fenômenos ou conceitos, o a discriminação nominal (com um fim moral) transforma em vícios a mesmíssima característica que em outra situação é uma virtude.

Forçar a barra nesses termos significa, como se sabe, providenciar mecanismos cognitivos, crenças e atitudes para a manutenção de determinadas posições sociais e evitar que situações hierárquicas sejam revertidas em favor daqueles que estão na posição inferior.

Assim era que os norte-americanos do pós-guerra enxergavam as qualidades típicas de sua sociedade de indivíduos empreendedores, laboriosos e poupadores como reflexo invertido entre os japoneses, seres avarentos, sovinas, submissos, dispostos encarar péssimas condições de trabalho e praticantes desleais da concorrência capitalista...

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

As chagas do segundo turno de 2010

Uma eleição para não ser esquecida
Maria Inês Nassif
Jornal Valor Econômico, 28-10-2010

O novo presidente será conhecido já no domingo, tão logo contabilizados os votos das urnas eletrônicas. O novo Brasil político, no entanto, descortinou-se durante a campanha, é velho e conservador e merecerá certamente a atenção de especialistas depois do pleito. Os partidos, em especial os de oposição, conseguiram extrair da sociedade os seus mais primitivos preconceitos, por meio de uma agenda conservadora e religiosa. Qualquer que seja o resultado da eleição – e até esse momento não existem divergências entre as pesquisas dos institutos sobre o favoritismo da candidata Dilma Rousseff (PT) – o eleito terá de lidar com uma agenda de políticas públicas da qual foram eliminadas importantes conquistas para a sociedade como um todo, e na qual o elemento religioso passou a ser um limitador da ação do Estado.

A ação da igreja conservadora e de setores do pentecostalismo contra Dilma, por conta de sua posição sobre o aborto, é o exemplo mais gritante. No Brasil, a cada dois dias morre uma mulher em conseqüência de um aborto clandestino. A legislação brasileira ao menos conseguiu trazer mulheres que correm risco de vida em decorrência de um aborto que já foi malfeito para dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) e garante que a rede pública faça com segurança os abortos aceitos legalmente – os de vítimas de estupro ou quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher. Como assunto de saúde pública, o aborto não poderia ter ocupado o centro dos debates. Isso é uma questão de Estado. Como convicção moral, a mudança na legislação está na órbita do Congresso – e esses setores elegeram seus representantes. O debate eleitoral sobre o aborto, numa eleição para a Presidência, foi a instrumentalização política de um dogma – pelo menos dos setores religiosos conservadores – e excluiu do debate a maior interessada, a mulher. A eleição conseguiu retroceder décadas esse debate. O movimento feminista não agradece.

Campanha trouxe à tona preconceitos que pareciam abolidos

O país que se redemocratizou há um quarto de século e há 22 anos conseguiu entender-se em torno de uma Constituinte cujo produto final foi avançado politicamente, manteve uma reverência envergonhada aos atores políticos mais importantes do regime anterior – dos militares à Igreja conservadora – e um medo subjetivo de se contrapor de fato ao passado. Sem lidar com os seus fantasmas, tem reincorporado vários deles à vida política. É inadmissível que num país que viveu 21 anos sob o tacão militar, por exemplo, setores da sociedade (e os próprios militares) tenham reagido de forma tão desproporcional ao III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), ou rejeitem de forma tão violenta o acerto com esse passado. Ao longo dos anos de democracia, determinados setores sociais passaram a reincorporar valores que pareciam ter sido abolidos do manual de como fazer política. Ao longo desses 25 anos que nos separam do último ditador militar, a direita, que se envergonhara no final da ditadura, lentamente desenterrou os velhos fantasmas e refez os preconceitos. Aliás, não apenas a velha direita. Uma nova direita, que se formou com atores que vinham também da resistência democrática, aceitou o caminho do conservadorismo ideológico para reaglutinar uma elite que ficou sem norte, e para a qual a emergência de grandes parcelas da população que estavam na base da estrutura social à classe média assusta – até porque a elite brasileira não tem historicamente experiência com realidades onde a disparidade de renda é menor e onde o aumento da escolaridade transforma pobres em cidadãos, e não em votos a serem manipulados.

Dentre todos os setores que atravessaram da esquerda para a direita nessas últimas duas décadas, o PSDB foi o que perdeu mais. Formado com um ideário social-democrático, mas sem experiência de articulação de política partidária e sem vocação para liderança de massas, chegou ao poder junto com o neoliberalismo tardio brasileiro, assimilou valores conservadores, incorporou-os ao seu tecido orgânico e sobreviveu, enquanto mantinha o governo federal, com a ajuda da política tradicional (e conservadora). Na oposição, não conseguiu voltar ao leito social-democrata. Deixou-se empurrar para a direita pelo PT, quando o presidente Luis Inácio Lula da Silva assumiu o seu primeiro mandato, e se aproximou tanto do PFL que as divergências entre ambos se diluíram ao longo do tempo, ao ponto de canibalizarem votos uns dos outros. Incorporou o discurso neoudenista, transformou-se num partido de vida meramente parlamentar, não reorganizou o partido para formar militância. O PSDB, hoje, é um partido que aparece como tal para apenas disputar eleições.

Isso é péssimo. O primeiro turno já compôs o Legislativo federal. O PT saiu das eleições mais forte. O PMDB, que é o partido que todos falam mal, mas do qual nenhum governo consegue se livrar, continua forte com a sua fórmula de funcionar como uma federação de partidos regionais e tende a incorporar o DEM, ex-PFL, e ficará mais forte ainda. Os demais, inclusive o PSDB, serão partidos médios – com a diferença que o PSB, por exemplo, é um partido médio em crescimento, e o PSDB terá que se reinventar para voltar a crescer, se não voltar a ser governo. O PT se acomodou no espaço da social democracia e o PMDB permanece no centro, se é possível atribuir a esse partido uma posição ideológica que não seja a da fisiologia. O espaço que o PSDB tem para se reinventar fora da direita é mínimo. O DEM e o PSDB deram muito trabalho ao presidente Lula, em oito anos de governo, mas carregaram no jogo neoudenista e se desgastaram demais. Além disso, a hegemonia paulista no PSDB permanece, o que obstrui caminhos de líderes não paulistas que poderiam reduzir o desgaste neste momento, como Aécio Neves (MG).

Não é arriscado apostar na emergência de um novo partido de oposição. O PSDB precisaria de lideranças muito hábeis para se reinventar, e de uma solidariedade e organicidade que nunca cultivou. E precisaria enterrar de vez os preconceitos e preceitos conservadores que têm desenterrado a cada nova eleição. Enfim, empurrar-se de novo para uma posição de centro. O passado do partido, todavia, não recomenda que se trabalhe com essa hipótese.


Maria Inês Nassif é reporter especial de política e escreve às quintas-feiras no Valor Econômico.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Tiririca e outras pragas

Adriano Codato

A esta altura do campeonato, acho que ninguém ignora mais a candidatura do palhaço Tiririca pelo indescritível PR de São Paulo a deputado federal. A sequência de suas inserções no Horário Eleitoral, editadas juntas no YouTube, já foram acessadas mais de 4 milhões de vezes, se o contador está correto. Tiririca tornou-se o nome mais lembrado na pesquisa espontânea para deputado federal e as projeções são que ele seja o mais ou um dos mais votados em 3 de outubro.

Bastou isso, somado às declarações que Tiririca faz nos spots de menos de 30 segundos, para provocar a ira dos bem-pensantes e o escândalo dos que acham que só os bacharéis têm o direito legítimo à política. Para quem gostaria de imaginar o mundo político como a extensão de um clube aristocrático de especialistas em leis, nada mais insolente. Mesmo o Ministério Público entrou no picadeiro: processou o comediante por falsidade ideológica.

Apresentar-se fantasiado de palhaço de circo tem o efeito grotesco e constrangedor das piadas sem graça. É, dizem, uma extravagância que uma democracia compenetrada não pode aturar. E suas frases são, de fato, desconcertantes. “Por isso que eu quero ser deputado federal: para ajudar os mais necessitado (sic), inclusive a minha família”. “O que é que faz um deputado federal?... Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim, que eu te conto”. E o clássico: “Vote no Tiririca. Pior do que tá não fica”. [veja os vídeos aqui]

A opção eleitoral por Tiririca deve repetir o fenômeno usual do voto contra a política institucional e contra os políticos profissionais. Essa seria, paradoxalmente, a opção mais politizada: contra a degeneração da política, voto conscientemente na figura exemplar do político degenerado. Há também a opção debochada pela anti-política: a política institucional chegou a um ponto que só fazendo graça dela. Afinal, são todos uns palhaços, só que sem a graça dos profissionais do ramo.

Penso, entretanto, que esse caso merece ser lido em outro registro. Por que Francisco Everardo Oliveira Silva não poderia apresentar-se aos eleitores? Em nome de que critérios requintados eu posso ter mais direito que qualquer um? A pretensão de Tiririca é legítima como qualquer outra. Insistir nesse ponto é chover no molhado. Sua candidatura exemplifica, pelo lado mais caricatural e grosseiro, um fenômeno corrente e considerável: a crescente popularização da classe política brasileira. Nunca antes na história deste país o recrutamento político foi tão aberto, em que pese o custo indecoroso das campanhas eleitorais. Hoje mais do que nunca é usual verificar a presença, nos legislativos, de professores de ensino médio, sindicalistas, líderes de associações populares, etc. Isso não é nem bom nem mau em si mesmo. Mas é um índice de mudanças importantes na estrutura de oportunidades políticas no Brasil e da consolidação de uma democracia de massas onde capital (político, cultural) herdado conta, mas não mais como antes. Para escândalo daqueles que gostariam que o mercado da política fosse restrito aos proprietários e aos procuradores legítimos da cultura legítima.

Isso posto, sugiro que se olhe para o fenômeno Tiririca de outro modo. Sua encenação como (futuro) político profissional é mais útil e mais didática do que parece a primeira vista. Ela tem a vantagem de revelar, para aqueles que estão fora do jogo (nós), as regras implícitas do jogo (político), que não podem ser ditas, sob pena de colocar a legitimidade do jogo em risco e a credibilidade dos jogadores (os profissionais da política) em xeque. Isso só é possível de ser feito por alguém que não está (ainda) comprometido com a santidade das técnicas de ação e expressão do campo político. E que pode, por isso mesmo, zombar delas.

Esse é o efeito prático e indesejável da candidatura de Tiririca. Não o seu objetivo. Sua inscrição no PR obedece à velha tática do gênero: uma figura popular ou popularesca que, graças à sua notoriedade, traga votos para a legenda e/ou para a coligação e puxe assim para cima outros candidatos da lista. A receita básica da exploração oportunista das oportunidades que a legislação faculta. Ora, é precisamente como puxador de votos que esse arremedo de candidato pode revelar – positivamente – uma das leis menos explícitas e mais rocambolescas do sistema eleitoral nacional. Mas há mais, já que esse é o exemplo mais óbvio desse jogo oportunista entre profissionais e profanos.

Dizer com todas as letras que uma das utilidades práticas do cargo de deputado federal é ajudar a si e à própria família não é o cúmulo da cara de pau e da sinceridade fingida? Expor a própria ignorância sobre o que afinal faz um deputado não é traduzir, da maneira mais gozadora possível, o caráter distante e misterioso do mundo político, que muitas vezes só faz sentido para quem vive nele? Um trambiqueiro processado protestando contra o trambique da política não é uma ironia imperdível diante daqueles profissionais que fazem, a sério, exatamente o mesmo? Mas talvez o momento mais sensacional desses spots seja aquele em que Tiririca começa uma daquelas arengas enfeitadas sobre “o Brasil” para terminar num tatibitate incompreensível e sem sentido. Fazer troça da complexidade da linguagem dos políticos denunciando o caráter fátuo desses discursos não vale como crítica involuntária ao palavrório douto daqueles que gostariam que os víssemos como mais sérios e mais sinceros do que de fato são? O incômodo maior diante da pantomima encenada por Tiririca é que sabemos que ele está representando, ao contrário dos outros, onde a produção profissional dos discursos tende a apagar o caráter dissimulado (e por isso mesmo mais eficaz) da representação. Quanto mais mequetrefe o teatro, menos crível ele é.

Votar em Tiririca não é um protesto. É uma demissão voluntária das próprias responsabilidades. Escandalizar-se com o fato dele poder apresentar-se ao eleitor é, além de uma mania elitista, falta de percepção sobre o que, mesmo de maneira impensada, pode estar em jogo.

Adriano Codato (adriano@ufpr.br) é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná.

Direto do Blog Sociologia Política.