Ao inferno à procura de luz
BOLÍVAR LAMOUNIER
Sherlock Holmes diria que o ilustre presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, dr. Cezar Britto, voltou ao local do crime |
UM DADO auspicioso na cena política brasileira é o que se tem denominado democracia "participativa" -o ideal de uma participação relevante e mais diversificada, não limitada aos períodos eleitorais. Não vejo como alguém possa se opor a isso; quanto mais, melhor.
A expressão "democracia direta" designa algo bem diferente. Aqui estamos falando de uma corrente de pensamento profundamente refratária à única democracia que de fato existe no mundo moderno: a representativa. Sua raiz principal é o sonho romântico de recriar radicalmente a sociedade, restabelecendo o modo de vida "espontâneo" que supostamente teria existido no passado e impedindo o surgimento de instituições políticas permanentes.
Na prática, a democracia dita "direta" reduz-se a uns poucos instrumentos bem conhecidos, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de legislação -acolhidos no Brasil pela Constituição de 1988. Não morro de amores por nenhum deles, mas admito que possam ser úteis em conjunturas especiais e em relação a determinadas matérias, entre as quais obviamente não se incluem questões econômicas ou políticas complexas como privatização, endividamento ou sistema de governo.
O plebiscito, especialmente, pode ser o caminho para dirimir impasses emocional e valorativamente carregados, como aborto, eutanásia, maioridade penal ou pena de morte. Sou bem menos flexível em relação ao conceito neo-romântico de uma democracia sem mediações institucionais e, de modo geral, a mecanismos capazes de produzir impactos sistêmicos excepcionalmente fortes.
Problemas desse tipo impregnam até a medula a reforma política sugerida pela OAB, e em particular a figura do "plebiscito revocatório".
Refiro-me aqui à possibilidade de "des-eleger", mediante plebiscito de iniciativa popular, representantes infiéis (?) ao mandato, ou envolvidos em corrupção etc. Trata-se, nada mais e nada menos, de admitir a revogação, nos termos acima, do mandato dos chefes de Executivo e dos senadores, e de toda a Câmara dos Deputados, com a conseqüente convocação de novas eleições.
Salta aos olhos que a eventual aplicação de tal fórmula atingiria em cheio o sistema político, no mínimo por difundir uma premonição de acefalia institucional. Nada a ver, portanto, com o "recall" norte-americano.
Raramente aplicado, o "recall" confina-se aos distritos eleitorais e se caracteriza por um impacto sistêmico de pouquíssima relevância.
No fundo, como se vê, o problema é de proporção. É a diferença entre avaliações judiciosas, bem proporcionadas, e avaliações insensatas, carentes do sentimento de proporção. Propostas de participação "direta" mal-proporcionadas darão ensejo a conflitos institucionais graves, desde logo por serem antitéticos os princípios "direto" e "representativo". Numa democracia apenas parcialmente construída, sem instituições respeitadas, é uma possibilidade real.
Em síntese, o que acima vai dito é o que escrevi em dois artigos anteriormente publicados neste espaço ("Tendências/Debates", 7 e 21/3). Em sua réplica o presidente da Ordem, Dr. Cezar Britto, ofereceu contra-argumentos substanciosos ("Tendências/Debates", 30/3), mas insuficientes para exorcizar o demônio da utopia radical e certos mitos de gosto populista que a meu ver influenciaram o trabalho da OAB no campo da reforma política. Lembrando minha antiga convicção parlamentarista -cortesia que me torna seu devedor-, o Dr. Britto estranhou meu ponto de vista contrário à revogação de mandatos nos termos do projeto, ao ver dele "muito mais democrática" que o mecanismo parlamentarista clássico da dissolução da Câmara por decisão do Chefe de Estado, seguida de nova eleição legislativa.
Ora, a expressão "muito mais democrática" parece-me trair a mitologia populista a que me referi. Sherlock Holmes diria que o ilustre presidente da OAB voltou ao local do crime. Eis sua tese: mais "povo", mais democracia; menos "povo", menos democracia.
Não vejo lugar nela para uma concepção institucional da democracia representativa; aliás, nem para o entendimento do sistema político como uma estrutura objetiva ("externa à consciência", como diria Marx).
Nessa visão, a própria indagação sobre o caráter democrático ou não de um regime passa a ser uma questão subjetiva: quem poderá respondê-la melhor que o "povo" -ou quem se arrogar o direito de falar por ele?
Na prática, a democracia dita "direta" reduz-se a uns poucos instrumentos bem conhecidos, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de legislação -acolhidos no Brasil pela Constituição de 1988. Não morro de amores por nenhum deles, mas admito que possam ser úteis em conjunturas especiais e em relação a determinadas matérias, entre as quais obviamente não se incluem questões econômicas ou políticas complexas como privatização, endividamento ou sistema de governo.
O plebiscito, especialmente, pode ser o caminho para dirimir impasses emocional e valorativamente carregados, como aborto, eutanásia, maioridade penal ou pena de morte. Sou bem menos flexível em relação ao conceito neo-romântico de uma democracia sem mediações institucionais e, de modo geral, a mecanismos capazes de produzir impactos sistêmicos excepcionalmente fortes.
Problemas desse tipo impregnam até a medula a reforma política sugerida pela OAB, e em particular a figura do "plebiscito revocatório".
Refiro-me aqui à possibilidade de "des-eleger", mediante plebiscito de iniciativa popular, representantes infiéis (?) ao mandato, ou envolvidos em corrupção etc. Trata-se, nada mais e nada menos, de admitir a revogação, nos termos acima, do mandato dos chefes de Executivo e dos senadores, e de toda a Câmara dos Deputados, com a conseqüente convocação de novas eleições.
Salta aos olhos que a eventual aplicação de tal fórmula atingiria em cheio o sistema político, no mínimo por difundir uma premonição de acefalia institucional. Nada a ver, portanto, com o "recall" norte-americano.
Raramente aplicado, o "recall" confina-se aos distritos eleitorais e se caracteriza por um impacto sistêmico de pouquíssima relevância.
No fundo, como se vê, o problema é de proporção. É a diferença entre avaliações judiciosas, bem proporcionadas, e avaliações insensatas, carentes do sentimento de proporção. Propostas de participação "direta" mal-proporcionadas darão ensejo a conflitos institucionais graves, desde logo por serem antitéticos os princípios "direto" e "representativo". Numa democracia apenas parcialmente construída, sem instituições respeitadas, é uma possibilidade real.
Em síntese, o que acima vai dito é o que escrevi em dois artigos anteriormente publicados neste espaço ("Tendências/Debates", 7 e 21/3). Em sua réplica o presidente da Ordem, Dr. Cezar Britto, ofereceu contra-argumentos substanciosos ("Tendências/Debates", 30/3), mas insuficientes para exorcizar o demônio da utopia radical e certos mitos de gosto populista que a meu ver influenciaram o trabalho da OAB no campo da reforma política. Lembrando minha antiga convicção parlamentarista -cortesia que me torna seu devedor-, o Dr. Britto estranhou meu ponto de vista contrário à revogação de mandatos nos termos do projeto, ao ver dele "muito mais democrática" que o mecanismo parlamentarista clássico da dissolução da Câmara por decisão do Chefe de Estado, seguida de nova eleição legislativa.
Ora, a expressão "muito mais democrática" parece-me trair a mitologia populista a que me referi. Sherlock Holmes diria que o ilustre presidente da OAB voltou ao local do crime. Eis sua tese: mais "povo", mais democracia; menos "povo", menos democracia.
Não vejo lugar nela para uma concepção institucional da democracia representativa; aliás, nem para o entendimento do sistema político como uma estrutura objetiva ("externa à consciência", como diria Marx).
Nessa visão, a própria indagação sobre o caráter democrático ou não de um regime passa a ser uma questão subjetiva: quem poderá respondê-la melhor que o "povo" -ou quem se arrogar o direito de falar por ele?
BOLÍVAR LAMOUNIER , 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia (UCLA), é consultor de empresas e autor do livro "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (Augurium Editora, 2005).
Folha de São Paulo, Tendencias/Debate, 23 de abril de 2007.
Folha de São Paulo, Tendencias/Debate, 23 de abril de 2007.